05. A História de Lifa

Senti alguém me abraçando e voltei a lembrar que não estava sozinha. A moça estava ajoelhada, segurando meus ombros e encostando minha cabeça em seu colo. Só então percebi que estava no chão.

– Não fique constrangida, eu já o conheço há muito tempo! – a moça parecia entender exatamente o que eu estava sentindo. – Acho que nem tivemos a oportunidade de nos apresentarmos? Meu nome é Lifa!

Balancei a cabeça como se tivesse acabado de acordar, me levantei e me reapresentei.

– Eu sou Beatriz! – provavelmente minha cara de chora ainda estava armada – Desculpe por todo esse transtorno!

– Já disse para não se constranger, não há necessidade para isso! – ela agora parecia mais segura, mas o olhar triste permaneceu junto à imensidão azul. – Não que comer alguma coisa, você parece estar com fome!

– Muito obrigada, eu irei aceitar sim! – no estado em que estava não podia negar uma oferta destas.

Conversamos por um bom tempo. Falamos sobre mim e sobre como eu havia parado naquele mundo estranho. Ela pareceu acreditar em cada palavra que eu dizia, o que era ótimo – detestaria ter mais uma pessoa desconfiando de mim. Aos poucos ela foi me conhecendo melhor, mas parecia não querer falar muito dela, e eu não quis perguntar por hora.

– Se quiser descansar, pode me dizer! – ela se levantou – Eu lhe mostro o quarto.

– Agradeceria, estou realmente cansada!

Andamos pela cozinha – pequena, apenas com uma pia, uma mesa, um armário e algo que parecia uma geladeira. Na volta reparei melhor na sala. Assim como a cozinha, a sala não era muito grande. Havia um sofá, ao lado da porta, uma mesinha de centro e uma estante repleta de livros.

Passamos pela sala e entramos em um corredor. Havia 4 portas, duas de cada lado, e ela me levou até a segunda à direita.

– Fique à vontade! – ela era muito simpática – Caso queira usar o banheiro, é a segunda porta a esquerda.

– Muito obrigada! – agradeci.

– Neste baú tem algumas roupas de dormir - Lifa sorriu – Se tiver alguma que te sirva, pode usar!

– Com certeza vou querer – já me recuperava – Dormir com esse vestido talvez não seja confortável.

– Qual quer coisa, eu estarei na sala! – ela sorriu – Amanhã conversamos melhor. Boa noite!

– Boa noite! – respondi enquanto ela fechava a porta.

Havia velas acesas em um candelabro, ao lado da minha cama. O quarto também não era muito grande, tinha – além da cama – um criado mudo, que estava embaixo das velas, uma cômoda de quatro gavetas, um tapete, o baú e uma janela que nem de longe lembrava o tamanho da janela do castelo. Isso me fez pensar o motivo de Neandro não morar com a família.

Abri a janela e me deparei com parte da grande árvore. Ela parecia bem maior agora. O silêncio quase completo era tranquilizador. Ouvi apenas alguns barulhos de folhas e um vento fresco e gostoso passando pela janela e trazendo um agradável cheiro de frutas. Era a noite mais bela que já havia presenciado.

Olhei para o céu. Apesar da árvore, pude notar um fato curioso: havia três luas em Monterra! Cada lua com um tamanho diferente. Era estranhamente belo. Reparei melhor em outra coisa curiosa: a cama.

Ela era parecida com um tronco de árvore, mas tinha um certo charme. Absolutamente sem nenhuma semelhança com a cama do castelo, mas o colchão era tão confortável quanto.

Deixei a janela aberta e deitei na cama. Que dia estranho eu havia passado. O que estaria fazendo as pessoas na Terra? Estariam preocupados comigo? Minha mãe deveria estar enfartando com o meu sumiço.

Chorei novamente. Chorei por medo do desconhecido, medo de estar metida em uma enrascada, medo de nunca mais voltar para Terra. Eu estava com muito medo. E o medo me deixava triste.

– Oi dorminhoca? – uma voz doce me chamava.

– Minha nossa, estou atrasada para escola! – levantei assustada com a doce ilusão de estar em casa.

