O silêncio santo
O silêncio santo
Por: Advanjat
PRÓLOGO

PENÉLOPE VERONESI

O vento carrega consigo uma temperatura morna, fazendo os meus cabelos esvoaçarem quando me atingiram. A paisagem se vangloria em tons de laranja, amarelo e vermelho, uma paleta na qual eu sempre achei fascinante, tornando a época extremamente agradável aos olhos de qualquer um.

Observei vagarosamente toda a singela movimentação lá fora, ao longe várias crianças correm pelo pátio e outros mais velhos estão sentados na grama possivelmente úmida, comendo e outros conversando.

Memórias distantes fazem-me afirmar sempre que o outono é a minha estação preferida de todo ano, nem sequer a primavera e nem mesmo o inverno, têm a mesma beleza e embevecimento que o outono possui. Se ele tivesse uma personalidade talvez seria arrogante, ou então não, eu sempre imaginei como um homem quieto e silencioso, mas doce como uma pêra madura e bastante inteligente.

Com isso, doces lembranças tomaram a minha mente em nostalgias leves, que, de certa forma, fizeram-me sorrir.

"O que é extremamente inapropriado nesse momento."

Constatar isso deixou um sabor amargo na minha boca, por isso suspirei e fechei a janela de vidro, notando que algumas folhas úmidas entraram no cômodo quente.

No silêncio gélido do meu quarto no internato, aguardo a chegada do meu atual tutor, uma figura que deveria trazer segurança, mas que agora carrega o peso de um luto recém-chegado. O meu pai, aquele homem que um dia me trouxe ao mundo, acaba de partir, deixando um vazio abissal na minha alma. As mobílias japonesas escuras, que conferem uma aura de serenidade e minimalismo, contrastam dolorosamente com a tempestade emocional que se desenrola no meu peito.

Sentei em um zabuton, sendo uma almofada tradicional usada para sentar, já que não é permitido cadeiras e mesas altas de jantar no dormitório, e só então percebi o álbum de fotos aberto que descansava na mesa de centro como se fosse apenas um objeto, se é que ele não passasse apenas disso — ou pelo menos deveria.

Passei os dedos delicadamente sobre as fotos, sentindo a suavidade do plástico que protege as fotos, e embora eu me arrependesse penosamente, eu não podia evitar o sentimento de solidão se manifestar no meu coração.

Mesmo que o tal sentimento não seja nenhuma novidade para mim, e mesmo se passando seis anos, eu imaginava que já o havia ultrapassado.

Lembro-me de quando ele me deixou aqui pela primeira vez, à mercê dos corredores frios e das regras impessoais deste lugar. Eu tinha apenas doze anos, uma criança confusa e perdida, abandonada sob a máscara de uma educação privilegiada. Aquele momento nunca se dissipou totalmente de mim. As lágrimas silenciosas que derramei naquelas noites solitárias parecem ressurgir agora, como uma enxurrada de memórias e sentimentos contraditórios.

Fechei os olhos e também o álbum de fotos duramente, empurrando-o para bem longe de mim.

Sou mesmo uma estúpida.

O luto é uma estrada espinhosa, marcada por sentimentos confusos e contraditórios. Não sei se devo sentir tristeza profunda ou raiva contida.

O meu pai partiu, mas também me abandonou. Ele me deu a vida, mas também me privou da sua presença quando mais precisei dela. A sensação de perda é devastadora, mas misturada a ela está uma sensação de abandono que me deixa à deriva em um oceano de confusão.

Fecho os olhos e retorno-os abrir.

O quarto, iluminado pela luz pálida da tarde, parece espelhar a minha própria alma. O brilho suave das mobílias contrasta com o torvelinho de emoções que experimento. Sinto o frio penetrante do ambiente, mas também sinto o calor das lágrimas que ameaçam transbordar a qualquer momento.

Olho para a cama bem arrumada, onde o meu pai nunca se sentou em visitas, onde nunca ouvi as suas palavras de encorajamento ou carinho. As paredes, pintadas de um tom neutro, parecem refletir a monotonia das minhas próprias emoções tumultuadas.

Toques são dados na porta branca e em seguida aberta pela Sra. Colleen.

E então, a porta se abre lentamente, e a diretora do internato entra no quarto. Os seus olhos refletem uma tristeza compartilhada, uma compreensão silenciosa das complexidades que me atormentam.

