6. Abaixando a Guarda

~ Hades (Gael) ~

A caneta desliza sobre o relatório e corta mais um número. Do outro lado da mesa, o funcionário segura a respiração; ninguém sorri quando abro os olhos. Caos e sangue são linhas naquele papel e eu sou quem decide se elas sangram até o fim, poder é isso: mover pessoas como peças num tabuleiro que só eu conheço.

A porta se abre. Um dos meus homens entra, o rosto pálido de quem traz notícia ruim.

— Don Hades... o posto do norte foi invadido.

Levanto o olhar, o ar parece pesar.

— Invadido? — repito, baixo. — Por quem?

— Acreditamos que foi o grupo de Vassili. Eles levaram o carregamento e dois dos nossos homens não voltaram.

O silêncio dura um segundo. Depois, o som seco do meu punho explode contra a mesa. O tampo estala, o tinteiro vira, fazendo a tinta se espalhar como sangue fresco.

— Todos os envolvidos vão morrer. — minha voz é grave, firme. — Quero nomes, rostos e corpos. Hoje.

— Sim, Don Hades. — ele gagueja, saindo quase tropeçando.

Fico sozinho de novo. A raiva pulsa, mas há outra coisa queimando por dentro. Algo que não deveria existir e é por isso que desço ao porão.

Summer está sentada no chão, absorta em pensamentos. Os lábios se movem, como se murmurasse um segredo.

"Ele é um carcereiro... assassino... perigoso..." — ela sussurra, sem saber que estou ali.

O sorriso cínico surge antes que eu perceba. Dou um passo, e minha sombra engole o espaço.

— Então eu sou um carcereiro. Assassino e perigoso? — minha voz corta o ar.

Ela se encolhe, assustada, mas não desvia o olhar. Coragem ou tolice, ainda não sei.

— Hades, esse é mesmo o seu nome? Nunca conheci alguém chamado assim.

Arqueio a sobrancelha.

— E isso importa?

— Só quis saber. Foi sua mãe quem escolheu?

A palavra "mãe" me atinge como lâmina. Minha mandíbula endurece.

— Minha mãe? — rio, sem humor. — Eu não tenho mãe, e com certeza não foi aquela desgraçada quem me deu esse nome.

Ela parece surpresa. Há curiosidade nos olhos, e algo mais — piedade.

— Mas você tem alguém?

Dou as costas, irritado. Essa conversa passou dos limites.

— Pode sair.

Ela hesita.

— Como assim?

— Pode andar pela casa. Mas não faça nada de que vá se arrepender.

— Ainda estamos na Sicília? — arrisca.

Viro devagar, e o olhar que lanço basta para silenciar qualquer pergunta.

— Você está exatamente onde deve estar e isso basta.

Ela respira fundo, os olhos marejados.

— Você poderia me levar ao cemitério? Quero ver minha mãe.

A lágrima que desliza pelo rosto dela me corta de um jeito que eu não esperava. Tento ignorar, mas o som da própria respiração me denuncia. Viro o rosto, buscando um refúgio no silêncio, e deixo escapar, baixo demais para querer ser entendido:

— Te leszel a megváltásom vagy kudarcom, Mia Béla?

— O quê? — ela pergunta, enxugando as lágrimas. — Que idioma é esse?

— Húngaro — respondo, forçando a voz a soar fria. — Minha língua materna.

— E o que significa?

— Não te interessa.

Ela suspira, cansada, mas firme. — Tudo bem. Só me leva ao cemitério, por favor.

— Minha mãe é o que ainda me mantém de pé e lá é o único lugar onde eu encontro paz. — diz, sorrindo entre lágrimas, e o sorriso é o golpe final.

Meu peito pesa. Por um instante, penso em dizer que sim. Que eu a levaria, que entendo. Mas engulo tudo antes que se transforme em fraqueza.

— O problema é exclusivamente seu. — murmuro, desviando o olhar, como se isso bastasse para me proteger dela.

O sorriso dela é uma lâmina que me corta por dentro, não é só beleza, é inocência e esperança. E eu odeio isso, porque me faz lembrar do que jurei enterrar.

Por um instante, vejo outro lugar. Um quarto abafado em Budapeste, paredes úmidas, cheiro de álcool e desespero. No canto, uma mulher de cabelos escuros e olhos claros demais para o inferno em que vivíamos. Minha mãe, ela sorria assim. Mesmo no caos, o sorriso dela não cabia na miséria.

Prometia o impossível, um sorriso que mentiu quando disse: "vai ficar tudo bem, Gael." Mas não ficou, nunca ficou. O sorriso de Summer tem a mesma luz, a mesma ingenuidade estúpida. E eu odeio isso, porque me faz querer acreditar de novo.

Perigoso é pouco para o que sinto.

Saio, deixando-a com a falsa liberdade de caminhar, mas algo em mim já não obedece às ordens.

No escritório, reviso relatórios quando Marco entra com papéis e o mesmo sorriso insolente de sempre.

— Gael, o carregamento chegou inteiro.

— Já disse pra me chamar de Hades. — resmungo.

— Tá bom, Don Hades, rei do submundo siciliano. — ele ironiza. — Que anda distraído por causa de uma certa loirinha vagando pela casa.

Levanto o olhar devagar. O silêncio fala por mim.

— Marco...

Ele ergue as mãos, rindo.

— Calma aí, senhor soberano. Só digo o óbvio. Você banca o durão, mas eu vejo como olha pra ela. Não me engana.

— Não existe nada.

— Claro. — ele revira os olhos. — Tanto "nada" que você deu liberdade pra garota. Isso é o quê, caridade?

Cruzo os braços.

— Ela não representa perigo.

— Não. — ele se inclina, o tom agora mais sério. — Mas representa outra coisa, sentimento. E você sabe o que acontece quando um homem como você começa a sentir.

Fico em silêncio. Ele sabe que acertou.

— Escuta. — Marco baixa o tom. — Você não precisa perder o controle, só precisa lembrar que ainda existe o Gael aí dentro, irmão. O Hades, todo mundo já teme, mas o Gael... esse é o que pode te salvar.

O nome pesa. Engulo o desconforto.

Na manhã seguinte, dou ordens para trazerem o cavalo dela — Príncipe. Quero que ele seja tratado melhor que qualquer animal do haras.

Quando tudo está pronto, vou até o quarto dela.

— Quero te mostrar algo. — digo, seco.

Ela hesita, mas me segue. Descemos até o pátio, o som de um relincho corta o ar.

— Príncipe? — a voz dela quebra, num sussurro.

Ela corre até a cerca, as lágrimas caindo antes mesmo de tocar o animal. Ele relincha, e ela o abraça, soluçando.

— Você... trouxe ele?

Fico parado, observando, o brilho no rosto dela é perigoso demais.

— Por quê? — ela pergunta, os olhos fixos em mim.

Engulo em seco.

— Porque o que é importante pra você... agora também é importante pra mim.

Ela me olha como se atravessasse minha pele, como se visse o homem por trás do monstro.

E, pela primeira vez, percebo que minha armadura começa a rachar.

♡♡♡♡♡

Tradução da frase "Te leszel a megváltásom vagy kudarcom?": "Tu serás a minha redenção ou o meu fracasso?."

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