– Não! – a voz de Lifa quebrava a ilusão – Acho que você ainda não se acostumou com a ideia de estar em outro mundo!

– Então não foi um sonho? – sentei novamente na cama.

– Infelizmente não! – ele sentou ao meu lado e colocou a mão em meu ombro – Sinto por você.

– Não... Tudo bem. – tentei me conformar novamente.

– Deixaram isso para você! – ela puxou do chão algo que me era muito familiar.

– Minha mochila! – um pequeno momento de alegria me acertou quando vi minha mochila. – Quem trouxe? Foi o Alexis?

– Não! – ela parecia querer rir da minha cara – Foi um dos guardas do castelo. Parece que você está trazendo a tropa inteira para cá!

Rimos e ela me chamou para tomar o café da manhã. Um belo café da manhã!

Ao contrário do que imaginava, os cafés da manhã em Monterra eram muito parecidos com os da Terra. Tinha pão, suco, leite, frutas, porém, tudo em formas um pouco diferentes das que conheço.

O pão era grande e redondo, tipo um bolo de aniversário. As frutas tinham todas o mesmo formato da maçã que havia comido no dia anterior, o que diferenciava era o tamanho e a cor. O suco e o leite estavam em jarras de porcelana branca e os copos eram de metal, mas com detalhes ornamentais e com cores.

Estava morta de fome e comi tudo o que me foi oferecido. Acho que ainda estava sofrendo com o jejum do dia anterior.

Assim que terminei o café da manhã, fui até a sala e fiquei observando a estante de livros. Havia realmente muitos livros, mas não conseguia ler nenhum. Eram letras estranhas e com formas irregulares, mas alguns haviam figuras e essa era uma linguagem universal.

Um dos livros que peguei tinha uma coroa e uma espada desenhadas na capa dura e vermelha. Não havia preenchimento de cor no desenho, apenas uma linha dourada fazendo as voltas dos objetos. Resolvi “ler” esse.

A primeira figura era de uma moça, cabelos longos com uma tiara. Suas roupas pareciam de uma princesa, deduzi que fosse um conto de fadas. Ela parecia estar vivendo em uma felicidade plena, mas seus olhos estavam longes, como se quisesse mais.

A outra imagem era de um jovem rapaz, cabelos escuros e de armadura, com uma longa espada na mão. Parecia muito preocupado e tinha medo em seu rosto.

Passaram algumas páginas sem nenhuma figura, até que apareceu novamente a princesa da primeira ilustração, mas desta vez com um manto que cobria todo o corpo. Ela estava se jogando na frente de um cavalo. Era o guerreiro da segunda ilustração que estava cavalgando.

Os olhos dos dois pareciam não querer se separar nunca mais, estavam cheios de surpresa e admiração. Era como se eles se buscassem desde o dia em que nasceram e agora estavam ali, finalmente juntos.

Passei mais algumas páginas com a escrita estranha de Monterra, o que acabou me deixando aflita. Estava desejando saber entender o que aquelas letras significavam.

A ilustração seguinte foi preocupante. Estavam os dois a cavalo, sendo barrados por guardas de armadura. Ela estava com um olhar triste e ele estava novamente com o olhar preocupado e com medo.

O livro seguiu neste ritmo, ilustração, páginas escritas, ilustração e mais páginas escritas e a cada nova ilustração, minha ansiedade em saber exatamente o que estava acontecendo aumentava.

As figuras seguiram nesta ordem: A princesa havia voltado para o castelo, o guerreiro foi preso. A princesa ajudava o guerreiro a fugir, os dois se escondiam na floresta. Uma guerra começava e eles pareciam preocupados.

– Beatriz! – Lifa interrompeu minha “leitura”. – Venha aqui um momentinho! – Deixei o livro em cima da mesa e fui até o quarto dela.

Assim que entrei me deparei com um vestido em um tipo de manequim sem cabeça. Era um belíssimo vestido. A parte de cima era branca, com um decote não muito grande, suas alças eram amaradas ao pescoço e o restante de tecido que sobrava caia até a cintura, dando um toque medieval no vestido. A parte de baixo era preta e parecia ter vários panos enrolados, de tantas voltas que dava, mas no fim era esse o grande diferencial.

