Entre risos e lágrimas
Entre risos e lágrimas
Por: Edyangel Marques
Capítulo 1

Entre Risos e lágrimas

 Década de 50, um casal chega em São Paulo. Joaquim e Ana, ela com 16 anos ele 30, deixaram sua cidade natal em Minas Gerais. E, como tantos, vieram tentar a vida na cidade grande. Ana, uma mulatinha faceira com olhar cheio de malícia, logo se encantou com a bela cidade de São Paulo. Por outro lado, Joaquim, um homem mais maduro, bonito, com fisionomia de índio, só queria fazer a vida em São Paulo e cuidar da sua mulher. Pois a vida no interior era muito difícil. Decidiram ir pra São Paulo em busca de uma nova vida. E com apoio de parentes, eles poderiam recomeçar. 

 Ela tinha um irmão que trabalhava na Light. Ele estava com vida estabelecida, era casado e tinha duas filhas pequenas. E prontificou em ajudá-los. Em pouco tempo eles arrumaram serviço. Joaquim conseguiu trabalho numa metalúrgica e Ana foi trabalhar em uma pensão só para rapazes. A vida deles era difícil, mas estavam bem, pois ainda não tinham filhos. 

 Algum tempo depois, o primo de Joaquim descobriu e contou a ele que Ana estava lhe traindo. Ele perdeu a cabeça e bateu muito nela. Assim se separaram. Ana envolveu-se com um viajante e teve uma filha de nome Sueli. Joaquim, por sua vez, envolveu-se com outra mulher e teve um casal de filhos, Antônio e Natalina. 

 Algum tempo depois eles começaram a frequentar a igreja e o pastor aconselhou-os para que voltassem a viver juntos, pois ainda eram casados no papel. Depois de muito diálogo, resolveram se dar uma nova chance. E cada um aceitou a nova situação, pois ambos já tinham filhos de outros parceiros. Joaquim levou o casal de filhos, agora eles tinham três crianças pra criar. Joaquim construiu uma pequena casinha no terreno que foi dado à Ana. E quatro anos depois, em novembro de 1958, eu, Marta, nasci. Meu pai ficou muito feliz. Mostrava-me para todo mundo e dizia que agora sim ele tinha uma filha legítima. Um ano depois nasceu meu irmão Paulo. No outro ano nasceu minha outra irmã, Mirian. Agora éramos em seis crianças para eles cuidarem. Meu pai tinha que trabalhar muito pra sustentar a mulher e as crianças, pra não deixar nada faltar pra família. 

 Meu pai tinha o Mal de Chagas. Certo dia, por causa dessa doença, durante o trabalho teve um enfarte fulminante e morreu, deixando minha mãe com seis crianças pra criar. Mas deixou uma boa pensão tanto para ela e pra nós. Nossas idades, nesta época, eram assim: o Antônio tinha 10 anos; a Natalina, 9; a Sueli, 8; eu, 4; o Paulo, 3; e a Mirian, 2 anos. 

 Passado algum tempo, minha mãe, não superando a morte do meu pai, começou a beber, viver em bares e festas e ficando com vários homens que ela pudesse. Não tinha pudor e nem respeito pelos filhos que ainda dependiam dela. A minha querida irmã Sueli passou a fazer o papel que devia ser da minha mãe. Com apenas 8 anos, ela cuidava de todos os irmãos, lavava roupa, fazia comida, dava banho em todos os irmãos. Enquanto ela estudava pela manhã, a Natalina ficava encarregada de cuidar da casa. Mas, ao invés disso, ela batia em nós, amarrava pé e mão e fazia a gente andar. Era uma verdadeira tortura, mas ela era uma criança também e como todos os irmãos era comum brigarem, mas todos respeitavam nossa irmã Sueli. Ela, quando tinha de ser dura e impor respeito, ficávamos quietinhos, mas sabia também nos dar carinho e amor quando precisava. À noite eu tinha muito medo, não conseguia dormir. Então a Sueli, apesar do cansaço, contava histórias e todos adormeciam, menos eu. Não sei se era o medo. Eu tinha visões horríveis que me deixavam apavorada.

