Shi - A morte é só o começo
Shi - A morte é só o começo
Por: Gil Fox
Prólogo

É engraçado como nossa memória funciona. Uma hora você lembra da sua infância, tipo: o nome da sua professora do pré, mas não lembra da sua própria quase morte ou talvez seja totalmente morte. Ai gente, fiquei confusa. Deixa eu começar do começo para ver se eu e vocês entende:

— Não acredito que você falou isso mãe. — Olhei para a minha mãe no volante do nosso carro com total descrença, seu meio sorriso fazia com que ela parecesse bem mais jovem que seus quase quarenta anos. Estávamos voltando para casa depois de uma competição minha de atletismo. Aquilo era minha vida, dedicava todo o meu tempo treinando e melhorando meus números e amava aquilo tudo. Claro que ganhei o primeiro lugar de todas as corridas que houve naquele dia, sem pretensão, eu era muito boa, e participava de todas as corridas que eu podia. — Ele é estranho mamãe.

— Todo garoto na idade dele é, querida. — Minha mãe riu, eu adorava o som da risada dela. Era fofa e engraçada ao mesmo tempo, na verdade essas duas palavras definia minha mãe. Ela era daquele tipo de pessoa que você gostava de ter por perto — Seu pai era estranho.

— Sério? — Meus pais eram aquele casal super lindinho que faz com que acreditemos no amor eterno. Dava para imaginar os dois velhinhos sentado em uma cadeira de balanço apreciando o tempo igual os filmes que assistimos na TV.

— Sim. Era um nerd desengonçado, lindo, estranho, lindo, engraçado, lindo, fofo, lindo. — Ela deu aquele sorriso apaixonado, estou dizendo, meus pais são incríveis. — Já falei lindo?

— Sim mãe. — Revirei meus olhos e rimos uma da outra.

O que veio em seguida? Eu não me lembro, só lembro-me de acordar em um quarto branco, com cheiro estranho, sentir muita dor, dormir sem ter sonhos e de acordar várias vezes sem lembrar de nada, cada vez que acordava a dor rasgava meu ser e eu queria que tudo aquilo passasse, nesses momentos sentia a presença da minha mãe me dando forças e dizendo que tudo daria certo.

A primeira vez em que realmente tomei consciência de mim estava chovendo lá fora. Eu sei porque escutei o barulho na janela. Abri os olhos e gemi alto, meu corpo todo doía muito, tentei me mexer, mas estava presa. O pânico me consumia. Tentei falar, mas apenas um som horrível, tipo aquele que o Darth Vader faz, saiu, o som dos meus batimentos cardíacos em meu ouvido parecia que ia explodir a minha cabeça.

A porta do quarto abriu e uma moça baixinha passou por ela. Arregalou os olhos quando meu viu acordada. Tentei falar de novo e de novo o mesmo som horrível saiu da minha boca, era como se as palavras simplesmente fugissem de mim estava toda em minha cabeça, mas a minha boca só saia o chiado. Ela chegou perto de mim e disse algo, não entendi e dormi novamente, desta vez, pesadelos horríveis povoou minha mente, eu desejei está acordada novamente sentindo dor do que naquele mundo de pesadelos horríveis.

Quando acordei, outra vez, não estava chovendo e eu não estava mais amarrada. Olhei para o lado, quase esperando que meu pescoço rangesse igual a de um robô mau lubrificado. Avistei meu irmão dormindo desconfortável, em uma posição bem dolorida, no sofá minúsculo que não comportava seus quase dois metros de altura.

— Gab... — Sussurrei. Não ouvia mais o som ruidoso, porém minha voz estava estranha para os meus ouvidos, como se tivesse gritado horas sem parar e agora estava meio rouca. Tentei mais quatro vezes chamar sua atenção quando finalmente ele ouviu e acordou.

Ele me olhou com os olhos sonolentos a princípio. Demorou uns instantes para ele compreender o que estava vendo. — Ei monstrinho. — Vi lágrimas caindo por seu rosto, aquilo me deixou muito confusa, nunca vi meu irmão chorar, nem no dia em que quebrou o braço em três lugares, então porque logo agora? Algo ia muito errado e eu estava com medo de perguntar, pois lá no fundo eu já sabia a resposta.