Ela se aproxima com cuidado, como quem teme perturbar um animal selvagem no seu habitat natural. O seu toque gentil no meu ombro é como um elo entre o meu mundo interno e a realidade exterior.

Os seus cabelos sempre presos num coque formal e o seu corpo vestindo um terno com saia de uma cor cinza opaca — como sempre —, com a sua afeição relaxada, mas a postura rígida como as paredes do meu quarto, evidencia toda a sua autoridade e elegância.

As palavras não são necessárias agora. Ela simplesmente se senta ao meu lado, oferecendo a sua presença como um bálsamo para minha dor. E, pela primeira vez, permito-me sentir. Sinto a tristeza do adeus não dito, a fúria do abandono, a saudade daqueles momentos que nunca vivemos. As lágrimas ameaçam a fluir, cada gota carregando consigo uma parte do peso que carrego desde a infância, mas ainda assim guardo-as para mim.

Há seis anos que as mobílias escuras testemunham a minha dor, mas também testemunham a minha aceitação gradual. Aos poucos, percebo que as emoções não precisam ser classificadas em categorias restritas. O luto é complexo, multifacetado, e o meu coração tem espaço para a tristeza e a raiva, para a saudade e o ressentimento.

E não é como se fosse a primeira vez que preciso lidar com ele.

— Srta. Penélope, imaginei que estivesse a dormir — depois do que pareceram minutos, a Sra. Colleen levantou e caminhou até o vão, inclinou um pouco para olhar a paisagem oferecida pelo bom posicionamento da janela do meu quarto. — Por que não veio ao meu gabinete quando ouviu a minha convocação?

— Perdão, Sra. Colleen, eu não estava em condições de sair do quarto — respondi, desviando o meu olhar para a parede monótona cor bege.

Mas o olhar da diretora correu em direção ao buquê de Higanbana jogadas no lixo e aproximou-se de modo a tocar nas pétalas vermelhas.

Apesar de ser uma bela flor, embora venenosa, considerada símbolo do equinócio do outono no Japão, é tradicionalmente associado com a morte na sociedade japonesa, acho que os funcionários da I.T.I sentem tantas condolências pelo meu luto, que não puderam ignorar isso, mesmo eu estando a ser egoísta pelo ato tão nobre, não sou suficientemente forte para suportar isso.

As flores só me fazem recordar que já nem pai sequer possuo, ou seja, estou agora por minha conta.

Mas, no fundo, não estive sempre?

— Entendo — ela disse de repente, me fazendo prestar atenção novamente nela enquanto a mulher se endireitou para depois encarar-me de forma breve antes de caminhar em direção à saída. — Prepara-te, o seu atual tutor está prestes a chegar, venho buscar-lhe em alguns minutos — disse e partiu por fim do meu espaço particular.

Esperei alguns segundos antes de levantar do zabuton e fazer questão de preparar as minhas malas e em seguida aprontar-me.

As flores permaneceram onde as deixei e o álbum também, eu não tenho intenção alguma de os carregar comigo. Além disso, eu tenho as minhas próprias dúvidas com a pessoa que ficou com o fardo de ser meu responsável legal, já que o meu pai não era conhecido por ter grandes amigos, ou amigos sequer.

Vesti uma camisa branca e calças de ganga pretas, coloquei por cima um sobretudo bege simples que chegava até a metade dos meus joelhos e coturnos pretos.

E enquanto penteava calmante o meu cabelo e eu ouvi a diretora entrar de novo no meu espaço particular, levantei da cadeira e deixei a escova por cima da penteadeira, caminhando, e chegando por fim na sala, avistei um homem de terno escuro, mas com um enorme cachecol cor-de-rosa de tricô enrolado no seu pescoço, ele é um dos funcionários da instituição, e acho que jamais esquecerei o seu rosto, já que foi quem trouxe as flores.

O homem lançou-me um sorriso gentil e em seguida pegou as duas malas pretas que estavam encostadas do lado direito da porta e saiu rumo ao corredor enquanto a Sra. Colleen ficou parada esperando por mim.

Antes da mulher fechar a porta do cômodo pela última vez, despeço-me mentalmente dele.

Eu nunca escolhi ou pretendi afeiçoar-me ao cômodo, mas ainda assim, foi estranhamente o meu lar, o único sítio onde eu tinha conforto, afinal aquelas foram as únicas testemunhas das minhas insônias e prantos.

— A jornada será longa e sinuosa, mas você deve estar disposta a trilhá-la, um passo de cada vez, enquanto descobre o significado de perder e encontrar novamente nas sombras do seu próprio coração — ela falou de repente, sem olhar para mim.

