Capítulo I - O Mundo Encantado

Acordei assustada, levantando de repente. Estava suando frio e com a respiração acelerada como se eu mesma tivesse corrido por toda a floresta. Era sempre assim quando eu tinha aquele pesadelo.

― Liss, anda logo. Temos que ir ao Centro de Treinamento ― a voz da minha irmã vinha de fora do meu quarto, junto com batidas sem ritmo que irritavam minha audição perfeita.

― Já estou levantando, Helen ― gritei para acalmá-la enquanto me deitava novamente e cobria meus olhos com um braço.

Minha família não lidava muito bem com meus pesadelos e eu sempre precisava respirar fundo antes de começar um dia que se iniciava com eles. O pior era que naquelas últimas semanas eu tinha pesadelos todas as noites. Na verdade, eu não poderia dizer pesadelos, no plural.

Levantei da cama e fiquei encarando meu reflexo no espelho d'água de corpo inteiro. Toquei no espelho e a água ondulou, distorcendo minha imagem e modificando-a para uma com roupa diferente. Escolhi a primeira que apareceu porque eu nunca gostava de procurar muito apesar de gostar ainda menos quando Helen reclamava das minhas roupas. Dei de ombros para mim mesma e estalei meus dedos, fazendo minhas roupas queimarem de alto a baixo e serem trocadas pelas que apareciam no espelho.

Pensar na minha irmã me fez lembrar do que eu tinha que esconder dela. Meus pesadelos, de fato, eram apenas um; o mesmo tormento que invadia minha mente todas as noites. Eu era levada em uma fuga pela floresta, carregada por um homem que só existia na minha cabeça. Ele me escondia em um tronco caído e era abordado por perseguidores que eu nunca conseguia ver. De repente, uma luz brilhante e dourada saia daquele homem e eu acordava antes mesmo da luz se dissipar e eu poder ver as árvores, as estrelas e a lua sobre mim. Antes que eu pudesse descobrir se o homem tinha conseguido fugir.

Eu sempre tive esse pesadelo ou, pelo menos, eu não me lembrava de alguma época em que não os tive. Geralmente ele acontecia esporadicamente, mas esse era o único detalhe sobre ele que havia mudado. Eu também não me lembrava de nada antes dos meus 20 anos, o que piorava tudo.

Depois de 150 anos, meu pesadelo ainda não tinha me abandonado.

Inclinei minha cabeça e sorri para meu reflexo. Minha mão direita pousou sobre a pele entre minhas clavículas enquanto o pensamento de que os Feys envelheciam muito mais lentamente que os humanos invadiu minha mente. Minha mãe dizia que minha aparência aos 170 anos era a mesma que a de um humano com 17 anos apenas. “Que estranho deve ser aquele mundo”, pensei.

Ajeitei rapidamente meu cabelo castanho para trás dos meus ombros e abandonei meu reflexo, saindo do quarto. Era hora de encarar minha família.

Enquanto seguia pelo corredor, comecei a ficar ansiosa pelo que aconteceria em breve no Centro de Treinamento.

Eu andava mantendo muitos segredos da minha família: meu pesadelo, o pouco controle que tinha sobre meu poder de fogo e a luz que brilhava em minhas mãos quando eu ficava muito nervosa.

Não eram segredos que eu manteria por muito tempo. Afinal, uma vez que eu chegasse ao Centro de Treinamento, os problemas que eu tinha com o fogo logo ficariam evidentes.

Quando entrei na cozinha e encontrei meus pais e Helen sentados à mesa, já tomando café da manhã, tentei mostrar-lhes o meu melhor sorriso e esquecer o que meu nervosismo rapidamente poderia fazer com minhas mãos.

― Sente-se, minha luz. Você precisa se alimentar antes de ir para o Centro ― disse meu pai com um sorriso radiante, ou quase isso, já que ele não era muito de sorrir.

Minha luz. Todos os dias eu me perguntava por que meu pai me chamava daquele jeito. Os dias em eu que tinha o pesadelo eram os que eu mais ficava desconfiada. Provavelmente ele sabia o que tudo aquilo significava.

Dei bom dia e sentei, sem parar de pensar que meus pais também mantinham segredos de mim.

Nem sempre eu tinha escondido meus pesadelos da minha família. Até meus 90 anos, mais ou menos, eu contava para eles sobre minhas noites mal dormidas. Com o tempo, eu acabei notando que meus pais ficavam agitados, entreolhando-se, dando evasivas às perguntas e fugindo de mim como uma gazela foge da leoa na caçada. Então, decidi parar de atormentá-los e nunca mais contei nada.