 Um tempo depois, uma mulher vendo a nossa situação, levou a Natalina pra trabalhar pra ela. Já meu irmão Antônio pegou a doença do macaco. Era uma doença que na época era muito conhecida, mas se não tratada levaria à morte. Uma senhora vizinha e que morava sozinha, o levou dizendo que iria criá-lo e cuidar dele. Ela tinha fama de pedofilia, mas não tinha opção, pois meu irmão iria morrer. Nossa mãe já estava fora da realidade, já tinha se entregado ao álcool e à vida fácil. Na nossa rua morava a família do seu Jorge, ele tinha vários filhos. Entre eles a Leotina, cujo apelido era Tininha, que fez amizade com minha mãe e incentivava a ficar com seu próprio pai, acobertando todas as suas sujeiras com os homens casados. Sueli arcava com tantas responsabilidades que não tinha tempo nem pra curtir com as amigas. Tinham vários garotos querendo namorá-la, mas sempre dizia que não queria se envolver com ninguém porque nós éramos a prioridade dela.

 Apesar de ser pequena, eu admirava minha irmã por ter aquela mente e o amor que nem mesmo nossa mãe tinha por nós. Ela sofria por ter deixado a Natalina e o Antonio serem levados por pessoas estranhas, mas não podia fazer nada, então se dedicava a cuidar de mim, do Paulo e da Mirian, que também eram muito pequenos. 

 De vez em quando, meu tio Pedro, irmão da minha mãe, vinha visitar a gente. Gostávamos muito dele. A gente pensava que ele era rico por dirigir a camionete da Light. Ele não trazia nem uma bala e ainda comia nossa pouca comida. Falava do outro irmão dele, Valdivino, que tinha levado um tiro no olho, mas tava bem. Ele morava no interior, era peão de cavalo. Depois o tio Pedro dava um sermão na minha mãe e ia embora. Ficávamos falando dele, de como a casa dele era bonita e tinha luz elétrica. A gente adorava vê-lo comendo de garfo e faca a pouca comida que tínhamos. Quando acabava a comida, a Sueli pedia para vizinhos. Quando não ganhávamos, a gente ia para o mato atrás de frutas. Não matava a fome, mas ajudava a gente não dormir de barriga roncando. 

 Mas à noite eu não conseguia dormir. Eu ficava acordada escutando os cachorros latindo bem longe, ouvia passos na rua. De madrugada ouvia minha mãe chegando com sua turminha. No quarto tinham duas camas grandes de casal. Numa dormíamos eu e a Sueli. O Paulo e a Mirian dormiam na outra. Minha mãe, com sua turma, chegavam e acendiam o lampião. Entre risos e voz pastosa pela bebida – todos estavam bêbados –, eles desligavam o lampião. Depois escutava gemidos, suspiros e vozes sufocadas. Eu não entendia bem o que tava acontecendo, mas tinha muito medo. Depois caía um silêncio que era cortado pelos roncos deles. 

 E no meio da noite sentia uma mão me tocar e acariciar minhas pernas, pois Júlio, amante da minha mãe, levantava e vinha pra nossa cama. Ele tampava minha boca para não gritar e sussurrava 

- Brinca comigo, menina bonita. Brinca com meu brinquedinho.

 Ele me lambuzava toda e eu morria de nojo. Depois ele pegava um pano qualquer, me limpava e corria para o quarto do lado da minha mãe. Tinha vontade de vomitar. Não entendia o que era aquilo, mas sabia que era muito nojento. Além dele, também era abusada pelos irmãos da Tininha, que eram homens barbados e ficava com minha mãe, assim como o pai deles. Toda noite minha mãe os levava pra casa e nas madrugadas eles aproveitavam de mim, me obrigavam a ficar quieta e não contar a ninguém. Já não suportava aquele pesadelo de todos os dias. 

 A carga da Sueli não era fácil. Não podia contar pra Sueli porque ela também não podia ajudar, já fazia muito por nós. Ela cuidava de umas crianças e limpava casas no final de semana para ganhar alguns trocados e comprar comida pra nós. Certo dia, enquanto a Sueli estava na escola, chegou uma senhora, dona Lurdes, que morava em outro bairro. Ela veio pedir a minha irmã Mirian pra minha mãe. A situação em que vivíamos, de uma mãe que praticamente virou alcoólatra e abandonou os filhos, os boatos chegaram longe. As pessoas estavam vindo atrás pra buscar a criança que elas escolheriam e minha mãe, como não se importava, entregava como se fossemos animais. Deu a Mirian a essa senhora. Quando a Sueli chegou, a primeira coisa que fez foi saber como estávamos. Ela me viu triste e chorando, então perguntou o que tinha acontecido. Eu, entre soluços, contei pra ela. Inconformada, questionou minha mãe, mas ela parecia indiferente com a nossa dor e dizia que iria dar todas nós. Apesar da nossa luta, éramos unidos e não queríamos perder mais um irmão. 

