As pessoas nunca entendem até onde você iria por elas, se não usar caminhos que já foram traçados. Caminhos rectos e certos. Caminhos conhecidos e completos. Mas nós, os ditos incomuns, nos aventuramos em curvas. Nossa forma de pensar nos faz pender entre o certo e incerto, conhecido e desconhecido, completo e incompleto. Vivemos em constantes tenderes e, frequentemente, atiçamos desentenderes. Quem é incomum anda em constantes inconsistências. Tem seus delitos julgados com mais insipiência e menos compreensão. Geralmente baixam nossas cabeças e quebram nossos corações, fazendo com que, de tudo isso, destilemos apenas a sensação de insuficiência, dentre várias coisas que nos façam pensar que não somos inclusos quando o assunto é possuir ou pertencer a alguém. Contudo, há sempre um porém: incomuns magnetizam-se.
Leer másJUDITE D'MATOS
A vibração frenética dos meus pés se espalhava pelo corpo inteiro, forçando o movimento do vinho em minha taça. Eram poucas horas de madrugada quando tristeza, preocupação e um pouco de dor abdominal me amparavam. Meu estado deplorável, minha visão embaçada pelas lágrimas e os poros excitados pelo frio, sem dúvida alguma me levaram de volta às noites que pensei ter superado.
Naquele momento, através da enorme janela da sala, assisti a escuridão se dissolver no lento amanhecer, e vasculhei por algum rastro do retorno de Souza, que me deixara naquele estado depois de me ter plantado numa espera quase infinita.
São quase quatro horas, o que deve ter acontecido?, perguntava para mim mesma entre goles de vinho e soluços de choro.
Minha barriga globulosa, encapada pela beleza de um cetim vermelho-sangue, recebia carícias que esperei que fossem acalmar a dor, mas me enganei. A dor evoluira desde as 20 horas do dia anterior, sexta-feira, e entre tantas falas íntimas, pedi aos céus que nada fosse tão sério a ponto de resultar em alguma complicação.
A mistura de sensações e sentimentos, fundidos com um medo absurdo dos tempos seguintes, me faziam atribuir obesidade aos goles que dava do vinho. Me desdobrei em prantos que resultaram em leves espasmos. Ao me aproximar mais uma vez da mesinha de centro para espiar as horas no meu telefone, pude ver meu reflexo. Estava de dar dó. Minha maquiagem borrada marcava minha cara de tristeza, a gola vermelha-sangue do meu vestido estava amarrotada. Os olhos vermelhos, a feição murcha... Olhando para baixo, vi meus pés descalços; passando a língua pelas doces gotículas de tinto, senti meus lábios doloridos porque os mordisquei quando pensei no pior.
— Jesus! — soltei depois que um arroto rasgou minha garganta fora.
Um suspiro se foi, solto com a esperança de criar um alívio no incômodo em minha barriga. Nada...
Esvaziei a taça, sequei os olhos e voltei a pegar no telefone para ligar para ele. Deslizei o dedo pela tela até ligar para seu número, mas um estrondo no portão, seguido dos latidos lá fora, ganharam minha atenção. Levei um tempo para processar o que poderia estar a acontecer, até que ganhei coragem para me levantar e ir até a porta, me esforçando para dar os passos certos. Não conseguia pensar em nenhum motivo plausível que pudesse tê-lo feito se atrasar para o nosso segundo aniversário de casamento.
Souza. 4 horas e malditos minutos, meu marido chutou o portão, fechando-o, e arrastou-se bêbado para onde eu o aguardava com os punhos cerrados e completamente destruída. Minha garganta azedou quando vi que estava muito bêbado, oque não era comum naqueles dias. Sua camisa estava com uma mancha enorme, estava transpirado e andava como se fossem seus primeiros passos. O cheiro de bebida barata e de traição emanavam intensamente.
— Onde estava? — perguntei num fio, lamentando a volta da versão deste homem que não via havia mais de 2 anos.
Em resposta, obtive o barulho de seus passos desnorteados no caminho para dentro de casa. Passou por mim e deixou rastro, ao qual segui estonteada e furiosa. Naquele instante, soube exactamente onde e com quem ele esteve, mas precisava ouvir dele.
— Responde!
— Estou aqui. — resmungou e se desleixou no sentar.
