Angústia
Angústia
Por: ABDENAL CARVALHO
Capítulo 1 – O Tronco

Após quatro dias acorrentada naquela arvore depois de ser cruelmente chicoteada por ordens do capataz da fazenda, ela suportava sol e chuva determinada a sair dali com vida. Aquela foi a primeira vez que foi levada para ser surrada no tronco por ter fugido do seu senhor que habitualmente a estuprava. Dias antes daquele estágio seus agressores a capturaram e por várias horas ficou sob o chicote da ira do temido Barão do Café, como era conhecido aquele que a comprou. Depois a espancaram com chutes e pontapés, deixando seu corpo cheio de graves feridas e hematomas, sangrava bastante, escorria sangue de sua boca e pelo nariz.

Muitos outros que viviam ali na mesma situação viram a maneira terrível na qual ela se encontrava, mas nada podiam fazer, visto que também eram privados da mesma liberdade, a única coisa a fazer era ver tudo em silêncio. Mas, para compreendermos melhor sua triste história precisamos voltar no tempo, quando tudo começou. Seu nome era Lucinete, cujo significado no dicionário afro-braileiro, é: “Aquela que é Cheia de Luz”, carinhosamente chamada pelos mais próximos de “Luz”. Nasceu numa pequena aldeia Angolana e veio para o Brasil ainda pequena, filha de um casal de escravos que foram comprados pelos Dantas.

 Uma família muito rica e dona de muitas terras no Sul do país, com plantações de café, pimenta do reino, cana de açúcar e de vários engenhos onde produziam aguardente em grande escala, principalmente a cachaça de melhor qualidade da época. Ao chegarem no Porto e desembarcarem do navio negreiro, no ano de 1822, mais de trinta famílias foram levadas para a uma de suas muitas fazendas e colocadas em alojamentos, onde viveriam o resto de suas vidas, servindo a seus senhores.

Ali, não teriam qualquer direito nem poderiam reivindicar benefícios essenciais para si nem aos seus filhos, como uma boa escola, alimentação de qualidade e tratamentos diversos que eram dados somente aos brancos. Enquanto os homens trabalhavam arduamente nos canaviais, em troca de um prato de comida da pior espécie, suas mulheres e crianças serviam de todas as formas possíveis nos casarões de seus donos e ali eram exploradas. Luz, ao completar seus dez anos de idade foi violentada por Sinhozinho Albuquerque, filho do Barão Dantas, de muita reputação naquelas bandas e cuja maldade contra seus escravos era notória

 Abá, seu pai, cujo nome em Afro-Brasileiro significa “Esperança”, perdeu o juízo e decidiu fazer justiça com as próprias mãos contra o maldito pedófilo. Numa manhã, durante seu costumeiro passeio pelo canavial guarnecido por alguns de seus jagunços o infeliz passava pela parte onde o raivoso negro se encontrava na companhia de dezenas de outros escravos a trabalhar no corte de canas.

 Quando foi atacado e teve degolada sua cabeça a facão. O ataque foi de surpresa e tão rápido que o tarado nem se deu conta da aproximação da morte que de motim o aguardava, não deu tempo para que seus protetores impedissem tamanha violência. Com a ajuda de mais cinco outros homens Abá matou os acompanhantes daquele infeliz e esconderam seus corpos em buracos rasos no meio da plantação. Dias se passaram sem que fossem encontrados, apesar da grande busca feita pelos jagunços e já eram dados como mortos.

O Barão Dantas, então, mandou que todos os escravos que trabalhavam nos canaviais, plantações de café e pimenta do reino fossem reunidos numa determinada ala de sua propriedade e sob fortes chicotadas foram forçados a revelar o que de fato teria acontecido com seu filho. Depois de horas debaixo do ardor do chicote um dos que ajudaram ao pai vingar a honra da filha decidiu ceder e abrir a boca, revelando o que haviam feito.

Ajagunã, apesar de seu nome significar “Guerreiro Forte”, se acovardou diante do martírio que sofria e delatou a todos os envolvidos no homicídio, denunciando Abá como o mentor da barbárie cometida contra o senhorzinho Albuquerque dias atrás meio aos canaviais, onde trabalhavam.

Após relatar em detalhes aos seus carrascos como praticaram o crime o negro delator, que pensava receber algum benefício por ter entregue seus irmãos, foi degolado. Abá e os demais que o ajudaram na vingança contra aquele que tirou a honra de sua filha ainda criança foram levados até a presença do Barão que mandou executá-los de forma perversa.

