Capítulo 4

Melissa

Soltei o ar pela boca e inspirei de novo, e de novo, na esperança de me acalmar. Como ele tinha descoberto?

Estava a pelo menos meia hora no cubículo que era um dos banheiros, sentada na privada, encarando palavrões e outros recadinhos na parede, tentando manter um pouco de compostura.

— Tudo bem, mantenha a calma... se descontrolar não vai resolver seus problemas.

Finalmente deixei o banheiro ainda sem saber ao certo o que faria. Precisava pedir para Jean Pierre não deixar nenhum dos clientes chegar perto, já que desistir de tudo não era uma opção aquela altura.

Se professor Alexandre tinha suas suspeitas, ele continuaria sem confirmar nenhuma delas, não daria nenhuma oportunidade de ele descobrir a verdade. Aquele homem já tinha muitas coisas contra mim para acumular mais aquele segredo.

Continuei me dia normalmente e agradeci pela semana finalmente ter terminado. Fui para casa, papai estava jogado no sofá, agarrado a uma garrafa de pinga barata.

Ignorei sua presença e fui até a cozinha preparando algo para comer e subindo em seguida para meu quarto, depois de alimentada decidi tirar uma soneca.

Fechei os olhos grata pelo descanso.

Em alguma parte de mim sabia que aquilo não era real, ou ao menos não estava de fato acontecendo. Mas, parecia ser real em algum nível.

— Melissa?

Ergui a cabeça encarando um par de olhos verdes conhecidos. 

Uma lembrança.

— Me deixe em paz!

Escondi meu rosto contra meus joelhos, que eu abraçava com força. O chão estava gelado, mas não me importava. As lágrimas inundaram meus olhos.

— O que eles fizeram?

— Nada! Isso não é da sua conta.

Não, nunca era, mas ele era atrevidamente intrometido.

— Eles te irritam todos os dias, dizem coisas horríveis, mas nunca a vi chorar ou se encolher assustada... O que foi dessa vez?

Era tolice, mas mesmo assim.

Fiquei em silencio, odiando que ele visse minha fraqueza, logo ele. Alexandre, meu professor, era a primeira pessoa que eu realmente queria impressionar em anos. E lá estava eu, choramingando feito um bebê.

— Você pode me dizer sabe, qualquer coisa.

Voltei a encará-lo, a visão embasada.

— Eles ofenderam meu pai.

— Não faz mal te ofender, mas fica triste quando ofendem seu pai?

Assenti, sem ter certeza porque ele conseguia me fazer dizer a verdade. Sempre, não importa o que fosse ou quão constrangedor fosse, eu dizia.

— Você é bem... interessante...

Ele sorriu.

E naquele momento eu quis que ele sempre sorrisse daquele jeito para mim, algumas semanas depois “aquele incidente” aconteceu e Alexandre foi embora, sem nem ao menos de despedir.

Abri meus olhos encarando o quarto escuro. Já era noite.

Levantei indo tomar um banho, me distrai com um filme e só então notei que para variar estava sozinha em casa.

Papai deveria estar se divertindo por aí.

Passei meu final de semana tentando decidir o que faria com minhas aulas com Alexandre, era obvio que ignorá-lo – como de costume – não tinha surtido qualquer efeito.

Seria apenas mais uma aluna, responderia se perguntada e cumpriria com minhas obrigações ele que não ousasse ultrapassar aquela linha entre professor/aluna ou eu o denunciaria por assedio.

Não deixaria aquele homem bagunçar minha vida de novo, não mesmo.

Na segunda-feira a aula foi tranquila com o motivo dos meus pensamentos se comportando muito bem. Nenhuma pergunta impropria, nada de me cercar por ai e nem mesmo me olhou por mais de alguns minutos.

O que deveria me deixar aliviada me  deixou ainda mais inquieta. Teria sido assim tão fácil? Ou ele simplesmente tinha deixado tudo de lado, como se não importasse?

Voltei para casa encontrando tudo desordenado e papai no meio de tudo aquilo. Quis gritar com ele, mas sabia que naquele estado era inútil. Como de costume arrumei sua bagunça e fui para meu quarto, quando ele acordasse teríamos uma conversinha.

Acabei caindo no sono e acordando atrasada. Corri para a faculdade e tive um dia de nervosismo.

Só de pensar na minha apresentação mais tarde ficava tensa, não pelo show em si, mas pela possibilidade de que talvez, muito talvez, Alexandre poderia estar na plateia.

O que ele tinha visto quando me viu dançar? Tinha me reconhecido? O que será que tinha sentido?

Suspirei, estava dispersa demais, e isso não era nada certo. Tudo culpa dele. De novo.