— Gab... — Respirei fundo, tentando fazer minha respiração se acalmar, meu coração se desacelerar, do mesmo jeito que fazia quando treinava. — A mamãe. — Não sei o porquê de repente tinha a urgência de vê-la. Precisava de seu sorriso, de sua risada.

Gab respirou fundo e por um momento fechou os olhos, meu irmão que não largava do meu pé, vivia me enchendo o saco, tinha sumido, em seu lugar estava um desconhecido. Ao olhar novamente para mim, eu vi a tristeza e pesar. Ele veio para o meu lado da cama, pegou a minha mão que estava em cima de um travesseiro com delicadeza. — Vocês sofreram um grande acidente... — A voz dele falhou.

— Ela morreu, não é? — No fundo já sabia a resposta, por mais que eu a sentisse ao meu lado em todo aquele tempo que fiquei indo e vindo da minha consciência, algo me dizia que não era ela de verdade, não em corpo, mas sim em alma. Fato estranho, pois não era religiosa e não acreditava muito bem nessas coisas.

— Sim... — quase não escutei aquela palavrinha que acabou com o meu mundo.

Eu chorei, o quarto foi preenchido pelos meus soluços. Gab segurou a minha mão. Aquela não foi a única vez. E nem a única notícia ruim. Quase não sobrevivi ao acidente, tive um braço e bacia quebrados, queimadura de segundo grau em vinte por cento do corpo, mandíbula deslocada e o pior de tudo, meu coração não aguentou, precisei de um transplante, agora em meu peito bate o coração da minha mãe, que teve morte cerebral por causa da batida. Em um minuto ela estava rindo, no outro não estava mais comigo.

Levei um ano para me recuperar quase cem por cento. Tive tanta vontade de desistir. Quantas vezes não pedi para que minha vida acabasse? Tudo estava tão errado. Minha carreira como atleta tinha acabado, a fratura foi muito grande, nunca mais poderia correr como corria, talvez com muita fisioterapia poderia voltar às pistas, mas isso não queria dizer que poderia ser uma competidora.

Um dia, meu pai me trouxe uma caixa no centro médico de recuperação onde eu estava me recuperando. Lá tinha todos os diários da minha mãe. Os devorei, tentando fazer com que a saudade diminuísse, as palavras dela me abraçavam, por alguns instantes era como tê-la de volta. A cada página que eu lia a vontade de viver aumentava. Não podia desistir, por ela comecei a lutar, me dediquei cem por cento nas sessões de fisioterapia eu estava disposta a correr mais uma vez, mesmo que nunca mais profissionalmente, ao menos eu poderia voltar as pista.

Uma enfermeira do centro médico me ajudou muito, para sair da depressão que me encontrava ela me incentivou a cantar, a música era uma das paixões da minha mãe, parecia que o órgão dentro de mim ansiava por isso. Quando não estava fazendo fisioterapia para poder andar novamente — passei um mês em coma, três meses sem levantar da cama por causa da fratura na bacia — estava cantando na capela com o grupo de amputados. A música e os diários da minha mãe foram a minha salvação.

Agora é somente eu, meu pai e meu irmão. Precisamos continuar nossas vidas e às viver ao máximo, porque é isso o que minha mãe queria, sei disso pois o que ela mais gostava era viver, dava para ver isso nas palavras dela. Sempre com um sorriso no rosto igual a ela. Depois de sair do meu momento Dark, eu vi o quanto meu paizinho estava sofrendo. Ele tinha perdido o amor da vida dele, e estava tentando ser forte para mim, não poderia deixá-lo ainda mais triste, foi assim que eu encontrei forças para continuar a viver, não vou dizer que foi fácil ou simples, mas no fim eu consegui.

