— Judy! — minha irmã chama por mim sobre o barulho alto.
— Oi! — me viro, respondo no mesmo tom e estreito o olhar na direção dos dois frascos em suas mãos. — Isso não é extrato de morango, amor. O extrato é vermelho. — meneio a cabeça quando volto a atenção para batedeira na minha mão.
— Aqui só tem estes dois: baunilha e...— lê o rótulo do outro frasco —...amêndoa.
— Pergunta a mamã. — digo sem me virar.
Aproximo a tigela e sem querer afundo o polegar no chantilly quase perfeito. É inevitável colocá-lo na boca, recebendo o sabor doce e a textura suave que a inunda.
Fazer doces é uma terapia. Para além de me distrair das lembranças desagradáveis e ocupar minha mente, fazer doces também me permite passar mais tempo com minha família.
— Judy, querem o quê?
— Extrato de morango. — desligo a batedeira para que nos comuniquemos melhor — Eu comprei há uns dias. Yara diz que na despensa tem só de baunilha e amêndoa.
— Extrato de morango...— planta suas mãos na cintura e olha para cima como quem tenta lembrar — Extrato de morango...— entra na despensa para procurar.
Yara se aproxima, enfia seu dedo no creme e leva à boca rapidamente. A outra mão vai até meu bolso dianteiro do meu avental, onde está um pequeno pano de mãos. Minha suave repreensão ao seu movimento furtivo fica entre nós, fazendo-a sorrir.
— Está aqui. — entrega o frasco a minha irmã, a quem seu olhar severo é direcionado.
Minha mãe sai da cozinha e nos deixa com a ordem de que não devemos mais interrompê-la em seus afazeres. Quando o chantilly atinge uma consistência mais firme, paro de bater e arranco o pano da mão de Yara para limpar o exterior do bowl de metal.
— O que vai fazer neste final de semana? — pergunto enquanto passo o creme doce para uma tigela menor e limpa.
— Me convidaram para uma espécie do social com um amigo, mas não quero ir.
— Porquê?
— Não conheço as outras pessoas que vão estar lá. Conheço só a ele, praticamente. — faz uma pausa — E tenho trabalhos da faculdade por fazer. — acrescenta.
— O seu amigo. — experimento o gosto da ironia em sua ocultação da verdade.
— Judy, o que mais tem para fazer? — agita o extrato, desesperada para fugir do assunto. Como não quero exercer nenhum tipo de pressão, acompanho a mudança de assunto.
— Um bolo só para criar camadas mais firmes para a sobremesa. Não quero experimentar com bolachas, porque não vai sair como imaginei. — bato com o indicador na tempora e entrego a tigela cheia e forrada de papel aderente — Mete na geleira.
Recolho as embalagens vazias para o lixo e limpo rapidamente alguns respingados da nata doce por cima do mármore escuro da bancada. Organizo os ingredientes que vou precisar para o próximo passo da minha receita, mas antes que possa terminar, meu telefone toca. Minha irmã assume meu pedido silencioso e termina de arrumar tudo enquanto atendo a chamada.
Chamada ON
— Vitória! — sorrio e prendo o telefone entre o ombro e o ouvido para poder lavar minhas mãos.
— Judy, tudo bem?
— Tudo bem sim, e aí?
— Um pouco partida, mas bem. Já estou em Maputo, cheguei na madrugada de hoje.
— Imagino o cansado. Como correu a viagem? — sacudo as mãos, seco com meu avental e seguro devidamente o telefone.
— Acho que bem. Viajar com minha sogra não foi tão ruim assim, até porque passou maior parte do caminho a dormir. É melhor lidar com o silêncio do que com conversas forçadas. — consigo imaginar seu nariz enrugado.
É sempre assim quando fala de sua sogra e faz vários comentários sobre o quanto se dão bem quando só precisam estabelecer uma conversa por telefone. Fora isso, as coisas desandam, aparentemente, para os dois lados.
— Vai ficar na vossa casa? — faço a pergunta, cuja resposta me parece meio óbvia.
— Vai. Por mais ou menos duas semanas. Precisa estar aqui para umas consultas, então meu marido disse que tenho o final de semana livre para sair, porque precisarei cuidar dela depois disso. Então, como quero te ver, pensei em fazermos alguma coisa na sua casa no sábado ou domingo.
— Algo grave? — afago o peito involuntariamente.
— Esperamos que não. — simplesmente diz.
— Pois. Então podemos almoçar juntas. — penso um pouco e olho para minha irmã quando continuo: — Vou levar minhas irmãs e podemos almoçar todas.
