04

Vovó e vovô tiveram três filhos: Tia Marta, minha mãe e tio Alfredo.

Tia Marta se casou com Osvaldo; um empresário rico, dono de uma rede de eletrodomésticos e completamente babaca. Com ele, teve Anelise e Júnior. Júnior se casou com uma dondoca chamada Martina, eles estavam juntos desde o colegial.

Minha mãe conheceu meu pai num baile dos anos 80. Ele era músico e ela; professora. Só tiveram a mim como filha.

Tio Alfredo — Deus sabe como — era um tremendo galinha, não casou nem teve filhos, e, mesmo com quarenta e nove anos, não saiu da casa dos pais.

Vovô faleceu quando eu tinha dezesseis anos. Vovó seguia intacta, com seus oitenta e dois anos de idade, vivia sob os cuidados de tio Alfredo e sua namorada da vez — uma stripper mega loira, magra e peituda, que abeirava os quarenta e cinco anos.

E, falando sério, tio Alfredo era feio de doer. Como conseguia essas namoradas? Tá aí um grande mistério.

Resumindo, essa era a minha família materna.

Bati na porta, inquieta. Para minha surpresa, foi tia Marta quem abriu — e não um de seus sete empregados sorridentes e sempre dispostos a ajudar.

— Oi, querida — disse ela, cumprimentando-me com beijinhos. Clara estava atrás de mim. Minha tia a avaliou da cabeça aos pés, me olhou e, desapontada, disse: — Ah, você trouxe sua namorada.

Estava aí um dos motivos de eu não gostar das reuniões familiares. Como meus relacionamentos não duravam tanto, todos cismaram que eu era lésbica e namorava Clara.

Eu não tinha nada contra a orientação sexual de ninguém, mas, para meu azar, eu sempre fui 100% hétero. Porque, vamos combinar, gostar de homem hétero era um tremendo castigo.

— E minha mãe? — Eu perguntei sem nem me dar ao trabalho de desmentir.

Ela não acreditaria mesmo.

— Ainda não chegou. — E rolou os olhos de maneira dramática. — Atrasada, como sempre. Vem, entrem, o almoço será servido daqui a pouco.

Dito isso, nós entramos na casa enorme, super requintada e cheia de móveis bonitos e polidos que, certamente, me custariam um rim. Tia Marta ia na frente, guiando-nos.

— Onde tá o pessoal? — Eu quis saber.

— Na sala de estar. — Disse. — Irei subir para chamar o Osvaldo. Clara, querida, que má educação a minha, como você está?

Mesmo a intenção sendo boa (e eu sabia que era), dava para notar a antipatia em sua voz.

— Hã... Bem, e a senhora?

Tia Marta a encarou mais uma vez, não sei se foi impressão minha, mas notei uma faísca de tristeza em seu olhar. Ainda assim, ela sorriu, e por fim respondeu:

— Melhor impossível. Fiquem à vontade, já, já eu volto.

— Ainda sou sua namorada? — Clara cochichou em meu ouvido, assim que tia Marta saiu.

— Pelo andar da carruagem — falei —, você será por um bom tempo.

Então fomos para a sala de estar, onde todos estavam presentes — exceto minha mãe, Anelise, Vicente e Martina. Sentados no sofá, comendo aperitivos, lá estavam eles. Na ponta; tio Alfredo, Simone (a stripper) e vovó, ao lado dos três; Júnior, meio pensativo.

— Zoe! — Foi meu primo quem exclamou, vindo ao meu encontro, assim que me viu. — Como você está?

— Estou bem — menti, no fundo tudo ainda doía um pouco — e você?

— Bem também. Trabalhando muito, comendo pouco. — sorriu. — Oi, Clara.

Minha amiga abriu um sorriso tímido e balbuciou algo como: “Oi”, mas foi quase inaudível. Eu a entendia, Júnior era um rapaz lindo, seus dreads curtos o deixavam ainda mais atraente, embora, para mim, ele sempre fosse o moleque que cuspiu no meu café com leite quando éramos crianças.

Fui até tio Alfredo e o cumprimentei, mas ele estava tão entretido nos seios da namorada que mal me deu bom dia. Então me ajoelhei, peguei nas mãos de vovó e gritei:

— BENÇÃO, VÓ.

Ela era meio surda, coitada, só funcionava assim. Sorriu, fez o sinal da cruz em minha testa e disse baixinho:

— Deus te abençoe.

Sorri para ela.

Depois de cumprimentarmos todos, nos sentamos em outro sofá e os olhares desconfiados e inquisitivos começaram. Meu tio cochichou no ouvido de Simone, que disse algo como: “Novos tempos, meu amor, novos tempos.”

Para pirraçar, deitei a cabeça no ombro de Clara, mas ela meio que me empurrou discretamente (e eu não entendi bem o porquê), aí eu preferi deixar quieto.

— Por que sua esposa não veio? — Perguntei.

— Martina está com cólica — Júnior explicou —, preferiu ficar em casa mesmo.

— Que pena — mas por dentro eu vibrava, Martina era insuportável, sério.

— Você quem vai maquiar Anelise? — Clara indagou, meio que puxando assunto.

— Vou — Júnior respondeu, contente —, como tenho especialidade em peles negras, será bem tranquilo. Apesar de minha irmã ser bem chata quando quer.

Eu ri.

E assim o clima foi ficando mais leve e descontraído ao passo que conversávamos sobre maquiagem, até Clara interagiu.

Meu primo era um maquiador profissional e bem conhecido na cidade, dava até palestras e tudo mais. O cara era foda.

— Quando eu me casar, quero que você me maquie — disse Clara, sonhadora.

— Será um prazer — Júnior respondeu, dando uma piscadinha para mim.

Ah, pelo amor de Deus!