 O tempo passando e a Sueli ali cuidando de tudo. Os vizinhos falavam muito bem do meu pai. Diziam “se Seu Joaquim fosse vivo, ele ira cuidar muito bem das crianças. Agora, coitada da Sueli, fica com toda essa responsabilidade. Ele não iria deixar isso acontecer, deixar os filhos dele irem embora assim por pessoas desconhecidas. A sorte desse outros que tem a Sueli que apesar de nova tem uma maturidade de adulto”. 

 Lembro-me de um dia especial como se fosse hoje. A Sueli chegou da escola, fez comida, arrumou a casa, puxou água do poço, encheu os baldes, esquentou água e deu banho em nós. Nesse dia minha mãe tava muito bêbada e dormia. Foi quando escutamos o barulho da camionete do meu tio. Corremos pra encontrar com ele. Mas naquele dia ele parecia estar com muita pressa. Como sempre, ficávamos encantados com a presença dele, afinal aquele era nosso tio. Às vezes ele nos levava pra casa dele. Achávamos que ele era rico, pois tinha geladeira, chuveiro elétrico e comíamos na mesa. A cama era limpa, tudo estava organizado. As filhas dele estudavam em colégio pago e cada vez que ele vinha nos visitar ficávamos muito felizes. Mas esse dia infelizmente não era pra ser feliz. Ele chegou apressado e falou:

- Sueli, conversei com minha mulher e resolvemos levar você embora pra morar conosco.

 Quando ele falou aquilo, senti um nó na garganta, uma vontade de chorar. Olhei para o Paulo e vi o desespero no olhar dele. Ele chegou perto de mim e pegou na minha mão. A Sueli, com lágrimas nos olhos, disse: 

- Tio, não posso abandonar meus irmãos.

 Ele, com certa ironia e com voz bem decidida, disse:

- Quem tem que cuidar dos seus irmãos é sua mãe. Você vem comigo! - Vendo a indecisão dela, ele baixou um pouco a guarda – É só por uns dias, depois te trago. Vamos pega suas coisas. 

- Tenho que pedir pra minha mãe – ela disse na esperança da minha mãe não deixar, pois ela sabia que só tinha a Sueli pra cuidar de nós. Enchi-me de esperança. Se a minha mãe não deixasse, ela não iria. Não conseguia imaginar ficar sem minha irmã, ela era tudo o que eu e o Paulo tínhamos. 

 Meu tio chacoalhou minha mãe e falou:

- Nana, tô levando a Sueli. 

- Leva. Leva quem você quiser – ela, com a voz pastosa e com hálito de bebida, falou.

- Vou levar só a Sueli, o resto você cuida.

- Eu vou, mas volto. Cuida um do outro, por favor! – A Sueli nos abraçou e falou tentando não chorar pra não nos deixar mais tristes que estávamos, mas sua expressão e seus olhos vermelhos não escondiam sua dor por ter que nos deixar com aquela mulher que dizia ser nossa mãe. 

 Eu não conseguia dizer uma palavra, estava tomada pelo desespero. O Paulo apertava minha mão. Ela pegou as poucas coisas dela, seu material escolar e, chorando escondido, foi embora. Assim que eles saíram, caí na realidade. Definitivamente estávamos sozinhos. Pensei “e agora? O que vou fazer? Vamos morrer de fome”. Desabei em um choro. O Paulo, na sua inocência de criança, falou 

- Não chora não, irmã! Depois ela volta. 

 Ficamos abraçados durante muito tempo. Eu sabia que não veria minha irmã tão cedo. Meu tio não a levou para ajudá-la, mas pra colocar ela de empregada na casa dele, pois sabia o quanto ela caprichosa e responsável. Ele era igual ou pior que nossa mãe, não pensou em nós ou se iríamos passar fome ou frio, porque ele sabia que a Sueli era nossa base e ele nos tirou sem remorso. Agora eu teria que ter forças pra cuidar do Paulo, pois agora era eu e ele. Com a carinha de tristeza, ele disse:

- Irmã, eu estou com fome! 

