No quarto do hospital, recuperei a consciência.
A primeira coisa que vi foi o rosto aflito da Lívia.
Ela era minha melhor amiga da faculdade. Na época, ela foi contra meu relacionamento com Davi. Dizia que se entregar de corpo e alma a ele não teria um bom fim.
Tínhamos prometido ser madrinhas uma da outra, mas ela nem apareceu no meu casamento.
Eu não deveria tê-la procurado novamente, mas… eu realmente não sabia em quem mais confiar.
— Você não dizia que era a mulher mais feliz do mundo? Como deixou sua vida chegar a esse ponto?
— Cadê seu marido? E sua filha? Por que o médico disse que você está morrendo?
Lívia chorava enquanto me fazia perguntas.
Lágrimas escorriam pelo canto dos meus olhos, mas ainda assim sorri — Lívia continuava com aquela língua afiada, mas o coração mole. Talvez ela fosse a única que ainda se importava comigo de verdade.
Tentei falar, mas estava fraca demais até para emitir som.
Olhei para ela, sinalizando com os olhos para que pegasse minha bolsa.
Ela a abriu, encontrou o contrato e leu rapidamente. As lágrimas voltaram com força.
— Yasmin, isso não pode ser verdade! Você não vai morrer!
Ela se debruçou sobre mim, chorando de forma desesperada.
Olhei para o relógio na parede. Faltavam três horas.
Três horas até minha vida chegar ao fim.
De repente, o celular tocou.
Lívia atendeu e colocou diante de mim. Era um áudio da Ema.
— Yasmin, depois de tantos anos competindo comigo, finalmente se rendeu, né?
— Criança, marido, pais… Desde o início, todos só se importaram comigo.
— Você já devia ter entendido: nesta família, você nunca vai ser melhor do que eu.
Lívia tremia de raiva.
— Como pode existir uma pessoa tão nojenta assim?
Mas eu… Só consegui ficar em silêncio.
Antes, quando ela me provocava, eu retrucava. Agora, só restava o arrependimento.
Eu me arrependia… De ter sido eu quem trouxe a Ema pra dentro da nossa casa.
Naquele ano, eu tinha dez anos. Fui com meus pais ao orfanato entregar doações. E lá estava ela — encolhida num canto, usando um vestido limpo, mas velho, magricela como um graveto,
com um olhar que misturava medo e desejo.
Enquanto as outras crianças corriam para pegar os presentes, ela nem se aproximava. Parecia um gatinho sujo e assustado.
Senti pena.
Segurei a mão dos meus pais e supliquei:
— Vamos levar ela pra casa?
Eles hesitaram, mas vendo a minha insistência, acabaram concordando.
Ema virou minha “irmã” adotiva.
No começo, ela era quieta, sempre me seguia com cuidado e me chamava de “Irmã” com timidez.
Eu dava meus brinquedos preferidos pra ela, levava comigo pra escola, e até meu desejo de aniversário passou a ser:
— Quero que minha irmã seja feliz.
Mas depois… tudo mudou.
Ela era ótima aluna, sabia agradar os professores, chorava com facilidade, e parecia sempre prestativa e frágil na frente dos meus pais.
Quando percebi, meus amigos tinham começado a se afastar.
Os professores a preferiam. Os colegas viviam ao redor dela. Meus pais diziam que eu era “sensível demais” e que ceder um pouco não fazia mal.
Logo percebi: muita coisa ela fazia “sem querer”.
O vestido novo que comprei? Ela usou na escola para se exibir.
O concurso que preparei por semanas? Ela “entrou de última hora” e saiu com o troféu e os aplausos.
Quando a confrontei, ela riu, sem disfarçar:
— Eu sou melhor que você em tudo. Agora, sou eu quem eles amam.
— Vou tomar seu mundo, pedacinho por pedacinho.
Ela era astuta, manipuladora. Todos ficaram do lado dela.
Pensando agora… É absurdo. É patético.
Desde o começo, ela nunca quis ser minha irmã. Ela veio para roubar a minha vida.
Meus pais, meu marido, até minha filha — todos acreditavam que ela era mais importante do que eu.
Eu reconheço: perdi feio.
O alarme do monitor cardíaco soou, faltavam três minutos.
— Yasmin! Abre os olhos!
Lívia gritava no meu ouvido, segurando o celular:
— É sua mãe! Ela mandou mensagem! Deve ter sentido que algo aconteceu com você!
Com o que me restava de força, consegui abrir os olhos e li a mensagem:
“Yasmin, quando a Ema sair do hospital, deixa ela ir morar na sua casa de praia, tá? Você vai estar viajando mesmo.”
“Ah, e não esquece de contratar uma babá pros três. A Ema ainda não conhece bem a região.”
Os olhos da Lívia estavam vermelhos. Ela mordeu os lábios, sem dizer nada.
Eu… só consegui sorrir.
Aos olhos deles, eu não passava de um caixa eletrônico ambulante. Mesmo morrendo, ainda tinha que deixar tudo ajeitado pra “irmã adotiva”.
Deixa pra lá.
Passei a vida inteira tentando agradar todo mundo. E no fim, não sobrou nada pra mim.
Finalmente… posso desistir.
Meu coração… dói tanto. Estou tão cansada. Não quero continuar…
Lívia ainda gritava, chorava, mas eu já não conseguia escutar.
18 de junho de 2025.
Yasmin faleceu em um hospital a cinco quilômetros de casa.
Sem nenhum familiar ao lado.
Tinha apenas 27 anos.