— Ótimo. Vou levar umas coisas.
— Está bem. Então está combinado?
— Sim. Nos vemos no sábado.
— Oky. Falamos. Tchau.
— Tchau.
Chamada OFF
Desligo o telefone e das duas tigelas estendidas pela minha irmã, escolho a plástica e rosa para bater a massa do bolo.
— Quem era?
— Vitória.
— Está aqui desde quando? Não tinha viajado para o centro?
— Sim, mas já voltou. E vai para minha casa almoçar connosco no sábado ou domingo.
— Está bem. — tira seu avental e pindura em seu ombro, servindo-se de um copo de água.
Está tudo organizado sobre a bancada. Pretendo fazer um bolo-mármore de custard e morango, usando a própria fruta nas camadas e decoração. A imagem e o sabor em minha mente parecem excelentes. Levando a prática, espero manter o mesmo nível.
Para cumprir com meu costume, enumero todos os ingredientes para me certificar de que estão completos, marcando-os mentalmente com um x.
— Manteiga, leite condensado, leite fresco, extrato, Custard, farinha, fermento... — paro quando noto a falta de um ingrediente crucial —...ovos! Tem mais ovos aí? —
— Não tem.
— Ah, Jesus! — espalmo a testa — Vou comprar ovos. — anuncio e vou até a sala — Vamos sair para shoprite! — acrescento meio alto e minhas duas irmãs surgem no cômodo.
Levo minha bolsa, as chaves do carro e sigo-as para fora. Ao arrancar o avental do meu corpo sinto o ar fresco roubar de mim um suspiro de alívio e esfriar minha pele transpirada. Destranco as portas e olho para o lado do estendal, onde minha mãe prende as roupas acabadas de lavar.
— Vão para onde?
— Comprar ovos. — limpo as gotículas de suor no meu nariz com o pulso.
— Compra água também.
— Está bem. — respondo antes de entrar no carro.
— Me deixa conduzir — Yara arranca as chaves da minha mão, sai do carro e dá a volta.
Passo para o outro banco com um pouco de dificuldade, então ela entra, coloca o cinto e começa com a viagem. Como estamos na rua principal, ela não se preocupa tanto com manobras. Da casa da minha mãe até o supermercado Shoprite são só 7 minutos de carro, mas minha irmã sempre faz em menos tempo que isso. Aproveito para organizar minha aparência através do pequeno espelho do retrovisor.
— Teu retrovisor está mal posicionado.
— Sempre está. — passo o dedo pelas sobrancelhas — Eu não uso muito, e quando devo usar, viro a cabeça de uma vez. — molho os lábios e já me parecem perfeitos — Não façam isso. — apelo, mesmo vendo que Tati não desgruda os olhos do seu telefone.
— Não faremos. — Yara esboça um sorriso e balança a cabeça quando começa a estacionar entre duas linhas amarelas.
— Está muito calor. — sopro o ar.
Da bolsa retiro alguns wipes e passo no rosto e pescoço. Refresca, mas sei que a palidez virá em pouco tempo. Ainda assim não me preocupo tanto.
Todas saímos do carro e seguimos para dentro do supermercado meio movimentados. Passando pela entrada, minhas irmãs levam uma carrinha de compras e esperam pelos meus comandos, já sabendo que não viemos para cá somente pelos ovos e pela água.
— Água, ovos e o quê? — minha irmã mais nova pergunta, finalmente guardando seu telefone no bolso traseiro de seu macacão.
— Levem coisas pequenas que não tem em casa e algumas coisinhas para vocês. Mas não exagerem. De rica tenho só a cara e o estilo. — elas riem, mas eu consigo conter meus risos — Vou ver algumas forminhas de pudins e cupcakes. Nos encontramos no caixa.
Tendo percebido, as duas vão em direcção oposta a minha. Cruzo meus braços e caminho lentamente até o corredor à poucos metros da entrada. Há pessoas com carrinhos de compras cheios em toda a parte, típico de feriados no início do mês. Passo o olhar pela estante imensa do meu lado direito, me apaixonando cada vez mais pelas formas e menos pelos preços. Uma forma de pudim me encanta, mas aprumo os lábios quando vejo o preço dela. Só isso me pode quebrar o coração, nestes dias.
Devolvendo a forma, percebo que alguém caminha em minha direcção. A voz receosa soa como se experimentasse combinar o nome com a pessoa, achando que pode estar enganado:
— Judite?
Me viro, olho para seu rosto, primeiramente desconhecendo, mas depois arregalo os olhos de tanta surpresa quando reconheço a cicatriz na sua testa e os longos cílios extremamente pretos.