 Eu não tinha nada pra dar para ele, pois normalmente a Sueli iria mais tarde arrumar algo pra nós como de costume que ela fazia. Olhei o que tinha pra ver o que dava pra fazer pra enganar a fome. Só tinha açúcar e farinha. Preparei com água e dei pra ele. Eu não conseguia comer, pois sentia muita dor no peito de tanto chorar por ter visto minha querida irmã partir. Quando escureceu, falei para deitarmos ao lado da nossa mãe, assim talvez ela não saísse. Mas é claro que, pra ela não sair, só se ela não acordar. Deitamos do seu lado, dava pra sentir o cheiro forte da bebida e do suor dela. O Paulo adormeceu rápido e eu fiquei ali quietinha, mal respirava, com medo dela acordar e sair. Infelizmente ela acordou, esquentou água, tomou banho e se arrumou. Eu disse 

- Mãe, a Sueli foi embora. 

- E eu com isso? 

 Neste momento o Paulo acordou e falou: 

- Mãe, tô com fome. 

- Vai à Rua do João Gomes, mata um homem e come – ela falou com ar de deboche.

Meu irmão, com os olhinhos tristes, olhava pra ela com olhar de piedade, mesmo assim ela não se comovia. Eu abraçava meu irmão.

- Nós vamos arrumar alguma coisa pra nós comer, irmão. Fica triste não. 

 Enquanto ela se arrumava e zoava com o fato da gente estar com fome, ela fechou a janela, trancou a porta da cozinha e foi para seu passeio encontrar com seus homens, sem se importar com a gente. Já estava escuro e eu não sabia onde arrumar comida pra nós. Só tinha farinha com água, mas ele não estava se sustentando com aquilo. Eu também estava com muita fome, mas só pensava em cuidar dele. Já era escuro e eu não sabia como acender o lampião. Então eu disse pro Paulo: 

- Dorme não irmão! Não quero ficar sozinha. 

- A Sueli vai vir amanhã? 

 Eu, com coração doendo, disse que sim, não queria tirar a esperança dele que a gente iria ter nossa irmã de volta e logo ele adormeceu, mesmo com fome. Apesar do medo de ficar acordada sozinha, fiquei feliz por ele dormir, porque me doía vendo-o pedir comida e eu não tinha onde pegar, ainda mais naquela hora da noite. Eu estava com tanto medo que mal conseguia me mexer.

 De madrugada escutava os passos da minha mãe e da turma dela. Tudo era sempre igual. As mesmas risadas e vozes pastosas. Depois vinha o Júlio com aquelas mãos nojentas me lambuzar toda. Certa madrugada eu estava tão triste que chorava baixinho. Ele se aproximou, escutou meu choro e perguntou: 

- Por que tá chorando, menina bonita?

- Meu tio Pedro levou a Sueli embora. Tô com saudades dela. Agora não tem ninguém pra cuidar de nós, minha mãe não ama a gente, não se importa. E eu não quero deixar meu irmão passar fome – eu, entre soluços, falei.

 Parece que uma coisa tocou o coração dele. Ele falou: 

- Não chora não. Sua mãe tem que cuidar de vocês. O que você quer que eu faça?

 Eu pedi pra contar uma história. Ele deitou do meu lado, contou duas histórias, depois me deu um beijo no rosto e foi dormir na outra cama. Nesta noite ele não me tocou, parecia estar arrependido de mexer comigo todas as noites. 

 Os dias iam passando, eu pedia comida e às vezes pegava algumas frutas no mato para matar a nossa fome. Ficávamos sempre na esperança da volta da minha irmã. Durante o dia a gente até brincava, mas à noite era terrível. O Júlio nunca mais tocou em mim, até brigou com ela por não cuidar da gente. Depois de muitas brigas, ele terminou com minha mãe. Ela chorava o dia inteiro, bebia até cair e xingava a mulher dele. 

Quando a fome batia, eu fazia água doce pra enganar o estômago. Os vizinhos às vezes davam comida. Tinha dias que a fome era tanta que eu e o Paulo saíamos procurando pelo chão algo pra comer. A gente achava bagaço de laranja, casquinha de sorvete. Era muita fome. Andávamos sempre juntos. Ele, mais pequeno, segurava minha mão e perguntava onde estava a Sueli. Eu dizia que ela logo viria nos buscar. Todos os dias achava que ela iria voltar. 

 A Tininha, filha do seu Jorge, era amiga íntima da minha mãe. Numa tarde de garoa, elas estavam na cozinha bebendo e chorando. Eu e o Paulo estávamos no quarto. De repente, a Tininha prestou atenção em mim e perguntou:

- Essa menina tem pensão também? - Minha mãe respondeu que sim, no que a Tininha rebateu - Então vou tomar conta dela e você me paga. 

- Tudo bem, ela não me serve pra nada mesmo. 

