- Não precisamos levar muita coisa, não vamos nos demorar por lá, e lá tem tudo o que precisamos. Podemos comprar algo para comer nos postos da estrada, água. Ah, vou levar uma garrafa térmica com chá.
- Ah, por Deus, Han. Leve café, quem leva garrafa com chá em uma viagem por mais curta que ela seja? Nunca vi uma pessoa levar chá em um passeio ou viagem.
- Leve o que você quiser, Roge, eu vou levar chá e pronto acabou.
- Você viu, Bento, ela me disse para levar o que eu quiser.
- Menos bebidas alcoólicas ou drogas, seu infeliz.
- Mais um adjetivo. - Ele novamente fingiu anotar.
Riram e implicaram um com o outro e mais tarde se despediram, combinando que Hanna passaria para pegá-los no dia e hora combinados.
- Lavou o carro, garota? - Bento entrou no lado do motorista e beijou seu rosto.
- Vou ter que lavar novamente, na volta, lá tem muita terra. Sabe que é a primeira vez que vou dirigindo para o orfanato?
- Não faz muito tempo que temos habilitação, podemos revezar na direção, se quiser.
- Não acho que me cansarei. Se for pensar, dirigimos mais horas no trânsito aqui na cidade, do que vamos dirigir na estrada.
- É verdade. Vou aqui com você até Roger entrar. Quanto quer apostar que ele vai querer ir na frente, isso se não quiser ir dirigindo.
- Não vou apostar, porque sei que você vai ganhar, e nunca pagou nenhuma aposta mesmo.
- Supere isso, Han. Se eu te pagar um dia, um almoço ou jantar, acha que vou quitar esse débito?
- Teria que fazer um pacote de meses em um restaurante para eu comer lá, para, talvez, quitar esse débito.
- Vou continuar devendo, então.
- E eu, cobrando.
Tiravam o sarro um no outro, até que chegaram à paróquia e, mal Hanna estacionou o carro e Roger veio com uma mochila pendurada nos ombros e gritando:
- Eu quero ir na frente!
Os amigos soltaram uma gargalhada e Bento pulou para o banco de trás, sem descer do carro.
- Você desiste muito rápido, amigo. Dá muita manha para o Roger. - Cutucou Hanna, para somente Bento ouvir.
- Estou poupando nossos ouvidos de ficar cinco horas ouvindo as reclamações dele, amiga, de nada.
- O que eu perdi? - Perguntou Roger, colocando o cinto.
- Nada de mais. Bento veio explicando sobre as estrelas.
- Mentira! - Gritou Bento, ultrajado.
Roger fingiu ter ânsias de vômito, ante a menção de ouvir o amigo discorrer sobre o firmamento e, assim começaram a curta viagem para outro estado, para o orfanato que passaram sua infância e adolescência.
- Foi um custo explicar ao padre Olivério que iríamos acampar, após dar uma passada na Casa Abrigo. Ele não se conformava de não o incluirmos ao passeio, sempre aproveita qualquer oportunidade de ir para lá.
- Ele sempre amou aquele lugar, não é? - Disse Hanna.
- Nossa vida não seria a mesma se não fosse pelo carinho e atenção dele esses anos todos que lá ficamos. - Concordou Bento. - Sua paciência e carinho, foi fundamental para nosso crescimento.
- E continua. Ele ia lá antes de estarmos lá, e continua depois de termos saído. - Reiterou Roger.
- Isso é amor. Lembro que quando eu era bem pequena, talvez uns quatro ou cinco anos, eu achava que ele era meu pai, o pai de todos nós lá, sabiam?
- Claro. Lembro que você o chamou de pai até uns seis ou sete anos. - Roger estava sentado de lado no banco, para olhar para os dois amigos, enquanto conversavam. - Vocês acham que somos os preferidos do padre Olivério, tipo, se vocês dois não tivessem sido adotados também, ele os levaria para a paróquia?