Naquela manhã, porém, enquanto estava tomando café com eles, ouvindo meu pai me chamar de "minha luz", eu senti vontade de revelar os meus segredos e obrigá-los a me dizer o que eles sabiam. Mas eu não faria aquilo por dois motivos: primeiro, eu nunca iria obrigá-los a nada e, segundo, eles sumiriam antes que eu pudesse terminar de dizer "pesadelo".

― Bom dia!

Virei para observar Cooper entrando pela porta dos fundos.

― Não existe privacidade neste mundo ― exclamou Helen, fazendo um sorriso travesso surgir no rosto de Cooper.

― Bom dia, Cooper ― saudou minha mãe.

Quando ela se levantou e começou a reunir os pratos na pia, seus cabelos vermelhos brilharam como chamas na noite. Aquela era uma das diferença entre mim e minha família: tanto minha mãe quanto minha irmã tinham cabelos vermelhos, enquanto eu tinha cabelos castanhos. Meu pai era careca, então ele não entrava na conta.

― Bom dia, Cooper ― saudou meu pai, também se levantando para ajudar minha mãe.

― Bom dia, senhora Satine, senhor Solomon ― respondeu Cooper, apoiando um braço no encosto da minha cadeira e pegando uma maçã da mesa. ― Prontas para o Centro, meninas?

― Você realmente não tem nenhum traço de inteligência, não é, Cooper? ― Perguntou Helen ao se levantar. ― Quem fica pronto para o Centro?

Cooper deu de ombros enquanto mastigava, depois se abaixou e sussurrou em meu ouvido:

― Ela acordou irritada hoje, não?

― Parece que sim ― sussurrei de volta no ouvido dele ―, deve ter caído da cama.

― Eu odeio vocês ― disse Helen, parando de costas para a porta dos fundos e cruzando os braços. ― Sabem que eu posso ouvir tudo, não é?

Nós, Feys, temos a audição bastante aguçada, uma característica extremamente necessária quando se trata do trabalho de cuidar da paz e da harmonia na natureza. É claro que eu e Cooper sabíamos disso, mas era engraçado fingir que não quando implicávamos com Helen.

― Ela me lembra uma fênix em seu último momento quando fica assim ― Cooper sussurrou de novo em meu ouvido enquanto olhava para minha irmã, que realmente parecia estar pegando fogo com a luz do sol iluminando seus cabelos por trás.

Eu ri e me levantei, limpando minhas mãos na pia. Então virei para ele e disse:

― Continue implicando com ela e quem pegará fogo será você.

― Como se eu tivesse medo de uma faísca ― respondeu Cooper dando de ombros.

Os olhos de Helen ganharam um brilho vermelho e Cooper pulou no lugar, esfregando a mão na bunda por cima da calça de seda azul.

― Droga, Helen ― ele reclamou, indo em direção a minha irmã. ― Essa é minha melhor calça.

― Deveria ter pensado nisso antes de implicar comigo ― respondeu Helen encarando meu melhor amigo.

― Está na hora de ir ― eu disse, passando pelos dois. ― Troque de calça, Cooper.

Pude ver meu amigo de cabelos castanhos curtos estalar os dedos antes de sair de casa, e a calça que era azul virou cinza. Não esperei por eles e fui andando pela rua de cascalho.

Não era normal ver as ruas tão vazias na minha aldeia. Os Feys estavam sempre perambulando pelos caminhos, praticando suas atividades diárias para o sustento de todos.

As tarefas eram divididas igualmente no Mundo Encantado, dependendo das habilidades de cada um, e todo Fey ajudava do seu jeito a prover a aldeia e a vida.

Nós somos responsáveis pela natureza, por isso alguns de nós ainda recebiam tarefas desse tipo, mas eram muito poucos, já que no Mundo Encantado a harmonia estava sempre presente.

Porém aquele dia era especial. Todos deveriam comparecer ao Centro de Treinamento, onde os Feys que estavam entre 170 e 180 anos seriam classificados para suas tarefas.

― Garota, você anda rápido ― disse Cooper, aparecendo do meu lado.

― Está com tanta pressa por quê, Liss? ― Perguntou Helen, aparecendo do meu outro lado.

― Quero acabar logo com isso ― respondi, sem diminuir o passo.

― Vai me dizer o que está acontecendo ou vai continuar fingindo que está tudo bem? ― Perguntou Cooper como se não fosse nada demais ele saber que tinha algo errado quando tudo que eu queria era esconder aquele fato.

