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       O dia aos poucos vai desabrochando, mas ainda é cedo e escuro no morro. A madrugada mal se havia afastado e Madalena preparava-se para mais um dia de trabalho. Às pressas sorvia um gole de ralo café com uma fatia de pão amanhecido. Teriam que descer, ela e a barriga, aqueles perigosos degraus até atingir o asfalto. Na mente tinha a certeza de ter que enfrentar todo aquele bando de androides famigerados caminhando em sentido contrário na busca pelas drogas.

       Estando ela próxima ao final do sétimo mês de gravidez, tornava-se cada dia mais difícil subir e descer aquelas escadas e ladeiras. Hoje, especialmente, todo cuidado era pouco, haja vista a insensatez e a pressa do contingente extra para a aquisição do produto tão desejado.

       Madalena temia pelo bebê. Apesar de ser fruto de estupro, sentia que aquele pequeno ser em formação no seu ventre era a única boneca que havia conseguido e ela a queria. Não entendia bem porque, mas a queria. De nada valeu a pressão feita pela mãe e o padrasto, tampouco a possibilidade de um aborto gratuito numa clínica especializada que atendia pelo Sistema Único de Saúde, com a devida autorização judicial. Mãe e padrasto muito fizeram para a obtenção da permissão judicial para que a filha pudesse se livrar do feto nela implantado contra a sua vontade e a força, mas Madalena foi irredutível. Ela queria a criança que culpa alguma tinha sobre o acontecido.

       No seu íntimo Madalena sentia que o bebê pedia para nascer e não sabia explicar como. Fato é que não aceitou o aborto legal e por isso morou com sua patroa por algum tempo, até que finalmente seus pais também aceitaram o fato e ela pode então retornar.

       Tudo aconteceu numas dessas noites sempre iguais do morro. Madalena se dirigia à casa de Joana, uma sua amiga que morava a algumas vielas dali. No trajeto foi abordada por três elementos encapuzados que há muito tempo vinham programando o estupro, encantados que eram pela beleza da moça. Sem terem chances para uma abordagem natural e civilizada, haja vista a total falta de cultura dos elementos envolvidos pelo narcotráfico, na primeira oportunidade que tiveram dela se serviam, na forma mais hedionda que se possa imaginar. Taparam sua boca, rasgaram suas vestes e, enquanto dois a seguravam, o terceiro dela se servia, revezando sempre até que seus anseios foram saciados. Eles deixaram seu corpo inerte jogado no barranco, ali permanecendo por varas horas até que juntou forças e se recompôs.

       Ao chegar a casa Madalena relatou o fato aos pais que, ante as circunstâncias, naquele momento nada puderam fazer, exceto cuidar dela. Sabedores que uma denúncia ou qualquer outro ato lhes traria medidas extremas de vingança por parte dos delinquentes, puseram-se a rezar para que o mal não viesse a se agravar ainda mais. Como tal fato mais tarde veio a acontecer com a gravidez, buscaram ajuda para um aborto legal rechaçado por Madalena.

       Quanto aos estupradores, permaneceram livres e impunes. Praticavam toda sorte de delitos, inclusive mais sevícias, até quer dois deles foram mortos pela ação da Polícia Federal no aeroporto internacional da cidade tentando embarcar drogas para o estrangeiro. O terceiro foi preso e posteriormente solto, vindo a falecer num confronto entre traficantes pela defesa do ponto de fumo, termo que muito usavam quando se referiam a um local de venda de drogas.

       Lentamente e com todo cuidado Madalena da Silva ia descendo aqueles degraus. Ora desviava-se de um, ora de outro que caminhava em sentido contrário, a passos apressados rumo ao topo do morro. Por diversas vezes foi obrigada a se encostar ao barranco para não ser simplesmente atirada ao chão, onde poderia de forma selvagem ser pisoteada ou atirada ribanceira abaixo.

       Na sua cabecinha de menina um pensamento bem fixo não a deixava. Aquela roupinha de bebê que vira na loja da dona Beta podia muito bem ser a primeira vestimenta que seu filho usaria logo após o nascimento. Hoje é sexta-feira, dia do seu pagamento semanal e a dona Beta poderia lhe facilitar a compra em duas, três ou até mesmo quatro parcelas. Contava com o fato da comerciante dela gostar e já lhe ter fiado outras compras. Gozava de prestígio e confiança por nunca ter desonrado qualquer compromisso antes assumido.

       Ainda descendo os perigosos degraus, pensava na cor das roupinhas que ia comprar. Seria rosa ou azul? Como, por sua própria opção, não sabia se o bebê a nascer era menino ou menina, a dúvida quanto à cor se justificava. Se comprasse rosa e fosse um menino? E se comprasse azul e fosse uma menina? De repente lembrou que alguém algum dia lhe disse que o branco era a cor da paz e optou por um conjunto de roupas brancas. Afinal, paz era tudo que o morro precisava e, se todos assim pensassem, se tudo fosse pintado de branco, se todos se vestissem com essa cor, talvez a tão sonhada paz no morro se fizesse presente.

