Dállia sabia o que estava fazendo, perguntou arrumando a postura, cruzou a perna direita sobre a outra fazendo a saia justa subir ainda mais. Tinha aprendido com o primeiro dono. Muitas vezes foi obrigada a ser enfeite de mesa. Era assim que ele a chamava. O dono dela, também era o dono do morro e costumava fazer noites de jogatina na laje do sobrado em que morava. Os convidados eram os chefões do tráfico, os cabeças que comandavam a área, acompanhados de seus seguranças armados, esses eram conhecidos como frentes. Além deles, circulavam os vapor, os responsáveis por vender a mercadoria na ponta, e os fogueteiros, sempre atentos para avisar sobre a chegada da polícia. O ambiente era regado a ostentação, bebidas caras e olhares afiados, onde cada palavra dita poderia custar caro.Ela? Dállia era o enfeite de mesa. Estava ali para enfeitar e qualquer um podia colocar a mão. Era isso que o primeiro marido dizia. — Podem pegar, usar à vontade, até tirar pedaço, mas sem levar para casa
O rapaz normalmente fazia tudo antes do pai chegar e se trancava no quarto com a irmã, mas naquele dia, ele havia se atrasado, esqueceu da hora jogando futebol com os outros rapazes do condomínio e acabou precisando lavar os vestidos de Amara durante a noite.Russo chegou e não gostou de ver o filho ali, fazendo uma tarefa que ele julgava ser exclusivamente feminina. Agarrou Tank pela camiseta e puxou com força, a gola marcou o pescoço do rapaz, o tecido rasgou, já era velho, ganhada de um dos colegas.Mas quando se levantou Russo o acertou com um soco o garoto caiu e bateu a cabeça na quina de uma espécie de balcão que havia na cozinha para guardar louças. A pancada foi tão forte que a dor se espalhou, ficou um tempo perdido entre a consciência do sangue quente que escorria entre seus dedos e a escuridão que tentava tomá-lo. Foi o grito de Amara que o despertou, o choro infantil e indefeso que chamava seu nome.— DODÔ! DODÔ!Era assim que Amara o chamava, nem se lembrava do porque, j
Ainda assim, Tank não conseguiu seguir a ordem, não era nada excepcional, quando recebeu a missão, até gostou. Alguns traficantes de uma comunidade pequena não estavam repassando os lucros da venda de cocaína, ele deveria cobrar e deixar um recado, o gerente do ponto de vendas deveria ficar paraplégico. — Você só precisa garantir que ele nunca mais ande, de no processo ele morrer, tudo bem, mas ganha um bônus se conseguir deixá-lo vivo. O importante é a mensagem.O rapaz ainda era um adolescente, mas tinha potencial, todos sabiam. Ele demonstrava resistência à dor e uma força física impressionante pelo corpo que tinha. Na época quase não comia, então era magro demais para conseguir se desenvolver, ainda assim, era bom e todos achavam que ele voltaria como um executor. Não aconteceu. O gerente estava ajoelhado bem na sua frente, já sem os dentes e o nariz completamente destruído, mas foi então que tudo mudou e o destino de Tank na organização que parecia promissor, fez um outro cam
Era engraçado, o menininho parecia um anjo de tão bonito, cabelos lisos e arrumados lembravam os de um pequeno membro da realeza britânica, a voz suave e os olhos atentos, ainda assim segurava uma pequena pistola de brinquedo e apontava para ela. — Olá, quem é o homem forte por trás dessa arma enorme? O menininho de pouco mais de quatro anos olhou para Amara tentando decidir se ela era um perigo ou só uma menina muito bonita. Lembrou do que o pai sempre dizia. — Seu trabalho é proteger a sua mãe e a sua irmã. Nada mais importa, Edgar, ninguém vale mais do que elas, nem mesmo eu, entendeu? Ele entendia, ou ao menos havia internalizado isso. Lembrava da única vez que gritou com a mãe, a fala do capo foi firme, a voz ganhou um tom mais baixo, os olhos vermelhos como se desse uma ordem a um soldado e não a uma criança. — Não vai gritar com a minha mulher, Edgar. Ela é a dona dessa casa. Demorou até que o pai aceitasse suas desculpas e precisou que a mãe intercedesse por ele. Descobr