Os homens foram amarrados num tronco e depois de serem fortemente surrados pereceram dentro das chamas. Tudo aconteceu diante de suas famílias que a tudo assistiam sem nada poder fazer para defende-los, pois deparavam-se com jagunços armados até os dentes, então apenas pranteavam. Mulheres, filhos e demais familiares permaneciam apavorados, chorando a morte de seus pais, esposos e parentes. Foram cozidos dentro de uma enorme fogueira que foi levantada em redor deles ainda vivos.

 Seus gritos de dor e desespero ao ter suas carnes consumidas pelas chamas podiam ser ouvidos ao longe. Aquela cena de horror jamais seria esquecida pelos que ali se fizeram presentes, o infame castigo foi feito para que os demais aprendessem a temer seus senhores. Indianara, esposa de Abá e mãe de Luz, também foi morta. Seu nome significa “A nativa que está mais próxima”, foi a primeira e única mulher a quem Abá entregou seu coração desde a adolescência. Suas famílias eram bem próximas e logo cedo começaram a ter interesse um pelo outro.

Com a invasão dos portugueses em seu país de origem em busca de escravos o sonho de felicidade que uniu aquele casal acabou se transformando numa cruel realidade de dores e sofrimentos, que resultou naquela tragédia.

 Logo após matar os assassinos de seu filho na ardente fogueira o Barão Dantas ordenou que suas famílias fossem executadas e Indianara foi uma das que perdeu a vida. Entretanto, Luz permaneceu viva por ser criança e porque Joana, filha caçula do temível Barão se afeiçoou a ela. Defendendo-a com veemência diante do pai raivoso, alegando inocência, pôde livrá-la.

Desde então a pequena escrava passou a viver no casarão. Depois da morte de seu herdeiro mais novo o velho Barão entrou em depressão e passou a viver recluso nos seus aposentos, entregando a administração de todos os seus bens a Dionísio Dantas, o filho mais velho. Este era pior que o pai em maldade, tratava os escravos com maior dureza e não faltava castigos severos aos que a seu ponto de vista cometiam infrações dignas de punição.

Adorava ver os negros no tronco, levando chibatadas e ria-se de suas dores e seguiu o mesmo exemplo do irmão caçula na prática da pedofilia. Costumava abusar das meninas, filhas das escravas, sem que ninguém tivesse a ousadia de reclamar ou tentar impedi-lo, pois ameaçava a todos com a fogueira ardente tal como havia feito seu maldoso pai contra aqueles que procuraram vingar a insensatez de seu irmão caçula.

Os olhos de Luz puderam testemunhar, além da morte cruel de seus pais e dos que o ajudaram a defender sua honra, o sofrimento de inúmeros outros negros que eram levados para o castigo naquele tronco maldito. Os anos se passaram e a menina negra que havia sido covardemente violentada por um dos senhores da família Dantas cresceu, tornando-se uma mulher linda e educada.

Apesar da origem medíocre que teve meio a escravidão possuía estilo refinado, tudo devido o apoio recebido de sua protetora, Joana, filha do antigo Barão e irmã de Dionísio, o atual senhor daquelas terras. Mas, apesar de toda a proteção que recebia ela ainda era uma negra sem liberdade e qualquer privilégio como ser humano.

Ciente disso, seu senhor passou a cortejá-la e queria a todo custo possuí-la, porém, a jovem se recusava a satisfazer seus desejos. Por essa razão, certo dia ele exigiu que ela fosse ao seu escritório para ajeitar sua biblioteca, que era composta com dezenas de livros. Deveria fazer uma limpeza no local e colocar tudo em ordem.

 O que fez sem hesitar, pois compreendia qual era sua obrigação. Foi nessa ocasião que ele a atacou barbaramente pela primeira vez e a possuiu. Apesar de muito lutar contra o ataque inesperado do violento homem, que parecia enfurecido e dominado pelo desejo de possuí-la, não foi forte o suficiente para impedir a consumação do ato. Depois de ter saciado sua selvageria ainda menosprezou sua vítima.

Zombando daquela que por muito tempo foi alvo de suas fantasias imundas, Dionísio a expulsa dali e ordena que nada do ocorrido seja relatado a quem quer que seja, com o risco de ser castigada. Ele temia que seu pai soubesse do ato infame cometido contra aquela a quem a irmã protegia.

Isso seria ruim para sua imagem, perderiam o respeito dele, por essa razão manter o falso papel de filho ajuizado era de extrema necessidade para receber o título de Barão do Café, pertencente até então a seu pai, que iria passar a ele em pouco tempo, pois estava muito enfermo e ameaçado de morte.

Amedrontada com as ameaças feitas pelo inimigo, sabendo ela o quanto era maldoso e cumpridor de suas promessas cruéis decidiu se calar, porém a aflição permanecia estampada em seu rosto. Alabá, cujo nome significava “Espírito Infantil”, era filha de uma das negras que serviam os Dantas no casarão.