 O Paulo olhou pra mim com olhos cheio de lágrimas. Eu não queria ficar longe do meu irmão. Eu disse que não queria ir, não queria deixar meu irmão sozinho.

- Você não tem querer menina, você vai com a Tininha e pronto! – Respondeu minha mãe. 

 Tininha já saiu me puxando pelo braço e me arrastando. Eu olhava para o Paulo e chorava, deixando meu irmãozinho pra trás. 

 Chegamos ao Jardim São Pedro, em Guainazes. A Tininha morava em uma vila com várias casinhas, todas muito humildes. Entramos em uma casinha de dois cômodos, quarto e cozinha. Tudo muito limpo. Ela pôs uma panela pra esquentar água, que jogou numa bacia pra eu tomar banho. Depois me deu uma blusa dela que servia de vestido pra mim e foi na vizinha pedir umas calcinhas da filha dela e me deu. Tentei pentear meus cabelos, mas estava tão embaraçado que não deu. Então sentei em uma cadeira e ela começou a preparar a comida. O cheiro era muito bom. De repente, entrou um homem magro, branco, com uma revista de fotonovela na mão e entregou à Tininha. Ele reparou em mim e perguntou, de maneira cordial, quem eu era. Ela respondeu, de forma seca:

- Peguei na Ana pra cuidar.

 Ele não falou nada, mas o olhar dele me tranquilizava. Pegou um balde de água, pegou suas roupas e falou que ia tomar banho. Ele se chama Sérgio.

 Então ela deu um pouco de comida pra mim. Estava uma delícia. Comecei a comer e lembrei-me do Paulo. A comida não descia, pensando como estava meu irmão. Foi com esforço que consegui comer um pouco. Daí escutei barulho de crianças brincando. Quando vi, estava no meio delas brincando também. Entrei tarde e a Tininha ainda lia a revista. Nem percebeu que eu saí e brinquei. Sentei numa cadeira, ela levantou e, de forma rude, me jogou um cobertor. Mandou-me deitar no sofazinho que tinha na sala. Deitei e pensei em todos meus irmãos, mas eram o Paulo e a Sueli não saíam da minha cabeça. Acordei com o Sérgio chamando. Ele já estava trocado e pediu pra acompanhá-lo. Levantei temerosa e fui atrás dele. Então falou: 

- Tá vendo esse banheiro? Esse primeiro é o nosso. Quando você for usar, vai nesse. 

 Abri a porta e o cheiro era insuportável. Tinha uns pregos cheios de folha de revista.

 Minha vida, durante um tempo, caiu na rotina. Levantava, escovava os dentes – o Sérgio comprou escova e me ensinou escovar, – usava o banheiro e esperava a Tininha levantar, sempre muito tarde. Só depois que lavava roupa e limpava casa que ia fazer a comida. Eu a ajudava, mas ela estava sempre de mau humor. Só ficava feliz no dia de receber a pensão da minha mãe. Então ela disse que me levaria toda vez que fosse receber o dinheiro da minha mãe, assim eu viria meu irmão Paulo. Contava os dias pra chegar logo o momento vê-lo, pois a saudade era grande. Chegou o dia. Ela saiu depressa pra buscar o seu dinheiro. Eu de longe avistei meu irmão. Foi uma alegria tremenda que o abracei muito forte. Perguntei se ele estava comendo. Parece que pelo menos minha mãe estava dando comida pra ele. Sai de lá mais aliviada, porque pelo menos ele não estava passando fome e poderia vê-lo uma vez por mês. Mas eu chorava muito de saudade dos meus irmãos, me dava crise que não conseguia parar de chorar. Dava até falta de ar. A Tininha aos berros me mandava calar a boca, mas eu não conseguia. Ela com uma cinta me bateu muito. Eu olhava para o Sérgio. Ele tinha um olhar aflito, mas não fez nada, parecia ter medo dela. Fiquei toda marcada e sabia que não podia chorar mais. Depois disso eu sofria calada de saudades dos meus irmãos.

 Numa madrugada muito fria acordei com muito barulho. Quando abri os olhos, vi o Sérgio com nariz cheio de sangue que escorria pela camisa. A Tininha jogava tudo em cima dele. Eram panelas, pratos, copos, etc. Depois foi pra cima dele e o derrubou. Enquanto ela espancava o Sérgio, eu tremia de medo e frio. Ele não conseguia se defender. De repente, ela olhou pra mim e gritou:

- Vamos, calça o chinelo! 