— Onde estava, Souza!? — dei alguns passos para perto de si e engoli a seco.
— Judy! — sua voz arrastava a pouca ciência que sobrara em si — Eu saí.
— Você saiu. — a vontade de ofegar crescia — Souza, porquê você sempre volta a ser esse homem desprezível? — as lágrimas vinham novamente.
Se levantou bruscamente e deu dois passos de bêbado para perto, me fazendo proteger minha barriga por instinto maternal.
— Não quero discutir contigo, hoje. — avisou enquanto desabotoava sua camisa. Me sentei e soprei o ar.
Era muito esforço para não sentir dor, para não chorar, para não demonstrar tanta embriaguez e para não magoar a única coisa que me importava: meu bebê. Incapaz de proferir outra coisa, repeti:
— Onde estava, Souza? — minhas entranhas contrairam-se e um arrepio me rasgou a espinha.
Seu olhar e agir eram tão gélidos que até doía. Minha vontade era de sair dali, mas eu queria respostas para a única pergunta que repeti milhares de vezes para o vazio. Seu rosto contraído pela impaciência, começou a falar:
— Olha, amor... — se aproximou descuidado, se baixou e prendeu meu rosto entre suas mãos —...eu sempre volto para ti.— simplesmente disse e seu hálito me enojou.
Não falei nada. Apenas chorei.
— Não quero discutir. — se afastou.
De tantas coisas que sentia, a dor abdominal foi se destacando, desnorteando-me de dentro para fora. Me levantei por um comando cerebral aleatório e me senti super tonta. Os giros do ambiente, difíceis de acompanhar, me deixaram bamba. O álcool corria, o sangue fervia, o coração bombava. Então meu equilíbrio foi perturbado e caí sentada.
Meus pulmões pareciam cada segundo mais estrangulados. Desesperada por ar puro, reuní a força que me sobrava, me levantei de novo e comecei a andar até a porta.
Quando ia abrí-la, uma pontada forte me fez dobrar meus joelhos sobre o chão e gritar.
A dor atingiu uma maioridade asfixiante. Roguei até sentir cada veia de mim pressionar minha pele. Tinha chegado o momento que temera durante a evolução de minha embriaguez.
—DÓI MUITO! — arrastei as unhas pelo chão enquanto seus dedos sujos e gelados tentavam me consolar.
Fechei os olhos com toda a força que pude usar, mas quando os abri e olhei para o chão, meus gritos se dissolveram em choro intenso.
— Judy! — ouvi sua voz como um eco distante.
Agarrou meus ombros e levei as minhas mãos trêmulas e doloridas à barriga. A dor era tanta que me fazia pensar que estava entre a vida e a morte.
— VOU MORRER! — o último grito dentre meus lábios secos, antes que eu me deitasse às avessas e observasse a luz da consciência se apagar.
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LIONEL OFIÇO
"Corri como se o pôr-do-sol me tivesse tirado o sentido. Meus pulmões se incendiavam a cada vez que esticava meus joelhos, quando o vento prendia minhas vestes largas contra meu corpo. Corri em direção a borda do mar que embalava calmaria, para ver meu pai que refletia. Estava sentado com um cigarro aceso entre dois dedos, uma garrafa de uísque enterrada na areia e o cabelo crespo sujo de poeira.
— Pai! — apoiei minhas mãos nos joelhos e fechei os olhos, sentindo meus pulmões arderem.
— Senta aqui. — disse depois de um longo e indecifrável silêncio, sem tirar seus olhos do horizonte.
Me sentei na areia morna, passei as costas da minha mão pela testa molhada de suor e tentei regular minha respiração. Analisei cada centímetro de seu corpo para ter certeza que sua dor tinha matado cada um.
— Quer conversar? — tomou a calmaria do mar para seus movimentos quando sugou o fumo daquele cigarro.
Findo, dobrou seus joelhos a altura do peito e encheu sua mão de areia, virando e, de forma lenta, abrindo-a. O punhado de areia era separado pelas brexas entre seus dedos, através das quais escapava, deslizando limpa e veloz. Naquele momento, seu olhar morto pela tristeza analisava cada grão que voltava ao chão como se fossem pedaços de seu coração recêm-quebrado.