Como sua melhor amiga e confessora fiel, revelava a ela todos os seus segredos e nada mantinha escondido sobre tudo o que lhe acontecia, mas nem a ela teve coragem de contar o que havia sofrido naquele dia sob o ataque daquele monstro. Entretanto, não conseguiu esconder dela toda a angústia que afligia sua alma, e passou a ser interrogada:

 — Vamos, Luz, pare de tentar me enganar e conte logo o que te aconteceu pra ficar assim com essa cara amarrada

 — Deixe de ser curiosa, Alabá, não tem nada de errado comigo

 — Se não tivesse eu não estaria insistindo para que me contasse, anda, me fale logo o que houve!

— Essa sua curiosidade é terrível, minha amiga!

— O que há de errado em querer ajudar uma amiga, quando percebemos sua angústia e tristeza?

— Sua atitude é muito generosa e digna de admiração, Alabá, mas não tenho nada para dividir com você neste momento. Tudo não passa de uma má impressão de sua parte que cisma existir algum problema, mas está enganada minha amiga, tudo vai bem comigo.

— Hum, sei. Se pensa que me convence do contrário está redondamente enganada. Eu a conheço muito bem, então não perca seu tempo com desculpas!

— Mas que mulher teimosa!

— Sou mesmo, e pode ter certeza que irei descobrir o que te aconteceu! Amiga, te devo muito. Se hoje possuo um pouco de instrução e até sei me expressar corretamente foi você quem me educou, não gosto de te ver triste

— Pois não fique preocupada comigo, estou bem

O diálogo entre as duas amigas é interrompida pela chegada de Joana que ordena Alabá a ir exercer suas tarefas na cozinha em companhia das demais criadas, enquanto Luz fazia-lhe companhia, lendo um conto escrito por Machado de Assis, escritor brasileiro, datado do ano de 1884, cujo título era “Capítulo dos Chapéus” e que retratava a hipocrisia, representada pelo uso das máscaras sociais, ali mostradas sob a forma de chapéus.

 A escrava adotada pela filha mais nova dos Dantas recebeu a melhor educação disponível na região naquela época e uma de suas funções era ler para sua madrinha, o que fazia com grande prazer, pois sentia-se grata por todas as oportunidades que dela recebeu, inclusive poder estudar e aprender a ler, o que era proibido para os filhos de escravos. Porém, naquela ocasião não estaria mostrando o mesmo entusiasmo de antes ao fazer a leitura, suas palavras eram vazias, sem a entonação costumeira, o que levou Joana a indagar se algo lhe estaria acontecendo

— Algum problema, minha filha?

Estou te achando tão desanimada, hoje...

— Não, senhora, só um pouco de indisposição

— Você, indisposta para ler boas histórias, desde quando?

—  Pois é, há sempre uma primeira vez para tudo na vida, madrinha.

Hoje me encontro assim, sem muito ânimo

— Bem, se está mesmo assim tão desanimada eu permito que se retire aos seus aposentos para descansar e amanhã espero que já esteja recuperada para dar continuidade à leitura, pois estou ansiosa para ouvir sobre essa história que parece ser muito interessante

— Está bem. Então, com sua licença...

 Após se retirar dali ficou reclusa no pequeno quarto localizado nos fundos do casarão, devidamente mobiliado com alguns móveis rejeitados por suas senhoras, pelo avançado tempo de uso. Afim de não serem queimados por ser herança dos antigos antepassados da família, Joana intercedeu junto a Dorotéia, sua mãe, para que doasse aos aposentos da escrava adotada para evitar o desperdício.O maior problema nisso tudo era não existir qualquer tipo de fechadura na porta do cômodo que garantisse impedir a entrada inesperada de quem pretendesse invadir o local. Existia apenas uma velha tranca feita de madeira que com certo esforço era possível romper e adentrar no recinto.

 Naquela noite Luz deitou-se mais cedo que o de costume. Embriagada de sono por infelicidade esqueceu de colocar a tal tranca na porta, aumentando ainda mais a pouca segurança do lugar. Era madrugada e todos dormiam, quando alguém segue a passos lentos em direção ao pequeno compartimento onde a jovem dormia. Um lampião permanecia aceso a iluminar o ambiente e para o invasor foi fácil ter acesso ao interior do recinto enquanto a moça encontrava-se deitada numa cama, totalmente desprotegida.