 Fui pegando minhas poucas coisas e ela colocou as coisas dela numa maleta. Abriu uma lata de sardinha, encheu de arroz e foi saindo. Antes de sair atrás dela, pude ver o Sérgio se arrastando com dificuldade até a cama. Fique com muita dó dele, mas não podia fazer nada.

  A Tininha andava tão depressa que eu tinha dificuldade de acompanhá-la. Eu estava ofegante, com muito frio e medo. Pensei “o Sérgio parecia tão bonzinho. Por que será que ela fez isso com ele? Coitado!”. Depois de muito andar, entramos em um bar. Lá estava menos frio e a Tininha pediu um rabo de galo. Na minha inocência imaginava umas penas do rabo do galo, mas era uma bebida marrom que ela bebeu de uma vez. De repente, aproximou-se dela um rapaz que ela conhecia bem e que pagou um segundo copo dessa bebida. E ainda disse pra eu pegar um doce. Depois de vários doces e vários rabos de galo, eles saíram dali e eu fui atrás. Ele segurava a cintura dela. Enquanto eles iam à frente conversando, eu ficava mais atrás. Brincava com as luzes dos postes, ficava vendo a garoa entre as luzes. O céu estava nublado, bom pra dormir. Eu abria a boca de sono.

 Então chegamos perto de um terreno cheio de arbusto. Eles foram entrando. Ela olhou pra trás e gritou comigo: 

- Anda, sua biscate!

- Ela é só uma criança! Olha como você a trata. 

- Eu falo como quiser! Eu é que cuido dela e você cala a sua boca! 

 E continuou a me xingar de todos os nomes horríveis que nem sabia qual significado. De repente ela pulou na minha frente e começou me chacoalhar. Então ela falou:

- Você acha que é melhor que eu só porque tem essa cor de bosta? Você tá mais por fora que umbigo de vedete. E esse cabelo, você acha o quê?

 Eu estava com muito medo. Não entendia porque ela falava isso. Ela ia me bater. Foi quando o homem deu um grito e foi puxando ela para mato. Ela falou pra mim: 

- Espera aqui e vira de costas. 

 Eu podia sentir o mato gelado nas minhas pernas. Nesse momento eu tinha medo de tudo, da Tininha, dos bichos do mato, de assombração. Sentia-me perdida e sozinha sem algum amparo. Que falta fazia da minha irmã dos seus carinhos e da paciência que tinha comigo. Depois de algum tempo, ela saiu do mato arrumando a roupa e pondo um dinheiro no sutiã. Voltamos para bar e o dono falou:

- Peguem suas coisas que vou fechar. Já está amanhecendo. 

 Ela pegou as coisas me deu pra eu carregar, mas era muito grande. Eu já estava com uma sacola pesada. Vendo que não conseguiria levar as duas, ela puxou da minha mão e eu caí no chão. Ela me deu um chute e gritou:

- Levanta, monte de bosta!

 Então veio outro homem com ela. Outro que supostamente iria levar ela para o mato e dar mais dinheiro. Eles andavam na frente,eu mais atrás. O homem toda hora olhava pra trás e me encarava de maneira estranha. Ouvi quando ele perguntou pra ela:

- Onde você arrumou essa menina bonita? Essa moreninha é muito bonita. 

 Ela, de forma áspera, respondeu

- Essa biscate é minha filha. 

- Nem sabia que você tinha filha – falou ele surpreso. Parecia conhecê-la bem.

 Quando chegamos em frente do mesmo mato, escutei quando ele falou: 

 - Te pago o dobro se você me deixar brincar com ela.

 A mulher virou um cão. 

- Tá louco! Você veio aqui pra ficar comigo, não com ela – a Tininha avançou nele, que só se defendeu. – Dá meu dinheiro! 

 O homem rapidamente jogou o dinheiro no chão e de longe respondeu: 

- É ela que eu quero, não você, sua coisa feia! Com você o meu pinto nem sobe.

 Peguei rapidamente o dinheiro do chão e entreguei pra Tininha, que gritou: 

- Procura se não tem mais, monte de bosta! 

 Eu tremia de medo de tudo, mas no fundo agradeci a Deus por ela não ter deixado aquele homem me tocar. Fez isso não pra me proteger, foi por orgulho ferido. Ele queria uma menina em vez dela. Não tínhamos lugar pra dormir, cada dia era em um lugar diferente. Às vezes a gente tomava banho, outras não. Pelo menos ela dava um jeito de lavar nossas partes íntimas, dizendo que mulher não pode ficar fedendo.