***

“No caso das borboletas, o bater de asas de uma delas em um determinado lugar do mundo pode gerar uma movimentação de ar que, intensificada, desencadearia a alteração do comportamento de toda a atmosfera terrestre, para sempre. Parece loucura, mas acontece todos os dias, e chamamos de acaso”. – Teoria do Caos

***

Eu acordei em meu quarto antes que o despertador tocasse, olhei para o relógio e ainda faltava cinco minutos para o horário programado. Cobri a cabeça com o coberto e esperei os ponteiros giram e aqueles cinco minutos transcorreram. Uma musiquinha animada começou a tocar. Desliguei o relógio e me levantei, olhei ao redor para o meu quarto, a mesa do computador estava cheia de livros espalhados, eu ia largando eles assim que terminava, na porta do meu guarda-roupas tinha uma muda de roupas já separadas, meus equipamentos de fisioterapia em um canto.

Hoje começa o primeiro dia do meu último ano no colégio, e eu não estava tão animada assim. Ahhh! “Ellen, nada de desânimo, vamos lá enfrentar o dia”, pensei comigo mesmo. Mas o fato de ainda estar no colégio não era muito legal, estou atrasada no colégio por causa de um acidente de carro que tive no ano passado, onde eu perdi a minha mãe e minha carreira no atletismo.

Sabe quando as pessoas dizem que as pessoas amadas, quando morrem, vivem dentro de você? Bem a minha mãe mora, literalmente. Ela teve morte cerebral no acidente, e eu repetidas paradas cardíacas, tantas que meu coração se partiu e a única forma de sobreviver foi ganhando o coração dela. Coloquei a minha mão no peito para poder sentir o órgão batendo e imaginei que ela estava ali com seu olhar bondoso e carinhoso.

Ao prender meu cabelo em uma trança no banheiro vi meu rosto triste me olhando no espelho. Pensar no acidente me deixava para baixo. Respirei fundo e coloquei um sorriso no rosto. Meu pai já estava preocupado o bastante com a minha volta para escola, não precisava da minha tristeza. Peguei as minhas coisas no quarto e desci as escadas. Cantarolando uma velha canção, para espantar os pensamentos ruins.

Meu irmão Gabriel, dois anos mais velho que eu, estava sentado tomando seu café da manhã. Quando olhou para mim, dei o meu maior sorriso. Para mostrar que estava firme e forte e não uma pilha de nervos com a minha volta a normalidade. Eu meio que me fechei em um casulo depois que saí do hospital e voltei para casa, virei uma espécie de Ellen Dark que não queria ver amigo nenhum, e agora estava voltando para a escola sem eles, pois todos já tinham se formado e entrado em alguma universidade. — Bom dia monstrinho. — Gabriel tinha que ser o maior bobão da face da terra?

Revirei os olhos e ao passar por ele dei um peteleco na sua cabeça em vingança. Meu pai, que se chama Lincoln — como o presidente dos Estados Unidos, meu avô era fanático por guerra e história — entrou com um prato com pão na chapa e colocou na mesa.

— Bom dia meu amor. — Ele se abaixou e me deu um beijo na testa. Era tão injusto eles serem maiores que eu. Herdei a altura da minha mãe, um e setenta e cinco, enquanto meu pai e irmão tinha um e noventa, Gab era a cópia exata do meu pai, não dava nem para dizer que eles não eram pai e filho, mesmo tom de pele, cor de olhos e cabelo a única diferença era que papai usava óculos e Gab não. — Preparada para sua volta à escola?

— Totalmente. — Fui até o armário que ficava em uma parede no canto, onde deixávamos as chaves, cartas, lembretes e tudo mais, para pegar meus remédios. Tinha que tomar vários imunossupressores por causa do transplante e eles tinham horário e dosagens certinhas. Não podia falhar para não perder o meu precioso coração, por isso marcava tudo certinho em um caderninho. Aproveitei e coloquei os que precisaria tomar na hora do almoço em uma caixinha própria e jogando dentro da bolsa que larguei em um canto.

— Venha tomar café antes que você se atrase El. — Meu pai me chamou, balancei a minha cabeça afirmativamente e fui sentar em meu lugar já pegando um pãozinho quente.