 – Vamos, vista! – ela sorriu.

– O que? Esse vestido é para mim? – estava surpresa.

– Claro, bobinha! – ela continuava sorrindo – Você não quer ficar o tempo inteiro aqui nesta casa certo?

– Acho que não.

– E você não pode sair com essa roupa! – lembrei deste fato – Tomei a liberdade de pegar aquele vestido que estava usando para lavar. Não sei por quais caminhos você e o Alexis passaram, mas o vestido estava muito sujo.

– Você está sendo muito bondosa – sorri.

– Tire logo essa roupa e vamos medir esse vestido! – ela já estava puxando minha blusa – Não creio que precisará de ajustes!

Apesar de nunca ter ficado de peças intimas com ninguém, Lifa era tão simpática e descontraída que logo me senti à vontade.

– Hum, acho que vai precisar dar só uma apertadinha na cintura, mas o resto ficou ótimo! – ela dizia enquanto me virava para o espelho.

Não demorou muito e ela apertou o vestido. Em seguida ela me ajudou a arrumar o cabelo, coisa que eu não era muito experiente.

Aos poucos eu ia me afeiçoando a Lifa. Nós havíamos nos conhecido não tinham nem 24 horas e já estávamos nos dando tão bem quanto como se tivéssemos uma vida de amizade. Estava achando isso incrível.

Tomei um grande susto quando tudo ficou pronto. Eu estava linda. Apesar de ser um vestido simples, o corte dele era tão atraente que fazia o vestido parecer de grife e o meu cabelo tinha ficado tão belíssimo quanto ele.

Lifa havia prendido em um coque a parte esquerda do meu cabelo, deixando apenas uma pequena mecha ao lado do meu rosto. A parte direita ficou solta, caindo sobre meu rosto e preso a orelha.

– Você é algum tipo de bruxa? – perguntei.

– Não, apenas fiz você parecer uma legitima nebriana! – ela bateu palmas para o trabalho bem feito.

Ela me levou para conhecer a cidade. Caminhamos pelas ruas até chegarmos a uma praça, onde ficava o relógio que havia visto no quarto do castelo.

A praça era muito bonita. Havia várias árvores e muitas flores. Havia pessoas andando em um tipo estranho de veículo que me fez lembrar uma bicicleta, pessoas caminhando entre o campo verde que cercava quase toda a praça e algumas crianças nadando no rio. Além do relógio, pude ver as outras duas torres e a igreja. 

– Essa é a Praça de Nebro! – ela parecia maravilhada, mas logo seu rosto se entristeceu – Mesmo com uma guerra já declarada, a praça continua linda!

– Guerra? – imaginei que estivesse falando do famoso Leo qual quer coisa. Estava certa.

– Não me surpreende que eles não tenham te dito nada. – a expressão dela mudou neste momento. Ficou com raiva – Eles lá só pensam neles!

– Mas então... Me conte! – fiquei curiosa.

– Há mais ou menos 1 mês o chefe das tropas de Nebro, braço direito do Rei Célio, começou uma terrível rebelião contra os reinos de Monterra. Muitas pessoas se juntaram a ele e começaram atacando a capital.

– Este reino? – interrompi.

– Sim! – ela voltou a ficar triste – Muitos reinos se uniram à Nebro e mandaram pessoas de suas tropas para ajudarem a destruir a tropa que Leone havia criado.

– Leone! Alexis dizia que eu era espiã de Leone! – lembrei do fato.

– Leone e sua tropa foram vencidos, Nebro venceu a 1ª batalha.

– E isso não é bom? – estranhei.

– Seria, se não tivesse acontecido aquilo... – ela fitou o chão. Pelo seu olhar, sabia que mesmo se pedisse muito ela não me diria o que era “aquilo”.

Chutei o chão e – para não perder o costume – quase cai de joelhos novamente, mas Lifa me segurou antes que isso acontecesse.

Continuamos andando pela cidade. Lifa me mostrou a igreja, que era um tanto parecida com as catedrais que temos na Terra. Mostrou as duas torres que foram construídas por monarcas da família real e hoje eram apenas “parte da história de Nebro” como ela mesma disse.