O dia terminou e eu corri para chegar em casa, me trocar, arrumar a bagunça de meu pai, que para a própria sorte, tinha desaparecido e sair apressada para a Éden.

Entrei pelos fundos, o que foi notado por todos. Não expliquei nada para nenhum funcionário dando uma desculpa genérica. Só contei, parte da verdade quando vi que eu e Jean estávamos completamente a sós.

— Perseguidor? – ele levou a mão aos lábios.

— Não tenho certeza se ele é algo assim, mas deveria dizer aos seguranças para ficarem atentos... Quem sabe o que poderia fazer.

Era um exagero. Alexandre não faria mal a uma mosca, mas precisava garantir que meu segredo continuaria a salvo, mesmo que ele nunca mais pudesse colocar os pés naquela boate. Aliás, isso até era preferível.

— De onde conhece esse homem? – vi o interesse em seu rosto maquiado.

— Do meu passado.

— Ora vejam só. Scarlet tem um passado?

— Todos temos um passado não seja idiota.

— Pensei que você não.

Lancei um olhar irritado para ele, que riu.

— Admita esse boy está te perseguindo? Está apaixonado?

— Não! Ele não sabe... ao menos não tem certeza de que sou eu embaixo daquela máscara e se depender de mim nunca vai saber. Okay?

— Claro meu docinho, só acho que não deveria mentir.

— Ele não é nada.

— Se não é nada, como diz, por que se importa com o que pode pensar a seu respeito?

— Cinco minutos para Scarlet entrar.

Um dos responsáveis pelo palco apareceu para me avisar.

Me levantei, já completamente vestida e ajeitando minha mascara sobre meu rosto. Hoje eu usava collant azul turquesa cheio de pedrarias, meu batom era mais discreto e meu cabelo estava solto.

Nas coxias me senti mais nervosa do que de costume e quando caminhei até o centro do palco, parando em minha posição inicial de dança. Tentei não pensar que ele poderia estar bem ali, e fui bem sucedida, até certo ponto.

A música vibrou pelo corpo enquanto eu executava os passos, ensaiados a exaustão, deixando que como de costume a melodia fizesse meu corpo se mover ao seu ritmo. Era mais fácil do que pensar que tinha uma plateia me observando dançar.

Um dos holofotes passeou pela multidão, iluminando por breves segundos aqueles que se divertiam com o show. Paralisei reconhecendo um rosto entre todos.

Tive de juntar todas as minhas forças para me lembrar o próximo passo e continuar dançando.

Quando o silencio finalmente reinou, marcando o fim do meu número, eu agradeci desajeitadamente e fugi para a coxia.

Jean me esperava, chocado pela minha apresentação.

— O que...

— Ele está ai...

Essas palavras foram suficientes, ele apenas segurou meu pulso e me levou para o camarim o mais rápido possível.

Me livrei das botas de salto alto e já estava começando a tirar o collant quando uma confusão chamou minha atenção.

Ouvi gritos e alguns palavrões e antes que pudesse me encolher, já prevendo o que estava por vir, ele invadiu um lugar que deveria ser exclusivo para que as dançarinas se trocassem.

— Scarlet?

Jean atravessou seu caminho, se colocando como uma parede entre nós dois.

— É melhor sair daqui. Aqui é uso exclusivo de dançarinas.

— Preciso falar com ela. – ele apontou em minha direção.

Nunca agradeci tanto por estar de máscara. Sabia que se abrisse a boca para me defender seria descoberta então fiquei silencio.

— Scarlet não fala com clientes, nunca. Por mais bonitos que eles possam ser.

Alexandre fez uma careta.

— Por que ela mesma não diz isso?

Jean olhou sobre o ombro para mim, apenas pisquei, sem ter certeza do que poderia fazer naquele momento.

— Ela é muda. Não pode falar.

Jean Pierre era tão teatral.

Alexandre pareceu não crer e deu outro passo na minha direção, ao que meu amigo protetor ficou parado diante dele, feito uma estatua.

— Scarlet não vai falar com você... Não sou do tipo que briga, mas se tiver que brigar eu vou, deixa a moça em paz.

— Eu acho que a conheço e pela expressão naquele rosto – ele me lançou um olhar inquisitivo – Ela também me conhece, não é Melissa?

Usei cada célula do meu corpo e autocontrole para manter uma expressão neutra e não reforçar sua afirmação.

— Melissa? – Jean me lançou um olhar de interesse – Não conheço nenhuma Melissa.

De fato, ele não conhecia, nunca mencionei meu verdadeiro nome. E estivemos bem assim, eu era Scarlet e ponto final.

— Deixe eu tirar essa mascara e acabamos por aqui.