 Depois de algum tempo na rua, ela resolveu voltar pra casa. Foi uma surpresa quando a dona da casa informou que o Sérgio tinha entregado a casa e que ela já havia alugado para outra pessoa, informando que não havia nada nosso com ela. Tininha esbravejou e falou:

- Tenho certeza que ele voltou pra mamãezinha dele na estação Patriarca. 

 Pegamos o trem e fomos até a casa dele. A casa de Sérgio era muito bonita. Tininha gritou: 

- Sérgio! Sérgio! 

 A mãe dele saiu e rebateu: 

- O que você quer aqui, sua louca! Já não chega o que você fez com meu filho? você quase o matou. 

 As duas mulheres começaram a bater boca. Então o Sérgio surgiu, pôs a mãe pra dentro, fechou o portão depressa e falou: 

- Some da minha vida. Não quero te ver nunca mais. Tenho dó desta menina inocente que anda com você! 

- Você a quer também? 

 Deu-me uma tapa na cara do nada que me fez cair no chão. Ele entrou, fechou a porta e apagou todas as luzes. Tininha saiu chorando. Eu estava com medo da fúria dela. Não tínhamos moradia fixa. Ficávamos pra lá e pra cá. E ainda ela com ciúmes de mim com os homens dela.

 Uma vez por mês via meu irmão Paulo. Acabei vendo a Mirian também. Aproveitávamos o máximo juntos, nem que fosse por poucas horas para matar a saudade.

 O tempo passou e ela foi visitar Jorge, seu pai, e sua mãe Rosa. Seu Jorge não a aceitava ela em sua casa. Então fomos passar uns dias na casa da tia dela, que mora na Vila Matilde. Ela deixou a gente ficar por alguns dias. Era uma casa grande. Tinha um quintal cheio de galinhas e patos. Eu brincava o dia inteiro no quintal correndo atrás das galinhas ou brincava com o cachorrinho. A tia Nenê tinha um quartinho onde ela recebia os guias dela. Eu nem sabia o que era isso, mas os ouvia falarem que era Espiritismo. Certo dia eu a vi, tia Nenê, a Tininha e outras pessoas entrarem neste quartinho e fui brincar no quintal. Entre uma brincadeira e outra resolvi mexer com uma galinha brava. Fui pegar o pintinho dela e, do nada, essa galinha abriu as asas e começou a correr atrás de mim. Atravessei o quintal correndo. Era como se um monstro estivesse me perseguindo. Entrei na casa e fui direto para quartinho. Quando vi aquelas pessoas em roda, todas de mãos dadas, e um pó branco em volta delas. Entrei na roda com medo da galinha e segurei na mão de alguém. Uma dessas pessoas acendeu um fogo e começou a correr em volta de nós. Apavorei-me e corri para colo da Nenê, que estava sentada em uma cadeira grande. Ela começou a acariciar o meu rosto. Olhei pras mãos dela. Estava toda torta e rugia com uma voz horrível. Percebi que ela não estava normal. O medo tomou conta de mim. Saí correndo e fui sentar na sala. 

 Uns dias depois fomos embora e voltamos pra mesma vida, comendo resto dos outros e dormindo na rua. Hoje eu penso que se minha mãe amasse os filhos, não precisaríamos passar por tanto sofrimento. Tininha voltou para casa do seu Jorge e dona Rosa. E pediu para ficar lá por algum tempo comigo, pois já estávamos cansadas de ficar na rua passando fome e frio. Eles piedosamente aceitaram a gente ficar. Seu Jorge estava muito bonzinho comigo. Deu-me comida, fez um balanço no quintal e tinha até uma caminha pra dormir. De manhã eu ia com ele pra porta da escola ajudar a vender doces. Eu comia muito doce. Ele gostava de me agradar sempre, mas o seu interesse era conquistar minha confiança para ficar abusando de mim à noite. Ele me tocava e pedia para tocar nas partes íntimas dele. Como não tinha opção, aceitava seus abusos.