— Vou te deixar para trás, monstrinho. — Desde que era pequena e assistia o anime Sakura na TV, meu irmão passou a me chamar de monstrinho igual ao Toya, irmão da protagonista, ele só fazia isso pois fiquei completamente fanática, tinha todos os mangás, animes gravados em DVD, as cartas, cadernos, canetas, bloquinhos, camisetas, chaveiros e várias outras coisas, aí o irritante do Gab começou me chamar por aquele apelido. Claro que chutei a canela dele por debaixo da mesa, afinal já éramos adultos estava na hora dele crescer.

— Qual sua programação de hoje El? — Papai me perguntou, depois de engolir o que estava na minha boca respondi para ele:

— Tenho aulas de manhã, paro para almoçar e reforço a tarde. — Empinei o nariz para o meu irmão. — Não vou levar bomba que nem certas pessoas no vestibular. — Mostrei a língua para o Gab. Na verdade me sentia culpada por aquilo. Era para ele ter passado, mas ficou de babá, cuidando de mim e ajudando o meu pais nas tarefas de casa, foi uma adaptação sofrida.

— Eu tenho cursinho na parte da manhã e um bico a tarde. — O cursinho ficava do lado da minha escola então iriamos juntos todos os dias. Gab queria ajudar nas contas de casa, então fazia vários bicos aqui e ali, assim poderia juntar uma graninha para sair com as meninas também, não que eu tenha notado alguma em sua vida, o que era meio estranho.  — Se quiser ir junto comigo você tem cinco minutos.

Eu olhei para o relógio e depois para ele assustada. — Mas está cedo.

— Eu tenho que passar na casa de um amigo para pegá-lo. — Gab começou a tirar as coisas da mesa e ir em direção a cozinha. Tive que aumentar a velocidade de comer, senão ficaria para trás, teria que pegar um ônibus para chegar no horário, não pegava bem chegar atrasada no primeiro dia de aula.

— Vou ter uma reunião de volta as aulas então não vou poder fazer o jantar... — Meu pai era professor na faculdade local, dava aulas de história, e era apaixonado pelo seu serviço, dava gosto de ver ele com um giz na mão falando sobre alguma revolução.

Levantei da mesa, o abracei por trás e dei um beijo na bochecha dele. — Não se preocupe que faço o jantar.

— Bom saber, vou comer fora para não morrer intoxicado com gororoba de monstrinho. — Gab adora me irritar, deveria ser o passatempo dele. A vontade de ir até ele e apertar as bochechas era grande, porém ele sendo maior que eu, a vingança seria maior.

— Eu sou uma ótima cozinheira, tá? — Fechei a cara para ele. — Mamãe me ensinou muito bem.

— Ensinou mesmo. — Meu pai deu um sorriso triste e olhou para a foto dela no armarinho. — Tenho certeza que vai ficar muito bom querida, mas não quero que você se esforce.

— Eu estou bem, não se preocupe comigo e tenha um bom dia. — Dei outro beijinho nele e recolhi a louça as presas, largando tudo na cozinha e saindo correndo, não vi sinal do Gab na mesa isso significava que ele já tinha ido para o carro. — Tchauzinho.

Meu irmão ficou com o carro da minha mãe. Entramos nele e juro que senti o cheirinho dela, mesmo tendo passado um ano. A cidade onde nós moramos é pequena, mas tem de tudo, uma das melhores cidades para se morar no estado. Minha rua era margeada por lindas árvores que na primavera se enchia de flores.

Paramos em um semáforo, olhei a frente e vi um garoto parado. De onde estava não consegui ver o rosto dele, tentei, porém uma borboleta com asas negras passou em frente ao pára-brisa do carro, me dando o maior susto e me distraindo da visão do cara mais lindo que já tinha visto.

Algo muito estranho aconteceu. Foi como se o mundo desacelera e eu pudesse ver claramente o bater das asas dela. Não passou nem meio minuto tudo isso, quando pisquei novamente, estávamos parados mais a frente e o garoto que eu vi, parecia ser o tal do amigo do meu irmão, já que estava entrando no banco do passageiro atrás de mim.

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