Quis gritar, mas sabia que aquilo só seria ainda pior. Lancei um olhar mortal para Alexandre. Tinha duas escolhas prolongar aquela palhaçada toda ou acabar com aquilo, como de costume escolhi o caminho de menor resistência.

Tirei a mascara sem me importar com a sobrancelha de Alexandre que se ergueu, apesar do que ele dizia, revelar minha identidade o tinha surpreendido.

— Satisfeito? – disse da forma mais arrogante que consegui.

— Nenhum um pouco.

— Pouco me importa, agora cai fora porque você já causou muitos problemas para mim.

— Eu? O que pensa que está...

Parei diante dele, ignorando sua altura diante da minha. Poderia muito bem parecer uma boneca ao seu lado, graças a sua altura e músculos bem constituídos do seu belo corpo.

— O que faço ou deixo de fazer com a minha vida é da minha conta e não da sua, se não tem mais nada a dizer a porta é logo ali.

— Isso, ficar dançando com essas roupas, está muito errado.

— Na perspectiva de quem? Meu corpo, minhas regras. Já ouviu algo assim?

— Não é sobre isso que estamos falando.

Os seguranças finalmente chegaram e cada um pegou um dos braços de Alexandre, ele tentou lutar contra eles.

— Não volte mais aqui Alexandre, essa é minha vida e não vou permitir que você se intrometa nela, não sou mais uma garota burra e frágil.

— Melissa! – ele berrou sendo arrastado dali – Melissa! Por favor, me escuta...

Ele foi levado para longe, me deixando com uma multidão que me encarava. Todos atentos para me julgar e perguntar sobre o ocorrido.

— Já podem ir andando... todos vocês, não tem nada para olhar aqui! – Jean berrou, encarando a multidão.

Aos poucos eles se dispersaram e eu cai sentada em uma das cadeiras, exausta de todas as maneiras possíveis.

— Melissa?

Balancei a cabeça.

— Vou te levar para a casa querida e você vai me contar essa história, cada detalhe e nem pense em tentar esconder algo, você não tem mais esse direito.

Era perfeito. Tudo que queria era ser discreta, sem revelar meu nome ou minha identidade, e agora tinha mais problemas, muito mais do que quando toda aquela confusão tinha começado.

Jean Pierre me levou para casa, em sua defesa digo que ele não me fez qualquer pergunta, mas seu olhar em minha direção dizia tudo. Ele tinha um Honda Civic branco, o que na minha opinião era um carro super masculino.

Não difícil de explicar onde morava, aquela era a parte fácil, mas quando o carro parou ao lado do meu prédio seus olhos de lentes azuis me encararam.

— E então... Pode me explicar o que foi aquilo?

— Preferia não ter que fazer isso...

— Sinto muito, você perdeu essa chance quando um maluco invadiu o camarim com as minhas meninas gritando que te conhecia.

— Temos um... passado.

— Percebi isso sozinho. Só me conte porque esse boy lindo se sente responsável por você?

— Pergunte isso a ele, e não para mim.

— Como se conheceram?

— Ele. – corei, mas respirei fundo – Era meu professor no ensino médio.

— Isso não era... errado.

— Talvez por isso ele tenha pedido demissão e desaparecido, depois de... me beijar.

— Uau! Isso até parece enredo de novela.

— Só se for um dramalhão mexicano.

— Talvez ele goste de você, quem sabe?

— Não me importa. Eu já tenho problemas demais para ter de lidar com ele.

— É assim mesmo que se sente bebê?

Fiz uma careta encarando Jean.

— Sim, é exatamente assim que me sinto.

— Se é o que diz...

— Bem, se já terminamos estou exausta... ainda tenho aula amanhã.

— Nós nem de longe terminamos, mas pode ir... Conversamos com mais calma na quinta-feira.

— Até.

Sai do carro sem olhar para trás, estava irritada com tudo e todos e se quer me dei ao trabalho de ver se meu pai estava em casa ou não, daquela vez não. O dia já tinha sido difícil demais.

Na manhã seguinte acordei sabendo que quando colocasse meus pés na faculdade Alexandre infernizaria minha vida, então tentei evitá-lo, e para a surpresa de zero pessoas, não consegui.

Mal tinha passado a entrada quando seguraram meu braço me puxando para um canto isolado e discreto, não ofereci resistência pois sabia que precisava colocar um ponto final naquela história de uma vez por todas.

— Você tem muitas explicações para dar.

— Primeiramente: não te devo nada, segundo: me larga ou juro que grito.

Ele fez o que eu pedi, mas continuou a me encarar, sua expressão demonstrava sua insatisfação com a minha pessoa.

— Melissa o que pensa que está fazendo?

— Não é da sua conta.

— Não é? – ele deu um passo em minha direção, me colocando contra a parede – Dançando daquele jeito, com aquelas roupas...

