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       Um festival de fogos de artifícios iluminou toda a madrugada no alto do morro. Com um barulho ensurdecedor, desenhava no céu figuras com os mais diversos coloridos e clarões dourados e prateados riscavam a noite como cometas, acordando todo aquele povo simples e humilde. Os cães procuravam abrigo em todos os becos e os gatos sumiam desesperados dos telhados.

       Muitos dos cidadãos, cujo horário de trabalho satisfazia o período noturno, foram pegos de surpresa. Apesar de já terem assistido a cenas semelhantes por várias vezes, não estavam aguardando para agora uma nova distribuição de drogas, coisa previamente alertada pelos traficantes. Desta vez, porém, o prévio aviso não veio e daí a surpresa.

       Na tentativa de encontrar um abrigo na escuridão da noite iluminada apenas pelos fogos de artifícios, o povo facilmente se acidentava pelas ladeiras e ribanceiras ferindo-se gravemente. As crianças choravam fazendo uma espécie de coro e estendiam os braços aos pais a pedir proteção, aninhavam-se no colo dos genitores que, devotos que eram, punham-se a rezar implorando a Deus a paz que tanto queriam.

       O morro e seus habitantes entravam em polvorosa. Os moradores acostumados que estavam aos confrontos entre marginais e policiais desapareciam barracos à dentro. O medo e a insegurança lhes traziam recordações de fatos passados, nos quais muitos haviam tombado. Tinham a certeza que neste também muitos haveriam de tombar e torciam para não ser o próximo.

       Os pais deitavam-se ao chão rústico e geralmente de terra batida sobre os filhos, enquanto as protetoras mães ajoelhavam-se ante uma imagem santa qualquer e oravam. Oravam ao céu, oravam a Deus, oravam a todos os santos para que tudo logo terminasse e assim livrasse os seus de uma possível tragédia. Tragédia esta que muitos preconizavam ser iminente.

       As frágeis tábuas que serviam de paredes nos barracos, muitas delas já quase totalmente perfuradas por disparos anteriores de nada serviam como proteção, mas era a única que tinham e, rezando sempre, delas se valiam e nelas se abrigavam.

       Em meio à repentina confusão, a jovem Madalena da Silva enfiava-se por baixo de uma pequena mesa na esperança de tê-la como um abrigo antiaéreo capaz de protegê-la, a ela e ao filho ainda em gestação. Sua enorme barriga comprimia-se e a posição em cócoras lhe fazia doer as costas tornando-se a cada instante mais inconfortável. Ela temia por danos ao bebê e chorava muito, um choro lamentoso de quem criança ainda era, uma criança que vivia como adulta e já tão castigada pelos males da sociedade.

       A menina-mãe ora segurava a barriga, ora tapava os ouvidos com as mãos em concha, ora com elas cobria a face e seus enormes olhos amendoados como a se proteger. Assim tentava ocultar-se de todo aquele alarido, tentativa que sabia só ser válida e viável por vontade divina com a proteção do Espírito Santo.

       O barraco de um só cômodo era um dos últimos naquela comunidade e se localizava bem no topo do morro. Abrigava a ela, o padrasto, a mãe e os três filhos menores de idade, todos pseudoprotegidos pelas frágeis paredes de madeira, teto que de nada valia durante as chuvas e com chão de terra batida. Uma porta e uma janela faziam a entrada e a circulação de ar daquilo que chamavam de lar, ou às vezes de um pedacinho de chão.

       Dentro dele nada mais havia que alguns caixotes formando catres servindo de cama. Uma tábua sobre dois cavaletes era a mesa e no canto um velho fogão a gás, adquirido a duras penas numa loja de produtos usados destinava-se a esquentar o café pelas manhas e preparar algumas refeições. Caixas de papelão eram usadas como guarda-roupas e o banheiro era comunitário, bem no fim da viela. Madalena, acostumada que era à higiene da casa da patroa na cidade dele evitava fazer uso, mas seu estado, principalmente à noite, fazia-lhe difícil segurar suas necessidades até o dia seguinte. Não raro voltava vomitando do fim da viela.

       O estado avançado da gravidez de Madalena por muitas vezes exigia uma caminhada noturna até o sanitário, chegando mesmo a ir mais de uma vez por noite. Em muitas já o encontrava ocupado, obrigando-se a fazer uso da imundície do local para suas necessidades fisiológicas. Ela temia contrair doenças que pudessem prejudicar o bebê e por isso torcia a que logo chegasse o dia do seu nascimento.

       As horas noturnas eram-lhe intermináveis. Seus pensamentos dirigiam-se sempre aos primeiros raios de sol que a levaria até a casa da patroa, onde tinha ao menos durante as horas diurnas, uma sensação de vida digna, bem diferente da situação subumana oferecida pelo morro. Como se sentia bem na casa da patroa!

