O silêncio pairava pesado sobre a clareira, quebrado apenas pelo som abafado das folhas sob os pés de Kael.Alicia ainda sentia a pele quente, onde a marca dourada agora repousava, quase adormecida, sob o tecido de sua blusa. Ela se afastou dele com um passo hesitante, como se cada centímetro de distância fosse uma pequena vitória sobre o turbilhão que se formava dentro de si.— Isso não significa nada — ela sussurrou, com a voz mais firme do que esperava. — Eu não te conheço. Não conheço esse lugar. Essa marca… não muda quem eu sou.Kael não respondeu de imediato. O olhar dele a atravessava, escuro, intenso. Como se pudesse vê-la além da carne, além da teimosia.— Ainda não. — A voz dele era baixa, mas carregada de uma certeza perigosa. — Mas vai mudar.Alicia cruzou os braços. Era um gesto defensivo, mas também desafiador. Algo nela se recusava a ceder. Mesmo quando tudo gritava para que ela se entregasse.— Me leve de volta. Quero ir embora.Kael a observou por mais um momento ante
Acordar naquela manhã foi como emergir de um sonho que ainda agarrava sua pele. Alicia sentia o corpo dolorido, os músculos tensos, como se tivesse corrido por horas — ou lutado com algo que ainda não compreendia.A marca em seu ombro latejava. Pulsava como um segundo coração.Ela se vestiu com roupas que haviam deixado para ela — calça de tecido grosso, uma blusa justa de mangas compridas e botas reforçadas. Roupas de treino, aparentemente. E quando desceu as escadas da casa, encontrou uma mulher à porta, esperando-a com os braços cruzados e um sorriso enviesado no rosto.— Bom dia, princesa da lua. — A voz era irônica, mas não hostil. — Eu sou Thalia. Beta da matilha. E hoje a gente vai descobrir se você serve pra mais do que carregar uma marca bonita.Alicia arqueou a sobrancelha.— Sempre tão acolhedores por aqui?Thalia soltou uma risada baixa.— Você não faz ideia.A clareira de treino ficava num platô elevado, cercado por árvores grossas e o som constante da floresta viva. Vári
O cheiro de sangue cortava o ar.Alicia corria atrás de Kael, os galhos batendo em seus braços como chicotes, mas ela mal sentia. Seu corpo estava alerta, os sentidos aguçados como se uma parte dela — uma parte antiga, selvagem — tivesse despertado.Eles chegaram à clareira e a cena diante deles fez seu estômago revirar.Três lobos estavam caídos. Dois guerreiros da matilha e um outro… um invasor. O pelo dele era negro como a noite, os olhos vidrados, arregalados em ódio mesmo depois da morte. O símbolo dos renegados estava cravado em seu peito — um X cortando a marca da própria linhagem. Um juramento de exílio. E de vingança.— Renegados? — Alicia murmurou, tentando entender o que estava acontecendo.Kael já estava ajoelhado ao lado de um dos lobos feridos. Seus olhos estreitos, os punhos cerrados. — Eles não atravessavam nossas fronteiras há meses. Isso foi um recado.— Um recado pra quem?Ele se virou para ela. O olhar afiado como lâmina.— Pra você.O silêncio caiu como uma senten
O som dos uivos rasgou a madrugada.Alicia despertou ofegante, os lençóis colados à pele pelo suor. O quarto estava escuro, mas o brilho da lua atravessava as frestas da janela, banhando o chão com um feixe prateado. O mesmo brilho que agora pulsava em sua marca, queimando com uma intensidade que ela nunca havia sentido.Ela se levantou com pressa. Algo estava errado.Do lado de fora, vozes se misturavam aos rosnados. Lobos em alerta. Passos apressados ecoavam pelo vilarejo. Alicia correu, vestindo às pressas a calça e a jaqueta que estavam sobre a cadeira. Assim que abriu a porta, Thalia apareceu à frente, os olhos arregalados.— Eles voltaram. Mais lobos renegados. Vieram em maior número desta vez.— Onde está Kael? — Alicia perguntou, já descendo os degraus.— No limite da floresta. Ele ordenou evacuar os jovens e os idosos. Vamos segurá-los até que todos estejam seguros.Alicia assentiu, mas algo dentro dela se rebelava. Ela não queria apenas fugir. Não queria apenas se esconder.