— Diga as palavras. – sorri irônica – Sei exatamente o que está pensando.

Por algum motivo isso me incomodava, a simples ideia de que ele me veria com maus olhos, que me rotularia de fácil, vagabunda e outras coisas piores me magoava, mas não deixaria que ele soubesse nada disso.

— Não! Você não sabe.

— Sei... Acha que eu não sei o que as pessoas pensam a respeito de garotas que fazem o que faço, não sou idiota e não dou a mínima para sua opinião.

— Se é como diz... porque o nome falso?

Engoli em seco, sem ter mais nenhuma justificativa valida.

— Pode dizer o que quiser... mas eu não estou sendo preconceituoso, ou machista ou seja lá o que estiver pensando. Pouco me importa como os outros a rotulariam, se existe um motivo para que não faça isso, nada tem a ver com a moral e os bons costumes. Me preocupo com a sua segurança, todos aqueles homens com os olhos em cima de você... – ele parecia realmente torturado ao dizer tais palavras – e se algum deles tentasse algo, dentro da boate você tem os seguranças e fora dela?

— Ninguém nunca me incomodou ou tentou nada.

— Ainda, acredite isso está fadado a acontecer.

— Eu sei me cuidar.

— Não, você não sabe.

— Escute aqui Alexandre você não é meu pai, não é meu amigo e não me deve nada, portanto pare de se intrometer onde não foi chamado.

Comecei a me afastar, louca para ficar o mais longe possível dele.

— Melissa, eu me importo com você.

Meu coração, tolo e esperançoso saltou em meu peito, cheio de alegria por aquelas palavras. Mas no minuto seguinte me lembrei, daquelas mesmas palavras ditas por aquele mesmo homem anos atrás, e lembrei de tudo o que veio depois.

— Não, você não se importa. – Continuei de costas, sem olhar diretamente para ele – Se você se importasse... não teria ido embora sem nem ao menos se despedir.

Não quis dar a ele qualquer chance de revidar, simplesmente sai andando sentindo a ferroada das lembranças me acertar com força.

Alexandre tinha me dado minha própria cota de desilusões, não que ele tivesse me prometido nada, mas tinha plantado uma sementinha perigosa dentro de mim, que no fim ele mesmo arrancou e pisou, sem jamais olhar para trás.

Jamais tinha deixado que ninguém chegasse muito perto , meus sentimentos ficavam profundamente enterrados , era melhor e mais fácil assim. Desde muito jovem eu tinha me acostumado a nunca confiar em ninguém, para nada. Pessoas eram traiçoeiras e cruéis, levou algum tempo para que eu aperfeiçoasse a técnica do “relacionamento casual”, isso veio depois dele. Por que Alexandre tinha me ensinado na pratica como era perigoso dar a um garoto/homem mais do que algumas semanas.

Consegui manter minha pose durante o dia, e fiquei aliviada quando não fui procurada novamente por ele, não tinha certeza de por quanto tempo conseguiria manter as aparências perto dele.

Quando voltei para casa, encontrei com meu pai vasculhando a casa, sabia o que ele queria – e assim como com Alexandre – tinha aprendido da pior maneira, a não deixar nenhum dinheiro fácil para que meu pai gastasse com seu vicio.

— Pode revirar a casa que não vai encontrar nada.

— Querida. – ele sorriu constrangido. – pensei, que você voltaria mais tarde.

— Percebi.

— Eu só... perdi minhas chaves...

— Papai eu não sou idiota, não se de ao trabalho de mentir.

— Você não pode falar comigo desse jeito, ainda sou seu pai.

— Que pena que esqueça disso com mais frequência do que eu...

— Melissa, eu... estou me esforçando.

— Não, você não faz nenhuma força, nenhuma...

— Isso é muito difícil para mim.

— Já faz quinze anos pai! Eu já sou uma mulher, ela nem deve mais pensar em você ou em mim, porque nos arrasta para lama por causa dela?

— Você não entende.

Ele levou as mãos ao rosto, escondendo a face de mim. Era triste, mas meu pai era um caso perdido, naqueles momentos eu sentia mais pena do que raiva dele. Não conseguia imaginar que sentimento era aquele que destruía alguém, pouco a pouco até não restar mais nada para se ver.

Um dia eu tivera um pai, mas aquilo diante de mim, que mais parecia um fantasma do que uma pessoa, não era esse homem.

Algumas vezes, por mais cruel que pudesse parecer, desejava que ele morresse, assim nós dois teríamos paz, e outras vezes eu desejava que ela sofresse, pois a morte parecia pouco para uma pessoa que tinha destruído outra como ela tinha feito.

— Vamos pai, eu faço algo para comermos.

Ofereci minha mão, que ele prontamente aceitou.

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