O mal elemento encosta novamente a porta e passa a tranca, após ter a certeza de que ninguém mais entraria ali aproximou-se da vítima que se encontrava num sono profundo.  Ao ponto de não ouvir o barulho da chegada do invasor. Mas, ao ter a boca abafada por uma das mãos do tarado acabou por acordar, porém, impedida de gritar por socorro. Seu agressor era Dionísio, que pela segunda vez a possuiu. Com seus braços fortes a segurou com tamanha força que não lhe permitia sequer espernear nem se libertar dos seus ataques repentinos.

 Usando apenas um vestido apropriado para dormir, sem roupas íntimas, ela facilitou a invasão de seu sexo pelo estuprador. A mulher se retorcia na cama como podia e lagrimejava pela dor sentida a cada movimento brusco feito por parte do tarado. Minutos depois era derramado dentro de sua vagina um liquido quente.

Imundo, o mesmo produto imundo que daria continuidade a vergonha estampada na sua face no dia seguinte ao lembrar que havia se tornado uma vagabunda possuída sempre à força pelo seu senhor na hora e no lugar que ele desejasse. Acontecia até mesmo ali, no seu quarto, enquanto dormia. Depois de satisfazer suas vontades egoístas ele se retira sem demonstrar qualquer remorso. Deixou para trás uma mulher violada na sua mais profunda intimidade, envergonhada, sentindo-se a pior pessoa do mundo. Na manhã seguinte ela demora a chegar no casarão, onde sua senhora a aguardava para ler o livro com a história que ansiava conhecer.

Por estranhar sua ausência mandou que Alabá fosse ver o motivo de tanta demora, o que foi atendido a passos largos. Logo que adentrou o apertado lugar percebeu rapidamente que algo de ruim havia acontecido com a amiga que ainda se encontrava jogada sobre a cama em completo desalento. Sua péssima aparência denunciava que não teria passado por boa noite de sono, suas vestes estavam rasgadas e com algumas manchas avermelhadas, acusando algum tipo de violência.

 — Luz, o que houve? A madrinha está fula da vida contigo porque não foi pro casarão ler o livro. O silêncio foi a única resposta recebida diante da indagação, o que deixou Alabá ainda mais preocupada, sacodindo fortemente a jovem que permanecia imóvel sobre o leito.

 — Ei, acorda, mulher! A madrinha te chama! Aconteceu alguma coisa contigo? E isso aqui encarnado no lençol é sangue?

Após muito ser incomodada, Luz volta-se para a importuna amiga e lhe dá uma ríspida resposta.

 — Pelo amor de Deus, me deixa em paz!

 — Como posso fazer isso, sua maluca, se a madrinha te chama lá no casarão? Levanta logo e vem, vamos que ela te espera!

 — Não dá, fala pra ela que não estou me sentindo bem

 — E desde quando a gente pode ficar dando desculpa pra ela, mulher, tá louca? Anda, para de desconversa e vamos logo de uma vez!

Luz, senta-se sobre o colchão feito de um grosso pano, recheado de um tipo de material granulado, geralmente usado naquela época e, olhando firmemente para a amiga, explica:

— Por favor, diz pra madrinha que eu não estou bem e não vou poder ir atender o chamado dela agora, mais tarde eu vou lá e explicarei tudo, tá bom?

— Não tá nada bom, Luz, se a sinhá souber que não atendeu seu chamado pra ficar dormindo pode ficar irritada e te m****r pro tronco, viu?

— Deixa de ser besta, menina, onde a madrinha faria isso comigo?

Volta e avisa que já estou indo!

— Nada disso, vou te esperar, ela me ordenou só voltar contigo

— Então espera...

— E Essas manchas aqui no lençol?

— Quer parar de ser curiosa, mulher?

A insistência de Alabá acabou por incentivar Luz a ir atender Joana, apesar de estar se contorcendo de dores nas suas partes íntimas e por todo o corpo, devido a forma brusca como seu agressor a possuiu na noite anterior. Chegando diante daquela que por respeito costumava chama-la de madrinha, não conseguia esconder seu mal-estar, o que de pronto foi percebido por ela, mesmo com seus esforços para evitar isso.

 — Está tudo bem com você, minha filha? Parece tão abatida, aconteceu alguma coisa?

 — Nada de muito sério, madrinha, é que ultimamente ando me sentindo um pouco adoentada

— E o que poderia ser? Irei m****r Martim ir até a cidade chamar o Dr. Rogério para vir lhe observar. Agora por favor leia a história que já esperei por demais e estou ansiosa para ouvi-la

  — Sim, senhora

Naquela manhã a jovem que algumas horas atrás havia sido vítima de um brutal estupro mais uma vez se esforçou para ocultar de sua protetora e das pessoas mais próximas a dor e vergonha que ardia dentro de si, para que não fosse piorada a sua situação diante dos demais moradores do lugar, pois seria terrível passar a ser vista como uma vagabunda qualquer que era usada pelo seu senhor afim de satisfazer seus caprichos sexuais.

