Capítulo 81DanteA luz me incomodava. Mesmo com os olhos fechados, eu sentia. Algo quente, filtrado, pulsando atrás das minhas pálpebras como se o sol estivesse apenas esperando que eu abrisse os olhos. A consciência voltava em ondas, cada uma trazendo um pouco mais de dor e de memória.Fragmentos.Tiros. O nome dela. O gosto de sangue na boca. E, depois, o silêncio.Minha cabeça parecia pesada demais para o corpo. Minha garganta seca, como se eu tivesse passado dias no deserto. Mas havia outra coisa. Um cheiro. Algo familiar. Doce. Calmo. Vida.Luna.Não era só uma lembrança. Era presença.Senti sua mão segurando a minha. Era firme, mas suave. A pele dela sempre teve esse contraste — quente, viva, determinada. Havia algo de reconfortante nesse toque, como se meu corpo finalmente tivesse reencontrado o eixo.Tentei mexer os dedos. Uma reação mínima, mas ela notou. Sempre nota.— Dante?A voz dela quebrou o silêncio com delicadeza, quase como uma súplica. E, ao mesmo tempo, uma afirma
Capítulo 82DanteO ar da manhã parecia mais fresco do que eu lembrava. Ou talvez fosse eu, diferente. Desacostumado a sentir o mundo de verdade, depois de tanto tempo entre a vida e o quase. A cadeira de rodas avançava devagar pela rampa do hospital, empurrada por um dos enfermeiros. Ao meu lado, Luna caminhava em silêncio. Mãos firmes no encosto, coração palpitando como se ela estivesse empurrando não só meu corpo, mas todo o peso do que atravessamos até ali.Ela sorriu quando nossos olhos se encontraram. E eu soube que não importava o tempo que levaria, ela estaria ali. Até eu ficar de pé de novo. Até voltarmos a ser algo mais do que sobreviventes.— Está pronto para voltar pra casa? — ela perguntou.Assenti. E mesmo com o corpo ainda frágil, a mente cansada e os músculos endurecidos pelo coma, aquela palavra — casa — teve um sabor doce e cheio de possibilidades.***A mansão estava diferente.Mais leve, talvez. Ou só mais viva.As flores do jardim estavam bem cuidadas. Os portões
Capítulo 83LunaMeses depoisA madrugada chegou com um silêncio estranho.Não era o silêncio tenso dos dias em que vivíamos à sombra da guerra. Era outro tipo. Um silêncio cheio de expectativa. Como o momento que antecede um trovão — você sente antes mesmo de ouvir.Acordei com uma pressão na barriga. Não era só desconforto. Era diferente. Um aperto profundo, como se meu corpo tivesse despertado junto com a criança dentro de mim, e ele dissesse: “É agora.”Sentei na cama devagar. Dante dormia ao meu lado, o braço estendido em minha direção, como se mesmo dormindo quisesse me proteger.— Amor… — toquei seu ombro, tentando não transparecer o medo que começava a crescer. — Dante, eu acho que tá começando.Ele abriu os olhos no mesmo instante. Os instintos dele eram tão afiados que às vezes eu me esquecia do quanto ainda estava aprendendo a me sentir segura. Mas com ele, eu sempre soube que podia.— Agora? — ele se ergueu, completamente alerta. — Tem certeza?Respondi com um olhar e outr
EpílogoLunaO sol começava a se pôr quando vi meu reflexo no espelho.O vestido era simples. Branco, de tecido leve, moldando meu corpo com a delicadeza que eu jamais imaginei merecer. As alças finas expunham meus ombros e as cicatrizes suaves que a vida me deixara. Eu não as escondi. Pelo contrário. Elas estavam ali como parte do que me trouxe até este dia.Mariana prendeu os últimos fios do meu cabelo em um coque baixo e elegante, deixando algumas mechas soltas ao redor do rosto. Chiara entrou no quarto com um sorriso discreto, segurando um pequeno buquê de lavandas — as flores que Dante havia plantado para mim no jardim da casa.— Ele está lá embaixo — disse Chiara. — Esperando por você. Com cara de quem vai desmaiar.— Ele sempre foi mais forte na guerra do que em cerimônias — sorri, mas a garganta apertou. — Meu Deus… estou mesmo casando com ele?— Está. Com o homem que você salvou — disse Mariana, se aproximando. — E que também te salvou.— Que sorte a de vocês dois — acrescent