Não precisou esperar muito, o capo abriu a porta como uma tempestade, os olhos cheios de pânico. Ele estava com medo, mas ela. Ela se encantou com a visão que teve. Mel não sabia quando começou a amá-lo loucamente, mas sabia que era aquele homem descabelado, de bermuda larga, e chinelos de dedo por quem o coração batia mais forte. Cresceram juntos, mas em uma curva do destino acabaram se afastando, passaram anos longe um do outro e quando Endi voltou, já não era mais o garoto das brincadeiras na cachoeira ou das partidas de futebol. Era um advogado, um empresário, um assassino. Algo nele havia se apagado, quase como se a ingenuidade tivesse sido substituída por uma dor silenciosa.Mas agora, Mel só conseguia pensar no quanto queria mergulhar com ele na cachoeira, ou correr um do outro enquanto davam dribles ensaiados com a bola de futebol. Os pensamentos de Mel foram interrompidos pelo marido, ele a segurou pelos ombros com os olhos transbordando um tipo de medo que pessoas comu
O capo entrou em casa de mãos dadas com a esposa, olhou para o filho e sentiu o peito se encher de orgulho, Edgar estava ali, os bracinhos tremendo, a ponto de fraquejar, mas ainda com a expressão de um soldado. Quando Mel e Endi voltaram, Edgar finalmente abaixou os bracinhos, mas ainda com a mesma pose de herdeiro do crime. Mel abriu a boca para corrigi-lo, não era essa a educação que esperava do filho, gostaria que ele tivesse se comportado, mas ao invés disso encontrou uma cena de filme de ação infantil.Tentou, mas o marido pegou o menino no colo como se ele fosse um herói de guerra.— Excelente trabalho, Edgar! Estou muito orgulhoso de você! Isso merece uma recompensa.Os olhos de Edgar brilharam.— Qualquer coisa?!— O que quiser.Ele nem pensou.— Quero ir trabalhar com você amanhã! O dia todo!Endi repassou mentalmente as tarefas que tinha para o próximo dia, nada além do normal. Só terminar uma tortura, enterrar um corpo, alimentar os jacarés e verificar algumas propriedad
Tank sabia que os castigos da máfia eram crueis, mas ser julgado pelo capo tinha um preço muito maior. Endi era conhecido por deixar poucos homens vivos. Bem poucos. Não conseguia entender as razões para merecer aquela punição, acabou dando uma risada de desgosto quando descobriu o que aconteceria. Russo havia passado anos aterrorizando a própria filha e ninguém, absolutamente ninguém fez nada, achava impossível que durante todo aquele tempo, desde a morte da mãe, as pessoas não percebessem o absurdo que viviam. Tank estava sempre mal-vestido, não conseguia ir aos treinos e quando aparecia estava machucado, Amara também só conseguiu ganhar alguma dignidade quando o irmão se tornou um soldado, antes disso, apenas o básico, ainda que Russo recebesse um bom salário da organização pelo tempo de serviço prestado. Ainda assim, ele estava sendo condenado por falar algo que julgava ser verdade. Se lembrou da noite em que o próprio destino foi traçado. Estava com os outros soldados da org
Tank estava quase dormindo, ou talvez o mais correto seria dizer desmaiando, o calor e a sede o faziam pensar que ser arremessado para os jacarés fosse melhor do que sentir o ferro fervendo corroendo a sua pele. Ainda assim, mesmo com a dor e a agonia, às vezes, ele sorria. Sorria quando se lembrava da felicidade de Dállia sempre que ganhava um vestido novo, de como ela ficou com os olhos arregalados o dia em que ele segurou seus pés e pintou as unhas, e principalmente como ela dizia que o amava com um sorriso imenso quando terminavam de fazer amor. Era assim que estava, entre desejar a própria morte e se manter vivo em uma lembrança doce que Tank entendeu o significado do instinto de sobrevivência. Sentiu o cabo de aço se mover, o rangido metálico, o corpo estremeceu inteiro antes de reagir. Girou o corpo com toda a força que tinha, precisou de alguns impulsos até que se agarrou ao cabo de aço, uma tentativa que sabia ser inútil, ainda assim, tentou. Não olhou para baixo, só pa