Após refletirem um pouco, Hanna falou:
- Nunca havia pensado nisso.
- Nem eu, por que em meio a tantas crianças, ele escolheu você, Roger, justo o mais rebelde? - Perguntou Bento.
- Não sou nem de longe o mais rebelde! - Exclamou. - Mirtes, ela era o furacão na terra, ela inclusive jogava terra nas outras crianças.
- Não só em crianças. - Lembrou Hanna. - Teve a vez em que jogou terra no tacho de sopa.
- Qual o problema dela com terra? - Perguntou Bento, sorrindo.
- Vai saber. Dora a apelidou de Maria do bairro, lembram? - Gargalhava Hanna. - Muitos a apelidaram.
- Ela piorou quando a devolveram, lembram? A mãe adotiva disse que ela queria colocar fogo no gatinho da família. Sorte que tínhamos você para nos defender dela, Roger.
- E agora me chamam de rebelde, quantas vezes os ajudei a se safarem? Os protegia sempre. Mas Mirtes era muito revoltada mesmo, foi para a Casa já com quase cinco anos, deve ter sofrido muito com os pais biológicos.
- Ah, teve também o Marco. Meu Deus, como ele era malvado! - Lembrou Bento.
- Como chamava aquele que faltava às aulas de estudos bíblicos? - Hanna tentava se lembrar?
- Todos nós!
Riram muito sobre isso.
- Sim, mas aquele que parecia que vivia gripado, com o nariz escorrendo e a pele toda irritada?
- Ah, o catarrento?
- Sim, mas qual era mesmo o nome dele, foi adotado até bem rápido?
- Gustav, ou Rupert…
- Bernard! Esse era o nome dele, esse era outro que batia em todos, mesmo tão pequeno, não assistia a nenhuma das aulas bíblicas do padre, aos domingos.
- Ele era impossível. Se bem me lembro, ele foi adotado por um casal de psicólogos, ou terapeutas, não foi?
- Parece que sim, pois bem, não foi só você o rebelde, Roge, parabéns!
- Sou um santo e salvador, se for pensar bem. Espero que tenha mais como eu para cuidar dos mais fracos lá.
- Não exagere, meu caro. Um de você já é o suficiente para uma vida. Mas continuando nosso assunto, creio que sempre fomos os queridinhos do padre. - Finalizou Bento.
- Éramos inseparáveis, mesmo quando chegavam mais crianças, não é?
- Ele chegava aos domingos e perguntava pelo trio.
Os três ficaram por mais de um quilômetro imersos nas lembranças. Cada qual tinha sua lembrança.
- O que trouxe em sua mochila, Roge? - Bento quebrou o silêncio após passarem por um pedágio. - Me parece grande para um único dia.
- Não trouxe bebidas, não é? - Hanna não permitia álcool em seu carro, morria de medo de ser parada pela polícia e encontrarem bebida alcoólica no carro.
- Trouxe minhas revistas masculinas, todas. Não podia deixá-las em meu quarto, padre Olivério tem o hábito de fazer faxina em meu quarto quando não estou.
Bento o fitava de boca aberta e Hanna olhava para a estrada e para ele, o pescoço virando sem parar.
- Você é incorrigível. - Vociferou a garota. - Vou parar no próximo posto de gasolina e revistar sua bolsa, seu pervertido. Estamos indo ao orfanato!
Roger se dobrava de tanto rir.
- Falo sério, Roge. Bento, pegue a mochila dele.
Roger tentava esconder a mochila entre os pés, no chão do carro, em uma briga de mãos com Bento.
- Pegue a mochila logo, Bento! Querem que eu bata o carro?
- Estava brincando com vocês, eu trouxe minha blusa de frio, uma meia dúzia de livros que o padre está doando às crianças e nada mais, juro.
- Ainda assim vou olhar sua mochila no próximo posto. - Disse a moça, irritada.