       Naquele momento a cena dentro do barraco era exatamente igual a centenas de outros que por ali se espalhavam. Todos os moradores deitados ao chão, mães rezando ao céu e os pais a proteger seus rebentos e netos deitando-se sobre eles. Os relâmpagos dos fogos de artifício emprestavam uma atmosfera de terror ao invadir os lares pelas frestas das janelas, portas e tábuas mal posicionadas, apertando o coração e fazendo aumentar o sofrimento daquelas almas que nada mais tinham além da incerteza do dia seguinte.

       O pânico era geral entre os homens, mulheres e crianças. Muitos, principalmente os mais idosos, tinham ali mesmo suas vidas abreviadas, não por tiros e balas perdidas, mas pelo agravo de doenças como enfarte, hipertensão e choque emocional. Os acidentes também mutilavam, machucavam e até tiravam vidas, da mesma forma que as doenças.

       A majestosa Lua que a tudo presenciava, em dado momento resolveu ocultar-se por entre os flocos de nuvens não mais dando o ar da sua graça e tampouco seu reflexo da sua luz ao morro, tornando tudo ainda mais aterrorizante o palco de guerra que ali se desenvolvia, deixando a população cada vez mais amedrontada.

       Varetas de rojões caiam sobre os tetos de zinco provocando um enorme e assustador barulho, assustando os cães que latiam sem parar. Após longas e desgastantes horas, todo aquele estardalhaço foi diminuindo, diminuindo, até que finalmente cessou. Preguiçosamente os últimos riscos de fogo se apagaram no céu e uma grande nuvem de fumaça se depositava bem no cume do morro. Só lá ou acolá ainda se podia ouvir raros estampidos, já fracos e quase que totalmente perdidos.

       Aos poucos, pequenos pontos de luz iam aparecendo por entre as frestas das portas e janelas dos barracos. O povo do morro já quase totalmente desperto, tímido e amedrontado, se arriscava em rápidas olhadelas para saber o que ainda se passava nas suas vielas e becos. Com o coração em disparada e a respiração ofegante, olhavam-se mutuamente a se examinarem e davam graças por mais uma noite de sobrevivência.

       Bem de vagar alguns mais ousados começavam a deixar a casa e ganhar a rua. Procuravam por vizinhos, parentes e amigos e se asseguravam de que, ao menos, todos estivessem vivos e bem. Sem muita convicção, a coragem aos poucos lhes vinha voltando e uma pequena multidão já se formava por várias vielas, até que quase todo o morro punha-se em pé. Sonolentos e ainda amedrontados faziam um murmurinho de vozes que se espalhava por todos os acessos e mil histórias eram contadas sobre quem e porque provocou toda essa barulheira.

       Fato era, entretanto, que todos sabiam e ninguém duvidava de quem e do porque da confusão. Até os pequenos nos seus primeiros anos de vida concluíam que o morro, através dos seus dominadores, ia fazer mais uma farta distribuição de drogas e o dia seguinte receberia a visita de centenas de moradores desta e de outras cidades vizinhas. Mais uma vez o morro presenciaria a tudo, se calaria e até mesmo colaboraria com os traficantes sob suas ameaças e na mira dos seus potentes armamentos.

       Eles conheciam bem o que era essa distribuição e temiam pelo aumento da insegurança, já bastante precária, que esse contingente extra lhes traria. Recordavam e comentavam sobre distribuições anteriores onde os drogados, no clímax da insanidade, ateavam fogo nos barracos, molestavam crianças e saqueavam o pouco que os adultos possuíam. Tudo faziam pela droga e para a droga, sem se importarem com seus semelhantes. Tão verdade era que, em dado momento, várias silhuetas encapuzadas, portando pesadas armas, apareceram do nada e deram voz de comando; - todo mundo pra dentro. Aqui não tem nada que interessa pra vocês.

       Era o porta-voz dos traficantes. Empunhando forte armamento semelhante ao usado pelo exército, mostrava toda sua autoridade ao povo com gestos brutos e cara de poucos amigos. A amedrontada gente de bem que ali estava nada podia fazer, exceto acatar a ordem e bater em retirada. Sequer se atreviam a olhar para trás.

       Sentada numa caixa de madeira que antes servia ao armazenamento de laranjas nas feiras livres, Madalena da Silva segurava a barriga, grande e pesada demais para os seus poucos quinze anos. Morena jambo, rosto e beleza singela, cabelos pretos e compridos, corpo ereto, pernas longas e lisas mostrando o esplendor do corpo longilíneo na elegância do caminhar e a beleza da etnia formada pela mistura de raças, faziam a jovem se destacar entre outras da sua mesma idade. Filha de um desconhecido turista estrangeiro com mulata nordestina, Madalena desfilava encanto e beleza por todos os lugares que passava e agora, mesmo a sua enorme barriga lhe emprestava graça.

       Contudo, essa graça e maravilha natural não mais transcendiam àquela meninice doce, pueril e inocente, tão comum nos jovens da sua idade. Acariciada pela mãe, às vezes lhe voltava a menina de que há muito não era, esperando o embalo e canção de ninar que nunca tivera. Encostava-se ao colo materno e sonhava. Sonhava com as belas bonecas que lhe alegravam os sonhos do presente. Sonhos infantis que sabia nunca serem sonhos, tampouco presentes.

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