— Júlio! — um sorriso alegre balança meus lábios e o puxo para um abraço e dois beijos no rosto.
Os meus três últimos anos do ensino secundário foram ao lado dele. Tinhamos mais dois amigos em comum, com os quais andávamos para cima e para baixo até o fim daquela fase. Depois disso, mantive contacto apenas com um, Guilherme, mas não por muito tempo. A busca por sucesso acadêmico e profissional separou nossos caminhos em 4 super diferentes e distantes, dentre os quais, um em particular foi meio difícil de superar.
— Tudo bem? Meu Deus, como estás diferente. — coloco as mãos no rosto para esconder meu sorriso largo enquanto olho para ele dos pés à cabeça. Está mais alto e menos magro que antes.
— Tudo bem. Digo o mesmo. — sorri e cruza os braços — Se passaram 10 anos, não é pouca coisa.
— Pois não. Meu coração. — liberto risos de êxtase e seguro meu peito à mil por alegria — Estou muito contente por te ver de novo. Como vai a vida? O que tem feito?
— Vai indo. Muita coisa mudou. Estava a viver em Tete, mas voltei no ano passado. Agora estou metido numa empresa de venda de automóveis aqui em Maputo. Você?
— Isso é muito bom. Quanto tempo ficou lá?
— 2 a 3 anos, por aí. — balança a cabeça como se estivesse a pesar os números.
— Ahn. Eu estou na Migração e faço algumas coisas para renda extra. — cruzo os braços como ele — Tem falado com os outros? Vocês desapareceram.
— Só com Lionel. É o único com quem consegui recuperar contacto depois de um tempo. — ao ouvir o nome, uma pancada de nostalgia me gela o estômago e movimenta algumas engrenagens enferrujadas no peito. Lionel.
— Lionel...— sorrio sem acreditar na agradável surpresa do destino, mas não procuro muito sobre ele — Eu, sinceramente, não esperava te encontrar por aqui.
— Nem eu. Mas cá estamos. — dá de ombros.
— Como é que ele está? — fracasso completamente com a tentativa de não ser curiosa. Júlio guarda suas mãos nos bolsos e me parece muito mais alto.
— Bem, acredito eu. Todo mundo tem seus desencantos, mas no final está tudo bem.
— Ahn...imagino. — tento não soar muito interessada na história que inspirou suas palavras — Mas...
— Judy! — a voz de Yara me interrompe em minha costas. Me viro e ambas me olham com reprovação, mas suavizam quando olham com curiosidade para Júlio.
— Desculpem, acabei por esquecer de vocês. — me viro para meu companheiro de adolescência — Júlio, se lembra delas? Minhas irmãs mais novas.
— Me lembro delas bem mais baixinhas e falonas. — sorri e elas se aproximam com a carinha um pouco cheia — Como vocês estão?
— Bem, obrigada. Você?
— Lembram dele?
— Eu lembro, mas eu tinha por aí 8 ou 9 anos, nem?
— Isso!
— Eu não lembro. — Tati hesita ao dizer.
— Você era bebé. Tem razão. — Yara disse.
— Era meu amigo quando eu estava na secundária.
— Ahn. Olá! — acena.
— Olá, Tatiana.
— Está todo mundo crescido. — comento e olho para o relógio no meu pulso — Júlio, foi ótimo te ver, mas nós precisamos ir.
— Digo o mesmo. Posso ficar com teu número? — tira seu telefone do bolso.
— Claro.
Me entrega o aparelho e eu digito meu número.
— Manda uma mensagem para eu também ficar com o seu. — peço e o observo digitar rapidamente seu nome.
Meio segundo depois, recebo sua mensagem e gravo na hora para não me esquecer. Minhas irmãs se despedem dele e vão para o caixa, mas eu continuo no lugar até ter certeza que seu número já está na minha lista de contactos e até pensar em fazer um convite.
— Vou receber uma amiga em casa, neste sábado. Se estiver disponível, pode aparecer com mais alguém para um almoço rápido e um bate-papo, pode ser?
— Acho que pode ser, mas vou ficar por confirmar.
— Está bem. Estarei a espera. Até mais.
— Até. — alcança seu carrinho cheio de compras e eu vou ao encontro de minhas irmãs na fila do caixa.
Pagamos tudo e voltamos para casa da minha mãe. A sobremesa leva um pouco mais de tempo para ficar pronta, mas conseguimos deixar para gelar a tempo do jantar. A refeição é digna de muito papo e conselhos entre mulheres, até que chega a hora de me recolher para minha casa.