 A fazenda ficava a alguns quilômetros da cidade e Martim, um jovem escravo que era grande admirador da jovem Luz e procurava incansavelmente cortejá-la, mas sem êxito, foi às pressas solicitar a vinda do médico para examiná-la. A convocação do doutor por Joana deixava atormentada a pobre moça, pois sabia que seu segredo poderia ser revelado. Mas, se podia contar com a proteção de sua madrinha que desde criança lhe livrou das mãos do violento pai e a manteve de seu lado em segurança por tantos anos, por qual motivo se recusava pedir sua ajuda mais uma vez, contra aquele que a atormentava?

Naqueles tempos as mulheres não possuíam qualquer forma de direitos e eram tratadas de maneira desumana. Sua importância como pessoa era limitada a servir seus maridos e lhes dar filhos. Diante disso, ela sabia que se levasse a público os abusos sofridos por Dionísio daria em nada. E o resultado seria ser severamente punida no tronco por acusar seu senhor.

Além disso, mesmo se possuísse como comprovar o estupro sofrido pelo fazendeiro de nada adiantaria, visto que no final de tudo era propriedade dele o que permitia que o mesmo fizesse dela o que bem entendesse. Joana era uma mulher decente, honesta e de bom coração, porém, não teria forças nem meios de frear as ações infames do irmão contra a escrava. A única coisa que pôde fazer em favor da jovem foi mantê-la ao seu lado e educá-la, lhe propor uma vida mais tranquila e longe do árduo trabalho na senzala.

Ali era o inferno para aos que viviam na escravidão, muita dor e humilhação e cansaço. Por muitas vezes teve a oportunidade de presenciar as injustiças cometidas contra outros de pele escura iguais a ela. Lhe doía vê-los sofrendo as terríveis agruras nos canaviais e nas partes mais áridas das diversas propriedades que possuíam seus senhores e lamentava por não ter meios para ajuda-los.

 Portanto, de que adiantaria revelar a ela ou a quem quer que seja sua angústia? Luz odiava os homens da família Dantas, não somente pelo fato deles terem escravizado a ela ao seu povo trazidos de sua terra natal, mas por terem assassinado seus pais de forma monstruosa e impiedosa diante de seus inocentes olhos, quando ainda não passava de uma criança, tudo porque seu pai querer fazer justiça contra o infeliz que tirou sua honra.

 Na ocasião Dionísio, o monstro que atualmente abusa de seu corpo impunimente, ainda era bem jovem. Entretanto, presenciou as maldades cometidas pelo pai com alegria. Ele parecia trazer em seu interior a mesma falta de caráter e compaixão característica daquela família maldita, com exceção, é claro, de Joana que sempre a protegeu.  O pior de tudo aquilo era ter que conviver com a presença repugnante do tarado que lhe abusava dentro daquela casa, servindo e respeitando-o como seu senhor sem poder fazer qualquer recusa e ainda com o risco de punição severa.

 Sentia-se mal, com enjoos constantes, já tinha idade suficiente para entender do que se tratava, talvez tivesse engravidado do monstro que a estuprava. Sua aparência física passou a definhar e tornou-se impossível esconder o enorme segredo que atormentava sua consciência.No dia seguinte Martim chegaria com o médico que iria avaliar de saúde e tudo se tornaria público. Só havia duas formas de resolver aquela situação, revelando a Joana o que vinha ocorrendo ou fugir de tudo e de todos.

Naquela madrugada sua escolha foi desaparecer sem deixar vestígios. Assim, arrumou uma pequena trouxa de roupas mais necessárias e saiu mundo à fora durante a madrugada. A fazenda era muito extensa e cheia de jagunços, mas desde pequena era esperta para escapar dos olhares atentos deles.

 Diversas vezes na adolescência saiu daquelas terras e foi visitar outros lugares a cavalo, mesmo pegando uns puxões de orelha da madrinha ao regressar. Toda Aquela peraltice lhe serviria agora para escapar despercebida dos astutos vigilantes que tinham ordem expressas do Barão para atirar no que se movesse.

A noite era fria e o caminho cheio de perigos, mas sua disposição em fugir para bem longe do maldito que a violentava e dos olhares acusadores que certamente surgiriam para desdenhar de seu estado vergonhoso fazia com que ela fosse em frente. Passou parte da sua vida no casarão, sendo bem tratada por Joana que lhe tinha como filha, recebeu tratamento diferenciado das outras escravas, quem acreditaria que a razão de sua desgraça vinha justamente do fazendeiro que a acolheu em sua casa?