— Lio, você sabe o que impede alguém que você ama de ir embora? — suas palavras escapuliram com finas linhas de fumo. — balancei a cabeça — Nada. — acompanhou meu movimento, inconformado com sua dor — Ninguém ensina, porque não parece haver o que ensinar. Parece que não há como segurar. Então, como não aprendemos como segurar a quem amamos, atiramos ao querer do tempo: ou cai, quebra e nosso chão mantém absorvido, ou o vento leva para outro pôr-do-sol, mais alegre e comum que este. — com o cigarro ainda entre seus dedos, apontou na direção do horizonte alaranjado.
Quando sobraram apenas alguns grãos no centro de sua palma, virou sua mão enrugada e sacudiu para que não sobrasse nenhum. De suas narinas saiu a fumaça que sobrou da lenta destruição de seus pulmões. Olhou para mim, prendendo seu cigarro acabado entre os lábios, e com o rosto traçado de súplica, me pediu:
— Não seja incomum, filho. Nelo, vão quebrar teu coração."
Ao fim de sua leitura, guardou a folha antiga em seu colo e me olhou. Sua surpresa brilhava através dos olhos escuros. Enquanto parecia processar o que acabara de ler, coloquei para dentro uma dose inteira de Uísque. Pela base do copo triangular, seus longos cílios e as cores que a pintavam se multiplicavam pela grossura do vidro.
— Quando escreveu esse resto? — perguntou com a testa amarrotada, e voltou a segurar o papel, onde passou os olhos em busca da data — Devia ter pouco menos da minha idade. — diz quando finalmente vê a data.
— Exactamente. — me afasto da parede, coloco o copo de volta na bandeja e me sento do seu lado.
Do lado de fora, a festa parecia morrer ainda mais com o passar do tempo. Não fazia mais sentido celebrar. Apenas se desenrolou devido as coisas que um não diante do altar não podia alterar.
Analisei o tecido dobrado e alfinetado sobre seu vestido, e pensei que não podíamos estar piores. Cléo, minha sobrinha, acabara de perder seu namorado, razão pela qual foi a única que permiti que me fizesse companhia hoje, distante do fracasso que meu casamento com ela acabou por se tornar.
— Quer conversar sobre isso? — recebi seus olhos marejados de lágrimas como resposta.
— Não. — baixou sua cabeça, secou suas lágrimas e voltou a me olhar com mais firmeza — E você?
— Não tem o que falar. — arranquei a gravata já desfeita do meu pescoço — Simplesmente não fui digno de um sim. — relaxei no sofá — E acho que está tudo nem eu não ter sido.
Judite arrastou os óculos escuros para cima, colocou Hónan no chão, se agachou atrás dele e olhou para a lápide em silêncio. A única coisa que tinha mudado era a vela, que substituímos por uma maior, mas dá mesma cor. Traduzi seu silêncio em concentração, como se ela tivesse a mesma conversa curta que tinha sempre que se agachava diante do túmulo de Beatriz, então não interrompi até que ela terminasse e se pronunciasse.Também me agachei e deixei Pérola no chão, que se inclinou para se aproximar um pouco mais do laço rosa que chamara sua atenção. Era igual ao seu e se diferia do de seu irmão somente pela cor. Os únicos que emitiam sons eram os gêmeos, para além de alguns passarinhos. Os raios do início da manhã davam-nos banhos quentes, mas não o suficiente para nos salvarem do frio escondido em rajadas fracas. Judite deitou sua cabeça em meu ombro e continuou em silêncio, sem tirar seus olhos indecifráveis da lápide marcada de preto.— Filh
— Hónan! — gritei quando tentava alcançá-lo, mas suas pernas curtas pareciam levá-lo mais rápido do meu alcance — Hei!Enquanto isso, sua irmã nos seguia pela casa e gritava como se apoiasse seu irmão na corrida. Eles iam me deixar doida, porém saudável, de tanto que me faziam correr. O remote da TV estava em sua mão, assim como meu telefone. Irritada, parei, plantei as mãos na cintura e vi os gêmeos se juntarem na minha frente para rirem da minha cara. Ofeguei pelo tempo que achei suficiente até conseguir abrir a boca e falar lentamente para que os dois ouvissem:— Não querem assistir ao papá? — me inclinei, e forcei um sorriso enquanto batia palmas. Os dois marcharam no mesmo lugar e me imitaram como se se divertissem — Então, dá isso para a mamã, Hónan! — quando tentei me aproximar, o menino correu para a sala pela outra entrada.Bati em minha testa com tanta força que ficou um formigueiro persistente nela. Pérola, por sua