— Desculpem a demora, meu carro deu defeito e eu tive que passar no conserto antes — a voz irritante da minha prima veio ao meus ouvidos — Vicente não pôde vir, teve uma viagem de última hora.

Virei para trás e a avistei.

Linda, diabo, como Anelise era linda!

A pele reluzia de tanta maciez, eu tinha certeza que seus poros eram todos fechadinhos. Os cabelos longos, pretos e alisados estavam soltos e brilhosos, usava um óculos escuro erguido na cabeça e roupa social. Júnior levantou-se para cumprimentá-la, dando-lhe um abraço apertado.

Então ela me avistou, me olhou com aquele tipo de olhar que eu odiava, como se eu fosse um verme e ela pudesse me pisar com seu par de Louboutin.

— Ah, oi, Zoe — disse num tom neutro.

— Oi, Anelise — devolvi, seca.

Virou-se para Clara e cumprimentou-a, depois foi até nossa avó e pediu a benção, abraçou tio Alfredo, mas não fez o mesmo com Simone, que acabou ficando sem graça.

Sorri para ela, como se eu dissesse: “Ei, eu te entendo. O problema não está em você.”

— Tia Augusta não vem? — Perguntou para mim, sem me olhar direito nos olhos.

— Vem — respondi. — Só está um pouco atrasada.

— Ela não te ligou? — Quis saber, e, antes de eu responder novamente, disse com desdém: — Ah, esqueci que vocês não são tão próximas.

Aquilo doeu, porque, por mais idiota que minha prima fosse, eu sabia, lá no fundo, que ela tinha razão.

— Ela não vai demorar — falei apenas, ignorando seu comentário e fingindo não me importar com aquilo.

No fim das contas eu estava certa, minha mãe não demorou para vir. Mas, para minha surpresa, ela não estava sozinha.

Ao seu lado vinha um rapaz, provavelmente na casa dos trinta, bonito e sorridente, cheio de músculos e roupas apertadas.

— Ah, não — sussurrei para Clara. — Ela vai querer arrumar esse cara pra mim.

— Amiga, com um boy desse, eu não iria reclamar.

Contudo, eu estava enganada.

Foi só minha tia chegar na sala com o marido, que minha mãe, para meu total desgosto, anunciou:

— Oi, família. Esse é Wellington. Meu namorado.

Então era isso, minha mãe estava mesmo namorando.

Minha mãe!

E era um rapaz mais jovem, que certamente queria roubar a pouca grana que ela tinha.

— Como você está? — Clara indagou, assim que sentamos à mesa.

— Se eu não estivesse sentada — falei baixinho —, certamente cairia.

— Relaxa, Zoe — minha amiga me consolou, mas eu ainda estava tentando digerir tudo aquilo.

Como minha mãe pôde fazer isso?

E logo agora, que eu tinha levado um pé na bunda e estava vulnerável e carente.

Tudo bem que ela não sabia, mas eu contaria caso ela se importasse de fato comigo.

Ah, como eu queria meu pai aqui.

Ele sempre sabia o que dizer. Sempre.

A comida foi servida, mas eu mal encostei nela. De repente, havia perdido a fome. E olha que comida para mim era sagrada, Pedro costumava dizer que eu comia feito leoa.

Pedro.

O canalha que me chutou sem dó nem piedade. Será que ele sentia minha falta? Será que um dia esse sentimento de ser insuficiente cessaria por completo? Será que eu serei feliz?

Ah, deixa pra lá, eu só precisava de um emprego.

— Como vai a confeitaria, Lise? — Minha mãe quis saber.

— Ótima, tia — minha prima respondeu —, vou abrir uma filial em São Paulo.

— Que maravilha! Por que não nos contou?

— Ah, mãe, eu queria fazer surpresa. E você, Zoe, trabalhando?

Merda. Merda. Merda.

— Não. Mas vai surgir algo legal. Só preciso ter paciência.

— Você tem que lutar pra isso. Não se acomodar. Veja minha filha, ela conseguiu se tornar uma grande empresária com muito suor e dedicação, eu acredito que...

— Discordo, seu Osvaldo — Clara opinou, agindo em minha defesa —, nem todos têm essa oportunidade. É fácil falar isso quando se é montado na grana. Pra gente, tudo é muito mais complicado.

— Mas...

— Eu concordo com a Clara — Júnior disse, abrindo um sorriso gentil para nós. — Zoe, se precisar de ajuda, não hesite em me chamar.

— Obrigada. Podemos... Podemos falar de outra coisa. Tio Alfredo, como vai a saúde de vovó?

— Muito bem, Zoe. Mamãe tem uma saúde de dar inveja. Só é meio teimosa às vezes, mas Simone é tão paciente, cuida tão bem dela.

— É de coração, querido — sua namorada afirmou, e eu gostei mais um pouco dela.

— E a vida amorosa, prima? Como vai? — E olhou de mim para Clara, irônica.

— Err...

— Conte à ela, Zoe. Conte a todos sobre seu partidão.

Encarei minha amiga, incrédula. Que diacho ela estava falando?

— Eu não...

— Zoe achou o cara perfeito. Ele é tão lindo, romântico e bom. Um verdadeiro cavalheiro.

— Mas eu pensei...

— Que éramos namoradas? Não, Júnior, não somos. Não sei quem começou com essa história, mas já passou da hora de desmenti-la. Eu e Zoe somos amigas. Melhores amigas. Não vivo sem ela, ela não vive sem mim. Mas só.

— Qual o nome do seu namorado, Zoe? — Tia Marta inquiriu, como se estivesse duvidando daquilo tudo.

Gelei.

Olhei para Clara em pânico, procurando por ajuda, os olhos de minha amiga brilharam, como se estivesse diante duma grande ideia, e, animada, ela respondeu:

— Alex.

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