Certamente iriam dizer estar ela grávida de algum negro, tentando jogar a culpa no seu senhor para se dar bem na vida. Se outros semelhantes a ela não fossem pensar dessa forma, mas com certeza os demais familiares e subalternos do miserável iriam acusa-la disso.

Seus pensamentos pareciam estar fervendo enquanto caminhava mata a dentro em direção a estrada principal que deveria estar a uns cinco quilômetros dali. Por sorte aquele percurso não lhe era estranho, sabia como ninguém onde colocava os pés. Como poderia revelar a Sinhá que estava sofrendo abusos do infeliz? Ela ainda era uma escrava e apesar de tudo lhe pertencia. Como exigir reparo dos erros daquele que até os bichos do mato temiam, devido a imensidão de sua maldade?

O final de tudo era ir direto para o tronco, sabia disso e por essa razão avexava os passos para o mais longe possível de tudo aquilo e do que poderia lhe acontecer de pior caso tudo fosse revelado. Não compreendia os motivos que levavam o maldito ter tanto desejo por ela, afinal, não passava de uma escrava como todas as outras. Seria porque possuía um belo par de pernas e quadris de fazer inveja a muitas branquelas?

 Foi Seu Ambrósio quem lhe falou sobre essas coisas, ele era um homem esquisito que morava a pouca distância daquelas terras, possuía pele amarelada e por isso não era escravo. Se dizia filho de um português cheio do dinheiro que cruzou com uma certa Oriental.

 E isso gerou tal homem de aparência estranha. Morava numa casa enorme, tinha vários negros por lá, porém, nenhum deles ia pro tronco por causa de besteiras nem viviam jogados às traças, comendo comida de porcos e sofrendo a miséria dos canaviais como os que ela conhecia na fazenda onde cresceu.

Enquanto caminhava pisando firme, hora entre arbustos, hora sob a escuridão da densa mata refletia sobre essas coisas. Pensava ir novamente à casa do velho que havia conhecido numa das vezes que se distanciou da propriedade dos Dantas, numa de suas aventuras a cavalo.  Sem que Joana soubesse. Foi ele quem lhe ensinou o caminho de volta e por pouco não ficou perdida, embrenhada na floresta naquele fim de tarde.

Pareceu ser uma pessoa de bom caráter, atencioso e cheio de respeito, talvez se lhe contasse seu drama pudesse lhe prestar algum tipo de ajuda. A escuridão da madrugada finalmente começou a desaparecer, o sol surgia no horizonte e a caminhada ficou mais fácil pela claridade. Poderia ter sentado debaixo de alguma árvore, descansado, mas preferiu seguir viagem.

Cresceu vendo o que acontecia com os escravos que ousavam fugir da senzala, logo bem cedo os farejadores e seus cães de caça saiam à procura dos pobres negros e no final do dia regressavam com eles arrastados pelas argolas de ferro presas a seus pescoços.

Ficavam em fila, um ligado ao outro, puxados como animais e surrados o tempo todo pelos carniceiros que eram pagos para arrancar suas peles através do chicote. Depois eram levados ao tronco onde apanhavam mais ainda. Se não morriam depois da imensa surra saiam de lá com as costas marcadas pela ferocidade das chibatadas nelas sacodidas pelos carrascos.

Sabia que se voltasse perderia toda a boa vida que sempre recebeu, devido a proteção de Joana que a acolheu desde que seus pais foram mortos. Sem dúvida, Dionísio usaria aquele ato como desculpa para lhe punir. Reverteria o que a irmã fez negando-lhe certos privilégios e a mandaria para o castigo no tronco ou no mínimo a colocaria fora da Casa Grande, onde ficava com sua madrinha, e passaria a ser tratada como uma escrava qualquer.

Assim, sem os cuidados recebidos de Joana ficaria à mercê do canalha para lhe servir de escrava sexual tanto quanto ele desejasse. Não poderia voltar, tomou a decisão de fugir daquela situação miserável e agora preferia morrer nas mãos dos jagunços que viessem a seu encalço do que voltar.

 Com a chegada da nova manhã e o caminho claramente despontando à sua frente a fugitiva segue em frente sem sequer pensar em parar sua apressada caminhada, pois estava ciente de que àquelas alturas os rastreadores já estavam em seu encalço. Precisaria andar pelo menos mais uns dois quilômetros e chegaria às terras do velho amigo em quem encontraria abrigo e proteção.

 A certa altura decidiu deixar o ramal por onde praticamente corria e novamente embrenhou-se na mata, pois sem dúvida seria presa fácil se ficasse exposta daquela maneira, pois os jagunços estariam circulando por todas as estradas do lugar a sua procura. Sendo mulher, eles acreditariam não ser capaz de empreender fuga por dentro da mata fechada.