O calor da lareira não alcançava a tempestade dentro de Alicia.Mesmo envolta em cobertores, com uma xícara fumegante nas mãos, ela não conseguia se aquecer. O corpo ainda pulsava com a lembrança da transformação — da força crua, da fúria em sua carne, do instinto que havia tomado o controle.Ela havia matado.Mas, mais do que isso, havia despertado algo que não compreendia. Algo que não era totalmente lobo… nem humano.— Ainda está tremendo? — Thalia sentou-se ao lado dela, oferecendo um segundo cobertor. — Sua energia está instável. O despertar mexe com tudo — mente, corpo… alma.Alicia balançou a cabeça, os olhos fixos nas chamas.— Eu me vi de fora, sabe? Por um momento. Como se eu não fosse eu.Thalia suspirou. — Isso acontece com os que carregam o sangue da Lua. Seu poder não é comum. Nem deveria estar adormecido por tanto tempo. Quando despertou… veio como uma avalanche.— E minha mãe? — Alicia perguntou, sem rodeios. — Ela também era assim?Thalia hesitou. Olhou em direção à p
O som do impacto ecoou pela clareira.Alicia caiu de joelhos na terra úmida, o peito arfando. As palmas das mãos estavam sujas de barro e pequenas folhas secas grudavam em seu cabelo. O gosto metálico de sangue enchia sua boca. De novo.— Levanta. — A voz de Kael soou firme, cortante.Ela apertou os punhos, tremendo.— Você não está pegando leve — cuspiu, entre os dentes.— Não posso. — Ele deu um passo à frente, o olhar impassível. — Seus inimigos também não vão.Ela o odiava naquele momento. Odiava a calma com que ele falava, a frieza dos olhos, a forma como seus músculos se moviam sob a pele bronzeada, impecável, como se aquilo tudo fosse fácil demais pra ele. Como se ela fosse apenas uma novata quebrada tentando sobreviver.Mas também… parte dela o admirava. E talvez fosse isso que doía mais.Alicia se levantou, os músculos gritando em protesto. O treinamento havia começado ao amanhecer, e o sol já se escondia entre as árvores. Kael não poupava esforços — e ela também não aceitava
O vento carregava o cheiro de algo errado.Kael sentiu antes mesmo de atravessar a trilha que levava à fronteira norte. Seus sentidos estavam em alerta, o lobo inquieto sob a pele. Alicia o seguia de perto, os olhos dourados estreitados, farejando o mesmo rastro estranho que cortava o ar.— Não é da nossa matilha — ela disse, franzindo o cenho. — Esse cheiro...— É antigo — Kael rosnou. — Mas familiar.Havia algo no perfume selvagem e adocicado que trazia lembranças sombrias. Uma presença que ele não sentia há anos, mas que jamais esqueceria.Eles alcançaram a clareira próxima à pedra dos limites. A energia ali vibrava como um aviso silencioso.E então, ele apareceu.Vestia apenas uma calça preta, os pés descalços na terra. Alto, esguio, com músculos finos como lâminas escondidas sob a pele morena. Os olhos eram prateados como metal líquido. E seu sorriso... um corte afiado, sem humor.— Draven — disse ele, como quem saboreava uma palavra maldita.Kael avançou, ficando entre Alicia e
O céu estava carregado de nuvens, e o cheiro de chuva se misturava ao perfume da floresta. Alicia caminhava entre as árvores, tentando organizar os pensamentos. Caelus não era só um perigo. Ele era uma sombra viva do passado — e talvez a chave para compreender tudo o que lhe fora negado.Ela parou ao lado de uma árvore retorcida e apoiou a mão no tronco. Sentia o pulsar da terra, como se algo dentro dela quisesse acordar de vez.— Não é seguro andar sozinha — disse uma voz atrás dela.Kael.Alicia não se virou.— Desde quando me deixar respirar é considerado perigoso?Ele parou a alguns passos.— Desde que Caelus entrou no jogo.O silêncio entre eles era espesso. A tensão, constante.— Por que você nunca me contou sobre ele? — ela perguntou, finalmente o encarando. — Sobre o que ele fez com a minha mãe?Kael desviou o olhar para o horizonte, o maxilar trincado.— Porque reviver aquela história me custa mais do que você imagina.— Mas é minha história também, Kael.— Eu sei.Ele deu al