Respirei fundo e segui por trás da mulher fria até chegar a saída do internato.

A brisa morna, mas agressiva fez alguns fios rebeldes cobrirem o meu rosto e observei atentamente a única limusine Rolls Royce Cullinan preta no vasto campo de estacionamento enquanto ajeitava o meu cabelo.

Demorou alguns segundos até sair de lá alguém, no caso, o motorista, sendo um homem alto e um pouco velho, ele atravessou até chegar a porta de trás, abrindo assim para que outro homem saísse.

Do carro surgiu um homem alto, muito mais alto que eu, a diferença de altura é gritante e é impossível não intimidar nenhum que fique ao seu lado.

O meu novo tutor emerge diante de mim, envolto em um terno formal preto que parece esculpir a sua presença poderosa. Um sobretudo da mesma cor cai elegantemente sobre o seu corpo, enquanto os seus sapatos envernizados refletem a luz com um brilho distinto.

O seu relógio reluz no pulso, uma declaração silenciosa de autoridade e riqueza. Tudo nele emana uma aura de controle e determinação, como se o mundo ao seu redor se inclinasse à sua vontade.

O seu cabelo preto e liso enquadra o rosto de traços marcantes, ressaltando a pele em um tom orvalhado. Os seus olhos, penetrantes e intensos, parecem esconder segredos profundos enquanto me observam com uma curiosidade sutil. O corpo musculoso e os ombros largos conferem-lhe uma presença imponente, como se ele fosse um guardião de poderosos segredos.

A mandíbula quadrada define a sua expressão, mostrando a firmeza de alguém acostumado a liderar e a tomar decisões difíceis. Mas é o detalhe inesperado entre os seus dentes que chama a atenção, um cigarro aceso que emite uma nuvem de fumaça que se perde no ar gélido.

Aquele gesto aparentemente casual revela um toque de rebeldia, um sinal de que ele não é apenas um homem de formalidades, mas também de nuances e mistérios.

Ele espera por mim no estacionamento, acompanhado por seu motorista pessoal, um cenário que parece saído de um filme noir. A tensão no ar é palpável, como se eu estivesse prestes a entrar em um mundo totalmente desconhecido e intrigante.

Ele me observa com olhos calculistas, como se tentasse decifrar algo em mim, como se eu fosse uma peça em um tabuleiro de xadrez que ele estava prestes a movimentar.

As minhas emoções estão em tumulto. Há uma mistura de apreensão e curiosidade, de incerteza e uma estranha atração pelo mistério que ele representa. O meu pai partiu e, no vácuo deixado por sua ausência, este homem poderoso surge como uma figura enigmática que agora desempenhará um papel central na minha vida. As sombras do passado parecem se entrelaçar com os contornos deste novo capítulo, e eu pergunto-me como essa história se desdobrará sob o olhar atento do meu novo tutor.

Quem é esse homem?

A diretora em algum momento segurou o meu braço e levou-me até ao homem, que permanecia quieto e com os olhos vidrados em mim. A sua expressão séria não me permitia captar nenhum traço de um possível sorriso, mas eu podia observar a cor oliva dos seus olhos cintilando na minha direção, me analisando.

O seu belo terno possui algo que me chamou bastante atenção desde o momento que consegui desvencilhar-me do seu magnetismo, um broche com as iniciais D'AR, um símbolo bastante presente na minha antiga casa, e por alguma razão, essa constatação fez o meu peito bater freneticamente.

— Sr. D'Artagnan, esta é a Penélope Veronesi, a sua protegida — a Sr. Colleen se pronunciou quando nos aproximamos o suficiente dele, mantendo uma distância segura, algo em torno de uns quatro metros.

Porém, o Sr. D'Artagnan ergueu a mão como um chamado, e a Sra. Colleen empurrou-me sutilmente para que eu atendesse o pedido.

Caminhei até ele em passos lentos e curtos, prestando atenção na sua expressão que ainda não havia mudado em nenhum momento desde que saiu do automóvel, entretanto, senti que se continuasse desse jeito, eu podia perder-me na imensidão dos seus olhos em um tom de azeitonas derretidas em divergência com o gelo que o seu olhar transparecia.

Soltei a respiração que havia prendido inconscientemente, mas continuei o encarando.

— Olá, Penélope. — Cumprimentou ele, erguendo o meu queixo com o dedo.

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