— Ele não está aqui? Foi ele quem assinou o termo de consentimento para a cirurgia, deve ser o marido dela. E não foi avisado que, em coma, a paciente precisa de acompanhamento 24 horas por dia? Como assim sumiu do nada? Ainda bem que não aconteceu nada grave. Vai lá e cuida da papelada. — Disse o médico, enquanto destacava o formulário de internação e o entregava a Isaac antes de sair do quarto.
— Ele não é meu marido! — gritou Letícia, mesmo depois que todos já tinham saído.
Isaac franziu levemente o cenho. Não sabia bem por quê, mas algo naquela frase o incomodou.
— Já te trouxeram até o hospital... precisa continuar com esse joguinho de se fazer de difícil? Já deu, né? — Disse ele, colocando uma sacola sobre a mesinha ao lado da cama. Ao notar o curativo na cabeça dela, a voz amaciou um pouco: — Está quente ainda. Come enquanto tá fresco.
Letícia ficou imóvel ao ver o logo estampado na embalagem.
Quando adoecia, mimada e teimosa, sem vontade de comer nada, Isaac costumava ir até o outro lado da cidade só pra comprar aquele doce de feijão vermelho — o único que a fazia sorrir.
Mas, desde que a história do casamento surgiu, fosse na vida passada ou nesta, ele nunca mais a tratara com esse tipo de carinho.
Ela apenas fechou os olhos, em silêncio, diante do vapor quente que escapava do pacote.
Na sequência, ouviu a voz dele, hesitante:
— Sobre ontem... a Larissa não fez por mal. Não pega pesado com ela.
Ainda era por Larissa. Sempre por Larissa.
Letícia abriu os olhos, e uma risada irônica escapou com lágrimas:
— Isaac, ela me atropelou de propósito. E eu vou denunciar. Ela vai pagar pelo que fez.
O rosto de Isaac endureceu. Parecia irritado.
— Eu comprei isso pra você. Já pedi desculpas em nome dela. Letícia, não exagera!
A máscara dele caiu tão rápido que Letícia não conseguiu conter outra risada amarga. Encarou-o com olhos avermelhados, numa batalha silenciosa.
Isaac pareceu perceber que não adiantava insistir. Passaram-se alguns segundos até ele suspirar fundo, massageando a testa:
— Tá bom, então. Vamos ceder os dois. Você não quer tanto esse casamento? Quer tanto essa cerimônia que as duas famílias estão planejando? Beleza. Eu vou. Vai ter a sua festa de noiva. Satisfeita agora?
Letícia abaixou os olhos, e cenas do passado invadiram sua mente.
Na outra vida, naquela mesma cerimônia, Isaac nem apareceu.
Nojo. Foi só isso que ele sentiu — por ela, pelo casamento, por tudo.
E agora, mesmo dizendo que iria... era só por causa de Larissa.
Na época, ele talvez só tenha aceitado por pressão da família. Afinal, Larissa era a única fraqueza dele, e como filha de empregada, era fácil de manipular.
Não tinha como ele dizer não.
Mas desta vez... Letícia não deixaria que a história se repetisse.
— Não precisa. O noivo nunca foi você. Tanto faz se vai ou não.
A raiva subiu pelo rosto de Isaac. Ia gritar algo, mas o celular tocou.
Na tela: Larissa.
Ele se virou sem dizer nada e saiu.
Letícia observou a porta se fechar devagar. Pegou o próprio celular, discou 190 e relatou tudo à polícia.
Mas a resposta foi um balde de água fria:
— Sra. Letícia, sentimos muito. O atropelamento foi classificado como acidente. Seu noivo assinou uma carta de desistência no local. Não há como abrir inquérito.
Letícia sentiu uma angústia sufocante. Nem subia, nem descia.
Arremessou o celular contra a parede com força.
A dor explodiu por todo o corpo, até alcançar o fundo do peito.
E então, sozinha naquele quarto vazio, ela chorou.
Chorou até doer.
Nos dias seguintes, Isaac apareceu no hospital quase todos os dias. Levava frutas, caldos, chamava médicos, fazia questão de demonstrar preocupação.
Letícia, porém, já estava emocionalmente distante. Olhava para ele como se fosse invisível.
Isso o deixava inquieto. Não entendia o que ela estava aprontando agora.
Mas, por estar doente, ele engolia tudo.
Até que, no dia da alta, Letícia recusou-se a entrar no carro dele.
Isaac perdeu o controle.
— Já cedi o suficiente! Vai continuar com essa encenação até quando? Não tem medo de que eu simplesmente canse e desista desse casamento?!
Letícia sabia que qualquer explicação seria inútil. Apenas abaixou a cabeça, sem dizer nada.
Para Isaac, aquele silêncio era sinal de rendição.
Seu humor melhorou. A voz, antes ríspida, suavizou:
— Chega de drama, tá bom? Meu tio tá voltando hoje. Vou te levar pra um jantar da família. Ele é o patriarca dos Castro, e hoje vai anunciar nosso noivado na frente de todo mundo. Já que eu aceitei, vou cumprir. Você vai ter o casamento que tanto queria. Satisfeita agora?