Algo além de uma Paixão
Algo além de uma Paixão
Por: Isaque Cipriano
1

Doutor, não sei como lhe falar tudo o que passei. Hoje é nossa primeira conversa e espero aos poucos ganhar sua confiança ao ponto que possa abrir meu coração e contar-lhe todos os detalhes de tão complexo momento ao qual tento sobreviver.

            Não estranhe, doutor, sei que nossa conversa sempre ficará em caráter confidencial, mas é difícil falar de algo tão íntimo, contar um caso pelo qual poderei ser julgado por muitos como culpado, como aproveitador. Atuarão como juízes da minha vida e pedirão minha cabeça, como executores de uma acusação ao qual considero-me inocente. Sim, não sinto que sou culpado deste momento tão intenso e tão único que vivi. Algo que pareceu destinado para mim, algo tão intenso e inesperado que nem mesmo o mais criativo autor de novelas poderia desenvolver em seus enredos.

            E é por isso que preciso saber se você vai conseguir me escutar sem estabelecer tal juízo. Sei que esta é sua profissão, mas, além disso, sei que é um ser humano como outros. Por isso, primeiro preciso me adequar a esta realidade para que consigamos conversar com tamanha franqueza.

            Não pense que sou vítima do destino ou que ficarei aqui tentando justificar cada ato. Na verdade, estou aqui justamente para revelar um segredo tão íntimo que somente eu e ela sabemos de cada detalhe. Foi tudo tão bem elaborado, cada passo refletido, cada momento, cada olhar, cada telefonema, que até mesmo aqueles que um dia desconfiaram são hoje testemunhas de que não passava apenas de impressões e que nada aconteceu entre nós.  

            Ela. Sempre tem uma “Ela”. Acho que desde que o mundo existe, são essas “elas” a fonte de nossas dificuldades, a causa de nossas crises, nossa maior necessidade, o motivo de nossa existência... Pelo menos é assim que me sinto diante de tudo isso.

            O problema, doutor, não é a existência dela, não, nunca será. O problema é que nossos destinos se cruzaram num momento tão inesperado que arrisco a dizer que chegou com um atraso de pelo menos doze anos.

Ou será que doze anos atrás o destino só queria me avisar de que esse momento estaria por vir?

Parece loucura, eu sei. Mas, mais do que isso, é como se esse tempo todo nós estivéssemos nos preparando para este encontro e quando aconteceu... bem, doutor, como posso dizer? Não é que possamos viver algo agora. Nem eu e nem ela.

            Não, não me leve a mal. Não considero que ela seja um problema. Na verdade, a considero um bálsamo perfumado que massageia a minha alma e a cada encontro traz uma nova esperança a minha cansada alma e me fortalece para que eu possa continuar minha caminhada por essa tão sôfrega vida.

            Parece que estou me contradizendo, mas estou vivendo em meio a contradições. Sou aquilo que disse nunca ser, ajo do jeito que disse que nunca agiria, vivo como nunca imaginei que viveria. Sou a luz que brilha no meio da noite e a luminária que se esconde no dia debaixo de panos para passar despercebido em meio à multidão.

            E esse conflito? Bem, ele tem me deixado bem perdido em meu destino, doutor. É como se a vida não mais existisse. Se ao lado dela as horas se esvaem, quando não a encontro, é como se nem mesmo um momento valesse a pena ser vivido.

            Sei que meu tempo de hoje está acabando, mas preciso desabafar um pouco mais. É possível que eu fique aqui, ainda que mais cinco minutos, doutor? Sei que deveria ter começado a falar assim que entrei, mas lágrimas sofridas insistiam em cair deste cansado e desesperado rosto. A intensidade de tudo que vivi é como se tomasse a minha vida e fizesse com que eu e ela (claro, doutor, ela está envolvida em tudo isso, é a fonte maior de toda a dor) estivéssemos ligados em um sentimento tão profundo e fluído que transpassa a própria dimensão humana, elevando-nos a um lugar genuíno, regado apenas de nosso amor. Se é assim que posso chamar aquilo que vivemos. Sei, doutor, que tudo foi algo além de uma paixão. E que talvez palavras não expressem estes sentimentos.  

Algumas vezes o ato de exteriorizar sentimentos tão profundos, de colocar em palavras aquilo tudo que está guardado dentro do peito, de simplesmente dizer para alguém tudo que aconteceu, nos deixa mais leve. E é o que tento fazer nestes momentos que me restam.

Chamávamos isso na empresa de “efeito panela de pressão”. Se não falássemos, íamos criando uma pressão tão grande dentro de nós que éramos capazes de explodir. E essa explosão levou muitos dos meus. Vi aqueles que desfaleceram porque simplesmente deixaram de se abrir.

Talvez esse seja o meu maior motivador. Talvez seja esse o motivo que aqui estou, revelando segredos ocultos da minha alma para um estranho.

Não se ofenda, doutor, mas não o vejo de outra forma, mas como um estranho, alguém a quem contarei fatos que nem mesmo a pessoas próximas eu contei. Talvez, além dela e, claro, eu, por ter vivido esta louca história, somente o você, doutor, saiba do que estou passando. Que pela eternidade as páginas deste momento em que vivi sejam ocultadas pelas areias do tempo.

Mas isso será bom, assim você não me julgará. Apenas escutará os fatos e tentará me ajudar. Posso contar que assim seja? Pelo bem meu e pelo bem daquela que está tão envolvida quanto eu nesta história?

Ah, a pergunta que talvez esteja em sua mente neste momento tão complicado. Por que eu e ela não podemos simplesmente assumir o nosso amor e seguirmos vivendo aquilo que talvez há doze anos esperamos? Pois é, doutor, esta parte da história é um tanto complexa e talvez eu só vá falar dela agora. Mas eu estou em um relacionamento sério há anos e ela... bem. Ela vive sua vida ao lado de uma pessoa. Vivermos nosso amor às claras faria com que nossa história envolvesse outras pessoas. E estas pessoas, que nada sabem desta paixão louca e intensa que nos invadiu e que simplesmente acelera nosso coração com a troca de um simples olhar, talvez não sejam merecedoras de passar por esta situação.

Antes de ir, doutor, queria só dizer mais uma coisa: hoje consigo entender Guimarães Rosa, quando este disse tão sábias palavras: “Viver é muito perigoso”.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo