Um Alemão na Minha Vida - Série Hensel
Um Alemão na Minha Vida - Série Hensel
Por: Bia Almeida
1. PIOR PAI DO MUNDO

Anne

Tudo de errado que um pai poderia fazer, o meu fez. Fui uma criança que, por ser criada no meio de adultos, enxergava as coisas de uma forma diferente de das outras que tinham a minha idade. Meu mundo não era cheio de fantasias como o dos meus amiguinhos e da minha irmã, a realidade na minha frente fazia com que eu visse a vida como ela realmente era.

Sou de uma família humilde que reside em um conjunto habitacional na cidade do Rio de Janeiro. O conjunto de prédios onde moro e fui criada é um daqueles que foram construídos para desocupar alguma moradia imprópria, como lugares invadidos ou favelas que surgiram em locais que afetam o poder público ou os olhos de quem tem algum poder aquisitivo. A minha comunidade se chama Faísca e muitas vezes faz jus ao seu nome, porque basta apenas uma faísca para que tudo voe pelos ares. Aqui, a violência e bailes funk regados a drogas e tiros são o carro chefe.

No final do conjunto tem uma favela que recebeu o mesmo nome; os foras da lei que comandam este lugar fazem com que as pessoas de bem sofram com a imposição da presença deles e com o fato de acharem que têm o direito de m****r em nossas vidas. Infelizmente, nada podemos fazer, porque nessa selva vencem os mais fortes. As famílias que, em um ato de coragem, negaram algo aos "donos" da comunidade tiveram suas vidas ceifadas ou foram expulsas sem ter direito de levar nada.

Conheço alguns meninos do tráfico, muitos têm a minha idade e infelizmente optaram por essa vida. Quando esbarro com algum deles, os, cumprimento sem muita intimidade. Nunca deixei de falar com nenhum deles porque, mesmo que tenham uma vida que não seja correta, são pessoas que foram criadas comigo. Fora que a gente nunca sabe o dia de amanhã.

Meu nome é Anne, sou filha de Lúcia e Francisco Martins e tenho uma irmã chamada Bruna, que é completamente diferente de mim. Aliás, muitas vezes eu acho que nasci na família errada. O meu refúgio sempre foi a casa da minha avó paterna. Ela era uma mulher que me amava e me dava muito carinho, algo que eu não encontrava na minha casa. Quando ela partiu, aos meus treze anos, me senti perdida e sozinha. Nunca cheguei a conhecer meu avô paterno e não tinha contato com meus avós maternos, porque eles residiam na Bahia e a minha mãe nunca foi aquela filha de ligar para os pais para saber como eles estavam, nunca teve interesse de aproximar seus filhos dos avós. Ela saiu de casa aos dezoito anos para vir morar no Rio e nunca mais voltou nem para visitá-los.

Meu pai, o que falar dele? Era um homem que cativava as pessoas. Sabe aquele cara, gente boa que todos gostam? Então, esse era o Francisco, conhecido como Chico. Era bem quisto na comunidade, mas as pessoas não sabiam o péssimo pai que era, sendo pior ainda como esposo. Minha mãe sempre foi uma mulher seca, nunca foi carinhosa comigo, mas eu entendia. Ela teve uma criação dura por causa do meu avô, que era militar e tratava os filhos como soldados, e pela péssima vida que ela levava.

Todos os dias, ela saía para fazer faxina e unha das pessoas para colocar comida dentro de casa, porque, apesar do seu marido ter um ótimo emprego, o dinheiro nunca chegava em casa, ficava pelos bares e com as mulheres com quem ele saía.

Sempre fui uma menina muito estudiosa e sempre gostei muito de escrever. Todos os meus sentimentos eram colocados na ponta do lápis, uma forma de desabafar e de ser ouvida por meio daquelas folhas. Enquanto minha irmã adorava ficar na rua, sempre fui caseira. Para mim, não tinha companhia melhor do que o caderno e as páginas de um livro, mas meu pai não gostava que eu ficasse em casa, me chamava de retardada por não gostar de passar o dia na rua. Muitas vezes, ele me suspendia pelo braço, me jogava no corredor, como eu fosse um saco de lixo, e fechava a porta, deixando-me do lado de fora. Aquela atitude me feria profundamente.

Conforme fui crescendo, acabei observando e entendendo algumas coisas. Uma delas era que ele ficava na cozinha, olhando secretamente pelo basculante as mulheres do prédio de frente tomando banho. Uma vez, acordei de madrugada e o flagrei nu em cima do tanque, masturbando-se. Como o basculante era alto, ele precisava subir em algo, e provavelmente não pegou a cadeira para não chamar a atenção da minha mãe. Deduzi que era esse tipo de coisa que ele fazia quando ficava em casa sozinho.

Como disse anteriormente, mesmo sendo criança, enxergava tudo ao meu redor e, por isso, não me relacionava bem com meu pai. Não admitia passar privações enquanto ele curtia a vida, e essa distância aumentou mais ainda quando eu completei treze anos, um pouco depois da minha vó falecer.

Por falar nisso, o velório dela foi deprimente. Meu tio saiu no tapa com meu pai porque ele levou sua amante, e depois, quando chegaram no apartamento dela, quebraram tudo porque todos se achavam no direito sobre seus pertences. O resultado foi que ninguém ficou com nada, nessa confusão até eu saí perdendo porque minhas fotos de infância foram todas rasgadas.

Eu tinha amizade com algumas pessoas da escola, dentre elas com um menino apelidado de Maninho, que um tempo depois entrou para o tráfico. Esse menino foi me procurar na minha casa e meu “maravilhoso e adorado” pai, bateu a porta na cara dele e, assim que entrou, pegou um pedaço de madeira e me bateu com ele. Coloquei meu braço na frente para me defender, e a cada investida, eu segurava o choro. Não derramei uma lágrima, e isso o irritou. Nessa madeira tinha um prego que rasgou meu braço, a dor era gigantesca, mas não desmoronei na frente daquele monstro. Se fosse nos dias de hoje, com certeza eu teria dado parte dele, mas naquela época espancar um filho era dar educação. Essa dor ficou guardada por muitos anos em meu peito.

Minha mãe não fez nada para impedir que ele me agredisse. Quando cansou de me bater, tomou um banho e foi para seu quarto se deitar com ela. Minha irmã me olhou com pena, porém nada podia fazer. Todos foram dormir como se nada tivesse acontecido. Meia hora depois, minha tia, irmã da minha mãe, chegou do trabalho. Ela estava passando uns dias na nossa casa porque havia se desentendido com o marido e, ao ver meu braço torto e ensanguentado, ficou horrorizada. Contei o que aconteceu a ela, que fez um curativo, mas não amenizou a dor e passei a noite toda gemendo. Ainda de madrugada, ouvi minha mãe dizendo que eu estava com dor, e ele não se importou, e ela como mãe, também não.

Pela manhã bem cedo, minha tia me acordou e me levou ao hospital público próximo a nossa casa. Chegando lá, ficamos em uma fila para fazer uma ficha de atendimento. Enquanto esperávamos, passou um grupo de enfermeiras e uma delas, quando viu meu braço, perguntou à minha tia o que eu estava fazendo ali, dizendo que, no meu caso, deveria ter ido direto para emergência. A enfermeira nos acompanhou e depois de todo os procedimentos e medicamentos, fui liberada. Por causa dos ferimentos, teria que voltar depois para engessar e, devido a essa agressão, meu braço só voltou a esticar novamente quando eu completei dezesseis anos.

Todas as vezes que o olhava, ódio crescia dentro de mim, e, a partir desse dia, nunca mais lhe dirigi a palavra. Alguns anos depois, ele e minha mãe se separaram.

Eu trabalhava e estudava e estava prestes a entrar na faculdade. Consegui passar para medicina com muito esforço. Uma menina humilde e a única da família a cursar uma faculdade, eu era um orgulho para mim mesma, porque não recebi parabéns de ninguém. A única coisa que eu ouvia era que médica ganha bem e eu poderia ajudar a família.

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