Capítulo 1MarianaEra uma manhã comum, ou pelo menos parecia. O sol teimava em surgir entre as nuvens de uma primavera indecisa, e o cheiro de café fresco preenchia o ar da casa onde Luna morava agora. Eu não a via há semanas, não por falta de saudade, mas por medo. Medo de encarar tudo o que havíamos vivido. Medo de ver nos olhos dela a lembrança viva da guerra que quase nos matou.Mas naquele dia, eu fui. De táxi, olhando pela janela o tempo todo, como se a cidade também tivesse mudado, como se cada prédio novo apagasse um pouco do passado que insistia em me acompanhar. O motorista mal falou comigo, e eu agradeci por isso. Não queria falar. Queria chegar. Só isso.Luna me recebeu com um sorriso contido, mas caloroso. Seu ventre já exibia o desenho discreto da vida crescendo, e isso me emocionou mais do que eu esperava. Ela estava bem. Vitoriosa. Não sem marcas, claro, mas viva. Fortalecida.— Entra — disse ela, abrindo espaço para mim. A casa estava mais aconchegante do que me lemb
Capítulo 2MarianaA universidade era maior do que eu imaginava. Os prédios altos e modernos contrastavam com as árvores antigas que cercavam os caminhos entre os blocos. Era como se o tempo tivesse resolvido fazer uma pausa ali, misturando o novo e o velho de um jeito estranho e bonito. Mas, naquele primeiro dia, tudo o que eu conseguia pensar era: o que estou fazendo aqui?A decisão de voltar a estudar parecia muito mais simples na teoria. Mas agora, sentada sozinha no banco de concreto ao lado do bloco de Humanas, cercada por vozes desconhecidas e rostos jovens demais, eu me sentia uma intrusa.Suspirei, apertando a alça da mochila contra o colo. Algumas pessoas passavam apressadas, com cadernos nas mãos, outras caminhavam com calma, como se aquele ambiente fosse a extensão natural de suas vidas. Eu apenas observava, tentando absorver tudo. Sentia como se estivesse trinta passos atrás de todo mundo.— Oi, esse lugar tá ocupado? — uma voz feminina me tirou do devaneio.Era uma garot
Capítulo 3 Mariana Na semana seguinte, as aulas ganharam ritmo. Os corredores da universidade, antes estranhos e intimidantes, começaram a me parecer familiares. Ainda me sentia deslocada, é verdade, mas agora eu sabia onde ficavam minhas salas, os banheiros mais tranquilos e até uma pequena cafeteria escondida entre dois blocos, onde os croissants de queijo eram sempre frescos no meio da tarde. Era quarta-feira, o dia mais cheio da semana. Tinha três aulas seguidas e, por um erro na grade, havia um intervalo de apenas dez minutos entre uma turma e outra, em blocos diferentes. Já estava suando ao sair da aula de Teoria da Literatura II, com a mochila pesada e a mente cheia de anotações confusas, quando cheguei à nova sala. A porta estava entreaberta. Entrei com pressa e me sentei no canto, próxima à parede. A sala era mais escura que as outras, com as janelas cobertas por p
Capítulo 4MarianaA semana seguinte passou como um borrão entre leituras densas, cadernos rabiscados e noites mal dormidas. Ainda assim, pela primeira vez em muito tempo, eu me sentia viva. Havia algo naquela rotina que me desafiava. Era como se cada parágrafo de teoria, cada discussão em sala, cada olhar crítico me puxasse para fora de mim mesma.Na aula de Hermenêutica, eu cheguei alguns minutos mais cedo. A sala estava vazia, exceto por uma aluna do fundão que cochilava com os fones no ouvido. Escolhi meu lugar habitual, na fileira do meio, terceira carteira. Era o ponto de equilíbrio perfeito entre invisibilidade e presença.Henrique Azevedo entrou poucos minutos depois, carregando sua pasta de couro e com a mesma expressão séria de sempre. Depositou os materiais sobre a mesa, mas antes de iniciar qualquer coisa, olhou diretamente para mim. Por um instante, seus olhos se demoraram nos meus. Por um breve momento. Depois, desviou.— Hoje vamos continuar com a leitura de Gadamer — a