       Os primeiros compradores já vinham retornando. Muitos experimentavam as drogas ali mesmo e alguns mais afoitos acabavam por abreviar sua viagem rolando pelas encostas e ribanceiras. Outros vinham morro abaixo como uma avalanche humana fazendo dobrar o perigo para a lenta Madalena. A distância até o asfalto parecia infindável e quando lá chegou com simples palavras fez uma prece; - graças da Deus! 

        Para a moça o asfalto representava uma linha divisória, uma faixa de transição entre o submundo noturno do morro e as agradáveis horas diurnas, repletas de muita atenção, carinho e solidariedade que lhe prestava a patroa, o marido e também dona Beta. Era com muita alegria que para lá se dirigia todo o dia. No ponto de ônibus aguardava ansiosa pelo coletivo que a levaria até a casa da patroa dona Alzira, onde trabalhava há mais de dois anos. Pensava sempre com muito carinho nela e mentalmente lhe agradecia pela acolhida que lhe dera quando do início da sua gravidez. Grata também era pela atenção que a família lhe dispensava e pela ajuda na formação do enxoval do bebê e da forma diferenciada que eles a alimentavam e pagavam seus exames de pré-natal.

       Todo esse carinho a fazia sentir-se querida, a esquecer das angústias vividas no morro e a realizar-se gente, gente como tanta gente que sempre sonhava ser gente e que, ao menos naquelas horas podia sentir-se gente.

       Ali no pé do morro junto do ponto de ônibus aguardando o “cipó”, termo usado pelos moradores do morro em referência aos coletivos, observava os filhos dos vizinhos e também as crianças da cidade passando a caminho das escolas municipais e estaduais distribuídas pelas redondezas. Lembrava-se dos poucos anos que também chegou a frequentar uma delas, tempo que não se fazia tão distante quanto parecia. Naquela escola, que dali do ponto de ônibus se podia ver o telhado, ela cursou o ensino fundamental, os quatro primeiros anos de aprendizado. Recordava ainda da professora e sorria, imaginando seu futuro pimpolho, ou pimpolha, frequentando os mesmos bancos escolares.

       - Será que a professora Vera vai dar aulas pra ele também? Esse pensamento era constante na cabeça da moça. Tal como a ela, via a educadora ensinando seu filho a desenhar primeiras letras, fazendo os primeiros trabalhos escolares e a escrever a primeira carta-lembrança para o dia das mães. Lembrou também que ali ela aprendeu a sua primeira oração, uma Ave Maria até hoje muito recitada. Mas agora ela própria queria ensinar os versos ao filho.

       Despercebida não foi às vezes das travessuras de menina. Nem das brincadeiras de esconde-esconde, pula corda e da saltitante amarelinha. Dos colegas e ainda da fraca e rala merenda que muito ajudava a aliviar o seu e muitos outros estômagos vazios.

       - Hei cara, olha lá. A biscatinha do morro vai indo pro trampo, ta ligado?

       Essa frase maldosa a ela dirigida por um dos “meninos” que por ali passava bloqueou seus pensamentos e pôs fim às suas fantasias. Imediatamente seu pensamento voltou para a triste realidade do morro em que vivia. Ela conhecia todos os elementos ligados ao tráfico daquele lugar e também dos morros vizinhos. Por eles ela era sempre intimidade para que nunca os delatasse. Abaixou a cabeça e rogava pela rápida chegada do coletivo.

       Enquanto aguardava pelo ônibus, Madalena, cercada pelos “meninos”, sofria toda sorte de assédio ante os olhares indiferentes e amedrontados das pessoas que também esperavam pelo coletivo. Os marginais tocavam-lhe os seios, as nádegas, as coxas e ameaçavam socar sua barriga. Também a aterrorizavam verbalmente:

       - Quando teu filho nascer ele vai trabalhar pra nós, ta ligada.

       - É isso ai, cara. E fica quietinha senão ele nem nasce, ta ligada.

       - Cara. Larga ela que o cipó vem vindo. Vamos embora.

       A indefesa Madalena sequer conseguia balbuciar alguma coisa mais que alguns ais quando era beliscada, mordida ou apertada por eles. Com a chegada do ônibus viu-se mais aliviada, mas um deles ainda a segurou pelos longos cabelos obrigando-a a olhá-lo bem nos olhos e disse:

       - Se você abrir a boca nós vamos apagar toda sua família, ta ligada.

       Soltaram-na com um empurrão. A jovem se recompôs e deu uma rápida olhadela em sua volta. Ninguém teve a coragem de erguer um só dedo em sua defesa e agora não tinham coragem de encará-la. De cabeça baixa entraram no ônibus como um bando de rês a caminho do matadouro.

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