Eu era muito boa de atuação. Era mesmo! Mas, por algum motivo obscuro, Cooper sempre sabia quando algo estava errado.

― Ela teve outro pesadelo ― respondeu Helen antes que eu pudesse abrir a boca com uma desculpa.

Ok! Talvez eu não fosse tão boa atriz quanto pensava.

― Como você sabe, Helen? ― Perguntei, finalmente parando de andar e encarando meus acompanhantes. Minha raça me assustava um pouco, às vezes, por ser tão intuitiva.

― Você não fala muito de manhã quando tem pesadelos ― respondeu Helen, encolhendo os ombros.

― E sempre anda muito rápido quando está nervosa ― completou Cooper.

― Sei que não quer falar sobre isso, Liss ― disse Helen, colocando uma mão sobre meu ombro ―, mas precisa resolver essa situação. Teve pesadelos durante todos os dias dessa última semana.

“Durante todos os dias das duas últimas semanas”, pensei.

― Ninguém gosta de falar sobre isso, Helen ― respondi frustrada. ― Sabe como ficam nossos pais quando toco no assunto. Parecem dois coelhos assustados.

― Talvez outro Fey possa ajudar ― disse Cooper.

Olhei para meu amigo esperançosamente. Se eu podia conseguir ajuda, aceitaria de quem fosse.

Cooper abriu um sorriso travesso e seus olhos castanhos pareceram divertidos. Ele passou um braço sobre meus ombros e me forçou a continuar andando.

― Depois que acabarem os testes no Centro, eu levo você lá. Tenho certeza de que ele saberá o que fazer.

― Quem é ele, Cooper? ― Perguntou Helen, seguindo do nosso lado.

― Vocês vão saber ― respondeu enigmaticamente.

Revirei meus olhos e ignorei a discussão que os dois iniciaram.

Meu pesadelo não era o único problema com o qual eu estava preocupada nas últimas semanas.

A classificação no Centro de Treinamento dependia das habilidades que os Feys tinham sobre seu elemento. Eu não estava preparada. Há duas semanas, desde que os pesadelos se tornaram recorrentes, eu não conseguia manter o controle sobre as chamas que eu criava. Assim que começassem os testes, eu perderia o controle. Eu tinha certeza disso.

O Centro de Treinamento surgiu na nossa frente e foi ficando maior na medida em que nos aproximávamos. A atmosfera perto e dentro daquele lugar era pesada, negra. Provavelmente por estar sempre cheio de Darkens.

Mesmo antes de chegar ao Centro era possível ver muitos deles, Feys das Trevas que cercavam o lugar por fora e outros posicionados nas janelas. Eles controlavam os testes e, inclusive, a aldeia em dias comuns. Eles controlavam tudo desde que tinham derrotado a Rainha há mais de 100 anos.

Eu nunca conheci o tempo em que o Mundo Encantado não era dominado pelos Darkens – ou pelo menos não me lembrava dele. Eles sempre tinham estado ali, observando e controlando, e impedindo qualquer tentativa de rebelião.

Aqueles que sabiam como era o Mundo Encantado antes dos Darkens nunca falavam sobre isso. Eles também tinham medo. Talvez mais do que os jovens que foram ensinados a temer.

Quando chegamos ao Centro e entramos, senti o medo percorrer meu corpo dos pés a cabeça. Quase toda a aldeia estava presente, mas ainda tinham alguns Feys chegando.

Um Darken parou na nossa frente e apontou para Cooper.

― Você vai para a arquibancada.

Cooper demorou um pouco para obedecer e eu vi os olhos daquele Darken ficarem completamente negros na medida em que ele ficava irritado.

― Não fiquem nervosas ― disse Cooper sério, uma característica que quase nunca aflorava nele.

― Agora! ― Gritou o Darken, empurrando Cooper.

Vi os olhos do meu amigo adquirirem um brilho vermelho quando olhou para o Fey das Trevas que o tinha empurrado.

Mas nem mesmo Cooper era bobo o suficiente para enfrentar um Darken em um dia como aquele. Por isso ele seguiu em frente, deixando o brilho se apagar.

― Vocês duas. ― O Darken apontou para nós. ― Vão para a arena.

Agarramos no braço uma da outra e seguimos para o lado oposto ao de Cooper.

― Esses monstros me dão arrepios ― disse Helen assim que nos afastamos o suficiente do Darken.

― Está sendo injusta com os monstros ― respondi.

Helen era apenas três anos mais velha que eu, por isso faria o teste naquele ano.

Os testes eram realizados de cinco em cinco anos, conseguindo incluir todos os Feys em tarefas específicas.

