O reflexo no espelho me encara com olhos marejados. Tento sorrir, mas o lábio treme. Respiro fundo.
Hoje é o meu casamento. Três anos. Esse foi o tempo que levei para tirar do papel o desenho que meu pai fez do meu vestido de noiva. Foram noites acordada costurando, bordando, alinhando cada pedrinha com o cuidado de quem toca uma relíquia. Cada ponto tem a marca da saudade. E quem vê, diz que parece ter sido feito por ele. E talvez tenha mesmo. Porque em cada linha, em cada dobra do tecido, eu sentia como se as mãos dele estivessem comigo. Antes de vir para a igreja, passei no cemitério. Sempre faço isso nos momentos importantes. É como se minha alma precisasse do silêncio daquele lugar para se encontrar. Meu pai... ele foi tudo. Meu herói, meu melhor amigo, meu porto seguro. Desde que ele partiu, há cinco anos, carrego esse vazio que parece não ter fim. Há dias em que ainda espero ouvir sua voz me chamando de "minha pequena". Ajoelhei-me diante do túmulo. Deixei flores coloridas, ele dizia que a vida era bonita demais pra ser cinza. E ele sorria com o olhar quando via cores ao nosso redor. — Oi, pai... — minha voz falhou, baixa demais até para mim mesma. Um filme passou diante dos meus olhos: ele me ensinando a andar de bicicleta, me levando na escola, me abraçando forte nos dias em que o mundo parecia desabar. — Sua princesinha está pronta. Apertei o vestido com as mãos. Queria tanto que ele estivesse ali. Queria sentir o peso da sua mão sobre meu ombro, ouvir sua risada desafinada, vê-lo secar minhas lágrimas antes mesmo que elas caíssem. — Olha só, o vestido ficou exatamente como você desenhou. Lindo. Como prometido. É como se você estivesse aqui comigo. Engoli o choro. Queria contar coisas boas. — Tem mais uma coisa… — sorri entre lágrimas. — Você vai ser avô. Descobri há quinze dias. Foi uma surpresa daquelas. Uma brincadeira com as meninas da faculdade. Uma aposta boba... e o meu teste foi o único que deu positivo. Dois meses, pai. E ainda nem contei ao Zaian. Quero contar hoje, durante os votos. Fechei os olhos. A lembrança dele se formando no meu coração como uma brisa morna. — Sei que vivia dizendo que ele não era confiável... mas, pai, ele me faz feliz. Ele cuida de mim, ri das minhas piadas sem graça, me abraça como se o mundo coubesse naquele momento. Me deseja sorte? Toquei a foto dele, um gesto quase paralisado, mas necessário. Como se através do vidro eu pudesse sentir sua pele quente, como se ele ainda estivesse ali, me guiando. No carro, enxuguei as lágrimas. Tentei respirar fundo, sorrir, focar no que importava. Mas o coração apertava como se estivesse prevendo algo que a razão se recusava a aceitar. Sempre ouvi que o tempo cura a dor da perda. Mas por que, em mim, ela ainda sangra tanto? Por que ainda sinto como se tivesse o perdido ontem? Porque, no fundo, nunca me perdoei. Nunca aceitei que ele morreu por minha causa. A cicatriz que carrego na pele é só um lembrete do que carrego na alma: ele deu a vida por mim. Cheguei pelos fundos da igreja. O salão estava em silêncio, e minha mãe e minha irmã me esperavam. Entrei no camarim e me sentei diante do espelho. A maquiagem estava intacta, mas os olhos... denunciavam tudo. — Nem acredito que esse dia chegou. — minha mãe disse, com a voz embargada. — Parece um sonho, mãe. Tenho até medo de acordar. — respondi, tentando conter as lágrimas. — Para com isso. — Samantha se aproximou, com um sorriso doce. — Você está maravilhosa. Deu até vontade de casar de novo. Ela ajeitou meu cabelo com carinho, e minha mãe se aproximou, me olhando com ternura. — Como conseguiu fazer o vestido tão igual ao que seu pai desenhou? — Eu não sei... — respondi com um nó na garganta. — Mas acho que ele nunca deixou de me guiar. Um silêncio se fez, mas era um silêncio cheio de lembranças. Cheio de amor. — Ele estaria tão orgulhoso de vocês duas... — minha mãe disse, acariciando meu rosto. Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas. O tempo passou devagar. Duas horas. Duas horas sentada ali, esperando. Meus pés batiam no chão sem parar, como se pudessem expulsar a angústia que crescia dentro de mim. Zaian ainda não tinha chegado. Não respondia mensagens, não atendia as ligações. — Onde está esse menino? — minha mãe resmungou, tentando esconder a preocupação. — O normal é a noiva atrasar, não o noivo. — E a Raquel? Ela não chegou ainda? — perguntei, sentindo a garganta secar. — Disse que tinha uns assuntos pra resolver. — Samantha respondeu, tensa, olhando o celular. Levantei-me, inquieta. Algo dentro de mim dizia que aquele silêncio escondia mais do que um simples atraso. Uma batida na porta. Meu coração disparou. Talvez fosse ele. Mas não era. Era Pablo, o melhor amigo de Zaian. Entrou com um sorriso caloroso, tentando suavizar a tensão. Seus olhos, no entanto, diziam outra coisa. — Está perfeita, boneca. — disse, segurando minha mão e me fazendo girar. — Obrigada... Ele já chegou? — Chegou. Mas... não saiu do carro. Fui até lá, chamei, insisti. Mas ele não quis falar comigo. — Deve estar nervoso, só isso... — minha mãe disse, tentando convencer a mim e a ela mesma. — Samantha, vai lá falar com ele. Minha irmã assentiu e saiu com pressa. Pablo se sentou ao meu lado, segurando minha mão com firmeza. — Fica calma. Ele te ama, Livy. Deve ter travado. Isso acontece. — Eu sei... só... não é do feitio dele sumir assim. — murmurei. Conversamos por alguns minutos. Pablo tentava me distrair, me lembrar de que Zaian era o amor da minha vida. Mas até o jeito que ele sorria... estava diferente. Forçado. — Não te falei, mas você ficou lindo de terno. — disse, tentando sorrir. — É só você para me convencer a virar um pinguim. — ele brincou. Rimos. Mas meu coração não riu junto. A porta se abriu. Samantha entrou. Seus olhos vermelhos entregaram tudo. O rosto pálido, as mãos trêmulas. Meu peito afundou. — Samy? O que houve? — corri até ela, o vestido esvoaçando atrás de mim. — Ele... quer falar com você. — foi tudo que conseguiu dizer, com a voz fraca. — Mas por que ele ainda não entrou? Ela hesitou, respirou fundo, apertou minha mão. — Só... vai até ele. A gente te espera aqui. Fiquei ali, parada por um segundo. Meus pés congelados. Minha alma implorando para não sair daquela sala. Mas eu precisava ouvir. Precisava saber. Ergui a cabeça, respirei fundo, e caminhei até a porta. Uma parte de mim ainda acreditava que Zaian estava apenas nervoso. Mas no fundo... No fundo, alguma coisa dentro de mim já sabia. Algo havia mudado. E meu coração estava prestes a descobrir da pior forma.