 Cheia de animais nocivos, mas estavam redondamente enganados porque desde criança circulava por ali e conhecia tudo como a palma da mão. Já se aproximava do meio dia, o sol estava alto e a fome com o cansaço dominava seu corpo fatigado pela longa viagem. Subia por um alto monte, quando seus olhos quase desfalecidos avistaram ao longe o telhado da casa.

Ficava plantada no meio da floresta, envelhecida pelos muitos anos, cercada pela plantação de várias arvores frutíferas. Possuía uma estribaria com alguns cavalos e outras criações, uma enorme castanheira tão alta que dava a impressão de seus galhos baterem nas nuvens, muitos criados cuidavam de seus afazeres porque ali ninguém era chamado de escravo. nAcelerou ainda mais os passos e em poucos minutos se encontrava de frente com a porta de entrada. Rosário, uma das criadas, veio ao seu encontro e lhe deu um forte abraço, anunciando sua chegada.

Dona Benedita, uma mulher bastante magra e baixinha, com olhos rasgados nos cantos, com um largo sorriso nos lábios veio logo ao encontro da moça que usava um vestido róseo, com uma cinta azul e que parecia ter sido rasgado numa luta contra um tigre selvagem ou algo parecido, indagando assustada sobre a razão daquela situação alarmante em que a donzela se encontrava.

— Meu Deus, mas o que aconteceu com você, menina? Olhem só em que estado está essa pobre moça!

Ela mal conseguia se firmar. Suja, com suas vestes em farrapos, uma sandália de couro preso aos pés imundos de tanta sujeira, devido a longa trilha seguida até ali, seu estado era crítico e de dá pena. Sua pele negra estava roxeada por causa da exposição ao sol escaldante do meio dia, o suor ainda lhe escorria pela testa e se demorasse a chegar no seu destino talvez tivesse desfalecido.

— Levem-na para dentro e preparem um banho para que essa pobre moça possa se refrescar, depois sirvam alguma coisa para que se alimente! Sebastião, depressa, vá no cafezal chamar Ambrósio.Diga-lhe que a jovem Luz chegou aqui numa situação difícil e precisando de nossa ajuda. Ande, homem, se apresse!

— Sim, Sinhá, já vou indo!

Após ser atendida pelas mulheres e bem alimentada foi colocada num dos muitos aposentos da casa e ali permaneceu a descansar do enfadonho dia. O velho mestiço e sua mulher tentavam entender o que teria acontecido com a jovem para que aparecesse de repente na sua propriedade. Deveria ter sido algo muito sério para se encontrar naquela triste situação. Aguardavam ansiosos que ela acordasse e colocasse fim em tantas indagações.

 Ambrósio insistia que deveriam enviar um mensageiro à fazenda do Barão para lhe comunicar a chegada repentina da menina em suas terras, talvez assim ele lhes esclareceria os motivos de tudo aquilo. Entretanto Benedita, sua esposa, foi mais cautelosa e achou por bem esperar que Luz contasse sua própria versão dos fatos antes de tomar qualquer decisão quanto ao caso.

 Pois tudo indicava que algo de muito sério havia acontecido para que ela fugisse daquela maneira. A mulher morava naquela região a muitos anos e conhecia a má fama dos Dantas, sabia da forma desprezível como tratavam os negros e os casos de exploração dele para com suas escravas, abusando delas sexualmente sem que nada o impedisse de tamanha barbaridade.

 Fazendo uso do poder que a lei lhe dava como senhor delas e pelo título de Barão que lhe foi atribuído, simbolizando poder e autonomia sobre tudo o que estivesse sob sua tutela. Naquela época os grandes proprietários de terras, cafezais, escravos e engenhos de cana de açúcar eram os Barões ou Coronéis que dominavam tudo e a todos que estivessem numa posição social e econômica inferior à deles.

Quanto maior fosse a extensão de suas propriedades, maior seria o domínio deles na região. Nada lhes era sobremaneira superior, não temiam e nem respondiam a qualquer outra forma de justiça. Nenhuma que não fosse a deles próprios, o que fizessem suas mãos ali mesmo era enterrado e esquecido.

 Por causa disso faziam tudo o que bem queriam, sem temer qualquer forma de punição. Suas ordens eram imediatamente cumpridas por seus jagunços e um batalhão de homens sempre bem armados até os dentes estavam à disposição para executar suas determinações. Enquanto a fugitiva descansava aos cuidados do casal de idosos, não muito longe dali Dionísio confrontava a irmã, acusando-a de acobertar a fuga da escrava.