Desde que os Darkens estavam no comando, os testes tinham outro objetivo além da classificação de atividades: eles serviam para mostrar os Feys mais poderosos da aldeia. Aqueles que conseguissem notas perfeitas eram chamados para a "Colheita"; em outras palavras, eram levados pelos Feys das Trevas e nunca mais eram vistos.

Os Darkens diziam que eles estavam sendo levados para tarefas especiais e importantes, mas todos sabiam que eles deviam estar encarcerados em algum lugar onde não podiam usar seus poderes.

Nós aprendíamos que a melhor opção era tirar notas ruins, pois assim não seríamos levados embora, mas nem sempre era possível. Os testes eram muito difíceis e perigosos, e nossos instintos nos faziam usar os poderes para sobreviver. Apesar de todos saberem que o que acontecia nos testes não era real, na hora do desespero quase ninguém lembrava disso.

Cooper tinha feito o teste 40 anos antes, quando tinha 175. De algum jeito, ele tinha conseguido se manter calmo e utilizar menos de um terço de seus poderes. Também tinha conseguido notas medíocres nos testes e fora alocado para a tarefa menos desejada da aldeia. Ele tinha ido parar nos Arquivos.

Os “Arquivos" era como todos chamavam a biblioteca da aldeia. Todo tipo de documentação era mandado para lá, mas era proibida a entrada sem autorização dos Feys das Trevas, o que significava que só duas pessoas tinham acesso ao lugar: o bibliotecário e seu assistente. Cooper era o assistente. Eu nunca tinha conhecido o bibliotecário.

Para alguém de 173 anos, era muito difícil não conhecer alguém que deveria ser importante, e isso demonstrava por que ninguém queria a tarefa de Cooper. Quem iria querer ficar confinado em um lugar cheio de papiros?

Helen e eu entramos na sala conjunta da arena. Havia mais uns 15 Feys da nossa idade. Helen cumprimentou todos. Eles tinham um olhar assustado estampado no rosto. Fiquei imaginando quantos de nós ainda estariam na aldeia quando os testes acabassem.

Apenas mais um Fey entrou antes dos sinos tocarem, indicando que estava na hora de começar.

Um dos Feys participantes do Conselho da aldeia entrou pela outra porta, que dava exatamente no lugar em que seriam os testes, e começou a chamar os nomes dos candidatos.

O Conselho era o que poderíamos chamar de líderes da aldeia. É claro que essas posições eram simbólicas já que os Darkens comandavam tudo. Mesmo assim, os conselheiros eram um pouco intimidadores. Principalmente nos testes quando chamavam os candidatos mais velhos antes dos mais novos.

Aquilo me deixou mais nervosa. Eu, com meus 173 anos, seria uma das últimas.

Aos candidatos não era permitido assistir aos testes uns dos outros, então ficávamos naquela sala separada da arena. Tudo o que nos era permitido era ouvir e tudo o que ouvíamos eram os gritos desesperados da plateia.

Se quem estava de fora estava apreensivo, imagine o que estava sentindo quem estava participando dos testes.

Depois que terminavam, os candidatos passavam novamente por aquela sala para ir para a arquibancada. No entanto, era proibido falar com qualquer um que ainda estivesse ali dentro.

Quando Helen me deixou e entrou na arena, eu desejei ter contado tudo para ela sobre todas as dificuldades que eu estava tendo e como eu estava nervosa, mas ela não precisava adicionar o meu nervosismo ao dela.

Enquanto eu ouvia os gritos dos Feys que clamavam pela minha irmã, eu olhei para minhas mãos. Elas estavam começando a ficar mais claras. Eu tinha que me controlar ou estaria brilhando como o homem dos meus sonhos quando entrasse na arena. Por mais que eu não soubesse o que aquilo significava, eu sabia que os Feys das Trevas não iriam gostar e, como Cooper, eu não tinha intenção de brigar com eles naquele dia – nem nunca se eu pudesse evitar.

Respirei fundo diversas vezes. Tentei parar minha audição para não ouvir os gritos na medida em que a sala ficava cada vez mais vazia. Somente quando fiquei sozinha, eu notei que não iria me acalmar o suficiente para apagar minhas mãos.

“Mas talvez eu possa disfarçá-las”, pensei e estalei os dedos, fazendo luvas aparecerem para esconder o brilho no momento exato em que o Fey conselheiro chamou meu nome.

Segui lentamente para a arena, sentindo a ansiedade percorrer meus sentidos. Quando entrei, a primeira coisa que notei foi a ausência completa de vida.

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