Meses depois, a situação de Judite parecia estar cada vez melhor. Durante aquele período, a variação de seu estado era intensa, principalmente nos dias em que ninguém conseguia tirá-la de perto dos gêmeos. Tudo o que ela fazia era fazer higienes básicas, garantir que eu teria roupa preparada para o dia seguinte, algo para comer e um ligar limpo para estar. Depois disso, se trancava no quarto deles e só saía para cumprir com seus deveres de mulher perante mim e para dormir. Precisei acompanhar suas consultar e ouvir algumas recomendações da sua psicóloga, para que eu a ajudasse em casa. Para além destas, também improvisava, presenteando-a com coisas diferentes em todas semanas. As poucas pessoas que sabiam do seu estado ajudavam como podiam, inclusive minha mãe, que se tornara num dos seus poucos pontos de confiança, visto que passavam mais tempo juntas.A melhoria era notável, mas, mesmo assim, eu não queria de jeito nenhum cair na descontração e correr
— Cuidado...— baixei mais um pouco o ombro para que ela se apoiasse — Isso!— Jesus, estou cheia de sono. — sua voz estava manhosa e rouca pelo cansaço.Em silêncio, nos dirigimos para o quarto dos gêmeos para colocá-los em seus berços, pois já dormiam. Fazia uns quatro dias que não entrava ali, desde que fomos analisar o último trabalho feito pelo carpinteiro. Mas, céus, entrar naquele lugar com os dois pequenos em meus braços era uma sensação diferente. Não tinha conseguido pregar o olho na noite passada, porque as coisas tinham acontecido de forma difícil de acompanhar, principalmente para um homem que não tinha ido muito além de aprender apenas a lidar com os últimos sintomas da mulher ao seu lado.— Espera! — exclamou, me fazendo parar onde estava, e seguiu lentamente até a janela de alumínio na parede de frente.— Ainda está com muita dor? — balancei os braços num ato automático, mesmo que eles estivesse
O topo da minha boca estava seco, então passei lentamente a língua amarga enquanto girava meus olhos nas órbitas. Estava com tonturas e o estômago vazio, por isso preferi me manter de olhos fechados, mesmo que tivesse acordado havia bons minutos.O lugar estava frio, razão pela qual me cobri até o pescoço e suspirei pesado. Ainda não tinha recuperado completamente a consciência nem as forças, mas assim que o fiz, abri os olhos como num despertar e sussurrei duas palavras para o quarto vazio:— Meus bebés. — minha fala desapareceu à um palmo da minha boca.Meu olhar se marejou quando não me lembrei se tinha conseguido levar o segundo ao mundo. Com o peito apertado, comecei a chorar baixo e a tentar me recompôr. O ruído da porta sendo aberta teve minha atenção. Era minha mãe e trazia duas sacolas consigo.— Olá! — seu sorriso me trouxe o aconchego de casa.— Mamã. — suspirei e sequei os olhos — Como é que ele
No meio do meu desespero, tentei me acalmar seguindo um raio laranja carregado que batia na parede oposta a mim, mas não resultou. A sala estava com quase uma dúzia de pessoas vestidas de um verde irritante e enjoativo. Quando não gritava, grunhia com uma raiva destilada da dor do tamanho do mundo que só crescia com o passar dos segundos. Transpirada, tensa, com o estômago congelado e dor das contrações.— Lionel! — grunhi baixinho, pois queria que ele estivesse ali, mas não estava.— Estão os dois de cabeça para baixo? — a mulher entre minhas pernas se virou para trás.— Sim. Prontos para o parto normal, como ela quis que fosse. — minha ginecologista assentiu e sorriu, visivelmente nervosa e confusa com minha decisão absurda.Olhei para todos com ódio antes de me deitar e preparar para gerir a agressividade de tudo que sentia. A dor ficava cada vez mais insuportável, tanto que respirar pelo nariz me parecia e
Último capítulo