O passeio poderia ter sido extremamente divertido, se não fosse por um fato.

Praticamente todas as pessoas que vi olhavam para nós com cara feia. Era como se soubessem do “nosso segredo” e estivessem prontos para gritar para quem estivesse interessado em ouvir. Reparei também que Lifa parecia não estar gostando, mas ignorava completamente os olhares opressores que estavam em cima de nós duas.

Fomos em uma loja que mais se parecia com uma lanchonete. Era algo muito bonito para ser um botequim, mas descontraído demais para ser um restaurante. A única opção que me sobrava era lanchonete, apesar de achar que aqui em Monterra deveria ter um outro nome.

– Você está com fome? – ela respondeu minha dúvida.

– Sim! – respondi sem pensar duas vezes.

Ela pediu dois sucos e um prato com frutos do mar. Diferente do que eu pensava, as comidas em Monterra eram quase as mesmas da Terra, apenas o formato era diferente.

– Estava delicioso! – respondi não só para ser educada, mas por que realmente estava ótimo.

Voltamos para casa com os mesmos olhares repreensivos do início. Aquilo já estava ficando chato.

– Espero que tenha gostado do passeio. – ela entrava em casa.

– Foi maravilhoso! – respondi com um largo sorriso no rosto.

Aquele passeio me fez esquecer exatamente tudo o que eu queria esquecer. Foi revigorante conhecer Nebro, exceto pelo fato dos olhares estranhos, mas isso já estava esquecido.

Lifa sentou no sofá e relaxou o corpo, soltando os ombros e fechando os olhos. Fiz o mesmo. Quando abri novamente, Lifa estava com o livro que eu havia pego na mão.

– Você estava lendo esse livro? – ela perguntava como se isso fosse possível para mim.

– Sim... Digo, não... Bem... Eu tentei, mas eu não entendo o que está escrito!

Ela sorriu e abriu o livro na página em que os dois mocinhos se encontram pela primeira vez.

– Esse livro se chama “A História de Lifa”! – ela sorriu

– Olha, é o seu nome! – disse como se ela nunca tivesse percebido isso. – É sobre a sua história?

– Não! – ela fechou um pouco o sorriso – Mas existem muitas semelhanças. Conta a história de Lifa, uma princesa que se apaixona por um aventureiro. O amor dos dois é proibido por causa de leis estúpidas, mas eles lutam por esse amor até o fim.

– Que bela história! – já havia me apaixonado pelo livro antes, depois de saber a história havia virado fã.

– Realmente, é uma bela história! – ela fechou o livro – Mas não gosto muito do final.

– Sei... – sussurrei como se realmente soubesse.

– Se quiser posso te ensinar algumas coisas em Monteres. – Lifa tentou sorrir.

– Monteres? – achei graça.

– É a língua oficial de todos os reinos de Monterra – Lifa começou a explicar – Houve um tempo que existiam outras línguas, mas isso acabou já tem 100 anos. Hoje apenas os seres errantes continuam a usar suas línguas nativas.

– Mas qual o motivo desta mudança? – fiquei curiosa.

– Havia muito desentendimento. – ela deu de ombros – Mas vamos deixar essas aulas para outro dia. Estou um pouco cansada.

Lifa foi para o quarto e me deixou na sala. Assim que ela fechou a porta, minha curiosidade em saber o final do livro me tomou por completo. Peguei imediatamente o livro e fui direto para as páginas finais. A última figura era realmente decepcionante. Na verdade eram várias figuras, tipo uma história em quadrinhos.

O aventureiro estava cercado, vários soldados estavam espalhados entre as montanhas e em volta dele. A princesa estava sendo segurada por um guarda na segunda imagem e parecia desesperada. Na terceira imagem, uma mão de um dos soldados preparando uma flecha. A quarta e quinta imagem se completavam. Através de traços rápidos, a ilustração deixa a entender que a princesa conseguiu se soltar dos guardas e entrou na frente do aventureiro. Por fim, com um grande destaque, a cena final. A flecha atinge o peito da princesa, que cai morta nos braços do aventureiro. Realmente, era um final ruim.

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