— Viu no que resultou a proteção exagerada que deu aquela maldita escrava, Joana, acabou por fazê-la pensar ser livre para sair destas terras quando bem entendesse, desde menina ela já tinha o hábito de passar por cima de tudo e de todos, sempre fazendo o que bem lhe dava na telha!

— Luz sempre foi responsabilidade minha, não sua, meu irmão. Foi a mim e não a você que papai confiou seus cuidados, então deixe que eu mesma irei resolver esse assunto com ela, como sempre fiz

 — Negativo, dessa vez serei eu quem tomarei as rédeas dessa mula brava! Além do mais, papai já não está mais no comando por aqui e sou eu quem toma as decisões. De hoje em diante você se limitará a dar ordens apenas aos serviçais da casa, em seus afazeres. Luz passa a ser responsabilidade minha, eu colocarei um cabresto no pescoço daquela jumenta braba!

— Você não ouse tocar num só fio de cabelo da minha menina, Dionísio!

— Não tocarei apenas nos seus cabelos, mais no corpo inteiro, quando encontrar aquela maldita fujona irei manda-la para o tronco!

— Juro por Deus, se você ousar fazer algum mal a ela eu...

 Joana é silenciada por Dionísio que a segura bruscamente pelos braços e lhe faz ameaças.

— Você fará o quê, Joana? Irá me impedir de dar àquela vagabunda o tratamento que ela sempre mereceu receber nessa casa? O tempo de privilégios acabou para sua protegida, irmã, de agora em diante ela será tratada como qualquer outra negra dentro de minhas terras!

Dionísio sai dali decidido a iniciar uma intensa busca pelos arredores para encontrar a escrava que havia se evadido, dando ordens a seus jagunços que revirassem todas as demais propriedades da região de cabeça para baixo até encontra-la e quem se negasse a cooperar com as buscas que fossem punidos com o rigor necessário.

Uma carta foi expedida pelo Barão aos demais escravocratas das províncias para que cooperassem e se soubessem de alguma informação sobre o paradeiro da fugitiva o informasse com urgência. Recebidas as ordens dezenas de homens se espalharam de Norte a Sul, Leste a Oeste da região em busca de pistas que levassem ao paradeiro da escrava. A mesma negra que se encontrava escondida na residência de Ambrósio e Benedita, agora a par de todos os acontecimentos e decididos a apoiar e proteger a pobre menina das garras do infeliz.

— Então, quer dizer que aquele demônio vinha abusando de você todo esse tempo, minha filha?

— Sim, e agora decidi não me sujeitar mais aos caprichos daquele monstro

— Claro, minha pobre menina, fez muito bem

— Mas haverá de pagar um alto preço por sua liberdade, minha Jovem

— Sei disso, Seu Ambrósio, e é por isso que não pretendo ficar aqui com vocês

— E para onde iria, minha filha? Não tem ninguém que possa protege-la por essas bandas, todos temem aquele endemoniado.

Negativo, você ficará sob nossa proteção, aquele diabo não irá ousar invadir nossa casa para leva-la daqui

— Muito obrigado pelo gesto de boa vontade em me ajudar, Dona Benedita, mas a senhora não faz ideia do que é capaz aquele desgraçado, poderá não somente invadir sua casa para me levar como não hesitará em matar qualquer um que tentar impedi-lo de cumprir seus intentos cruéis. Não irei coloca-los em perigo por minha causa

 — Luz está certa, meu bem, temos ouvido falar em todas as barbaridades que esse homem tem cometido nessa região.

 Sem, no entanto, receber qualquer punição, o melhor será ajudarmos com que ela possa prosseguir com sua fuga em segurança

— E o que propõe, Ambrósio?

— Preparemos dois cavalos com mantimentos para alguns dias de viagem, ordenemos um de nossos melhores criados a acompanha-la e lhe daremos o endereço de Justino, nosso filho. Ele mora próximo de Ouro Preto, no vilarejo de Cachoeira do Campo, com certeza ali esse ser maligno não irá encontra-la

— É verdade, minha menina, eu havia esquecido disso. Nosso filho é um rico comerciante daquelas redondezas, não será difícil localizá-lo

— Fico muito grata por tudo o que vocês estão fazendo por mim, nem sei como poderei um dia agradecê-los

 — Nos agradeça se mantendo viva e livre das garras daquele maldito estuprador

 — Farei todo o possível para que isso aconteça, prometo Depois de tudo pronto e sem perda de tempo a jovem e o guia que foi escolhido pelo casal de idosos para conduzi-la até seu novo destino seguiram viagem.

 Tomando um rumo oposto ao que possivelmente seria seguido pelos jagunços de Dionísio, num percurso longo e desconhecido até então para ela.

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