O rosnado ecoa pela fenda como um trovão abafado. Não é um som de lobo. Nem de humano. É algo mais antigo. Mais profundo.Lioran se coloca à frente, os olhos atentos, os músculos tensos. Eu me aproximo devagar, sentindo o ar mudar. Mais denso, mais pesado. O cheiro é de terra úmida, sangue seco e algo que não consigo identificar. Algo ancestral.A criatura emerge da escuridão.Gigantesca. Pelagem espessa, negra como breu, com placas ósseas nas costas e garras que poderiam rasgar rochas. Os olhos são pequenos, mas incandescentes, como brasas vivas. A mandíbula larga revela presas tortas e afiadas. Não é um urso. Não é nada que pertença ao mundo comum.É uma fera primitiva. Um erro da natureza. Ou talvez um lembrete dela.Lioran recua um passo. Eu não.Sinto algo. Um chamado. Uma conexão que não faz sentido.— Ei... — murmuro, sem saber por que estou falando. — Precisamos de ajuda.A criatura para. Inclina a cabeça. Rosna baixo.— Eles estão vindo. Vão nos matar. Mas você... você pode

-POV: Artemísia -As muralhas de Umbra se erguiam diante de nós, envoltas pela névoa matinal que ainda não se dissipara. O portão principal se abriu lentamente, rangendo como se hesitasse em nos receber. Guardas se alinharam, atentos. Alguns reconheceram Lioran e se curvaram. Outros apenas nos observaram, desconfiados.O carro parou diante da sede da matilha. Nymerra já nos esperava na escadaria, braços cruzados, expressão indecifrável. Atrás dela, membros da liderança (os anciãos, os ministros e os oficiais da guarda) se reuniam em silêncio.Lioran desceu primeiro. O peso do momento o fez hesitar por um segundo. Depois, saí do carro, envolta em meu manto, os olhos varrendo o ambiente com cautela.Nymerra se aproximou.— Você demorou. — disse, sem rancor, mas com firmeza.— Eu sei. — respondeu Lioran. — E temos muito o que conversar.Ela me observou por um instante, depois voltou o olhar para ele.— A cidade está inquieta. Boatos se espalharam. Alguns dizem que você foi levado. Outro

- POV: Artemísia -Benedict. Por um segundo, o nome faz eco. Mas não dói como antes. Eu respiro fundo, endireito os ombros e sinto a pele onde a flor de seis pétalas queima só de memória. Não é mais uma ferida aberta; é uma cicatriz com meu nome, não o deles.— Certo — digo, e minha voz sai firme, quase leve. — Então é Benedict. Que conveniente para o destino achar que podia brincar de amarrar nós invisíveis sem me avisar.Os olhos de Lioran procuram alguma rachadura em mim. Ele esperava queda. Encontra apenas surpresa, e um fio de riso.— Não me olhe assim — acrescento, com um meio sorriso teimoso. — Lucius e Elise não me atingem mais. Nem daqui, nem de lugar nenhum. E você… você não é culpado do sangue que corre em Elise.Ele inspira, como se eu tivesse tirado um peso do ar. O escritório volta a ser apenas um quarto com livros, mapas e a janela batida pelo vento.— Eu queria ter te contado antes — diz ele, baixo. — Mas naquele momento não parecia a hora certa.— Pois é agora. — re

- POV: Artemísia - O dia seguinte chegou com um céu cinzento e uma brisa estranhamente morna. A residência estava mais silenciosa do que o normal, como se até os corredores estivessem prendendo a respiração. Eu ainda sentia o gosto do beijo. O toque. O impulso. Enquanto caminhava pelos corredores em direção ao setor de logística, onde me informaram que ficava o armário de viagem, tentei focar no que importava: o convite. O casamento. Garra Dourada. Voltar àquele lugar era como encarar um espelho que eu quebrei anos atrás. Mas agora, eu não era mais a mesma. E dessa vez, eu não iria sozinha. Lioran estava em reunião com Serys e Nymerra, organizando os detalhes da viagem. Eu sabia que Serys ainda estava desconfortável com tudo: com a minha presença, com o convite, com o que poderia acontecer. Mas ele não protestou mais. Nymerra, por outro lado, parecia animada. Ela me lançou um sorriso cúmplice quando cruzamos no corredor. — Vai ser divertido — disse ela. — E se não for, pelo me

-POV: Lioran-O salão principal da Residência Alfa estava transformado. Luzes douradas pendiam do teto em cascatas delicadas, refletindo em cristais suspensos que giravam lentamente com a brisa. O chão de mármore polido refletia os passos dos convidados, e o aroma de flores frescas (lírios, jasmins, e rosas brancas) pairava no ar como uma lembrança viva da primavera, mesmo no inverno. A cerimônia estava prestes a começar. Ao meu lado, Artemísia caminhava com postura firme, o vestido negro como a noite abraçando cada curva com elegância. As costuras prateadas desenhavam traços de lua, e o vermelho discreto nos acessórios denunciava Umbra. Nymerra vinha logo atrás, com o mesmo traje cerimonial da matilha, em tons de preto, prata e vermelho. Os olhares se voltaram. Os sussurros começaram. Alfas de outras matilhas estavam presentes, cada um representando suas cores e semblantes.E nós. Umbra. A matilha amaldiçoada. A que não devia estar ali. Mas estávamos. E não