 À tarde seu Jorge me deixava ir à casa da Laura, vizinha dele, pra assistir televisão. Ela tinha três filhos, todos pequenos. À noite brincávamos na rua. Laura sempre contava a história dela, que sofreu muito, mas casou bem. Ela dizia “não pode deixar ninguém mexer na sua piriquita”. Não falei nada, pois tinha vergonha. Apesar de esses homens abusarem de mim, nenhum tinha tentado penetração do jeito que ela explicou. Eu era virgem e ia guardar minha virgindade para meu marido. Sonhava com um grande amor igual das telenovelas e poder casar e ser feliz. E se tivesse filhos, queria ser uma grande mãe para eles. Não como minha mãe foi pra gente. E a Laura me explicou tudo, como funcionava. Fiquei feliz porque, apesar de novinha com oito anos de idade, eu era inteligente. Sempre pensava em conseguir sair daquela vida e arrumar um lugar e buscar meus irmãos pra morar comigo. Tininha saiu com sua mãe e disse que viria só no outro dia de manhã. Logo seu Jorge viu uma oportunidade de deitar comigo naquela noite e foi para minha cama. Mas foi pego de surpresa, parece que aconteceu uma tragédia naquela noite.

 De madrugada, escutamos um barulho de carro e de gente. Seu Jorge estava deitado comigo ao meu lado. Levantou correndo, bagunçou a cama dele e falou: 

- Finge que está dormindo. 

 Virei de lado e fiz o que ele pediu. Ouvimos fortes batidas na porta. Ele abriu surpreso a porta, fingindo estar sonolento, pois não esperava que elas voltassem naquela noite. Então a Tininha falou: 

- Pai, vou trocar a cama. Minha mãe deu derrame. 

 Eles arrumaram a cama rapidamente e a puseram lá. Tininha, Maria, a irmã dela, e seu Jorge ajudavam a cuidar dela e de mim também quando precisava. Quando eu ficava doente, com a garganta inflamada, a Tininha me levava na farmácia e comprava remédio. Nessas horas, ela parecia mais humana, mesmo que sempre seu interesse era medo de adoecer e dar trabalho. Sempre dizia que tinha planos para mim, que não podia ficar doente. Mal sabia eu que seus planos eram me fazer prostituir para ganhar dinheiro pra ela. 

 Certo dia, Sara, cunhada da Tininha, perguntou se ela não iria me colocar na escola. Eu tinha nove anos, já era pra eu estar no segundo ano. Sara tinha vários filhos, como a Célia que tinha minha idade e já ia pro terceiro ano primário. Sara pediu minha certidão de nascimento. Tininha, não gostando muito, deu e ela fez minha matrícula. 

 Ah, eu amava a escola! Minha professora era linda. Dona Carmen era muito boazinha. Eu tinha muita dificuldade de aprender. Repeti o ano, mas no meio do outro ano minha cabeça abriu. Eu já sabia ler e escrever, além de fazer contas. Então dona Carmen me chamou e falou 

- Você vai ter que ir pra outra sala mais adiantada. 

 Quando ela disse isso, gelei. Eu disse que queria ficar com ela. Mas, muito carinhosa, disse: 

- Não tem jeito, anjo. 

 Chorei muito, mas tive que ir. A outra professora, dona Madalena, não tinha nada a ver com a dona Carmen. Era enérgica, mas ensinava muito. Quando ela ficou doente, chegou outra mais brava que batia em nós com a régua. Não podia pedir pra ir ao banheiro ou beber água. O silêncio era total, todos tinham medo dela. De tanta reclamação, ela foi despedida. As mães, revoltadas, a xingavam. Queriam linchá-la. Ela entrou no carro, mas havia esquecido a sua blusa. Chamou-me e pediu que eu buscasse a blusa pra ela. Fui correndo. No meio do caminho peguei uma flor da escola e entreguei pra ela, que desabou em choro. Falei que gostava dela. Então ela se emocionou. Depois de um tempo, o conselho a aceitou de volta, viu que não precisava expulsá-la.

 Dona Madalena voltou. Apesar de ela ser enérgica, eu gostava dela e adorava a escola, um prédio cinzento com várias salas de aula. As segundas-feiras eram ótimas porque era dia de educação física. Seu Jorge comprava todo material escolar pra mim, mas, quando passei para segundo ano, a Tininha me tirou da escola. Fiquei muito triste, pois pela primeira vez tinha uma vida, onde poderia aprender a ser alguém de verdade. Eu não entendia porque ela me tirou da escola. Pelo menos ela não precisava ficar olhando na minha cara todos os dias, já que ela não gostava de mim. 

 A Tininha amigou com tal de Zé Luis. Eu morria de medo dele. O homem era muito feio. Fomos morar em outro lugar, em uma vila, mas era próximo do seu Jorge. 

 Maria era irmã da Tininha, era um amor de pessoa. Ajudava cuidar da dona Rosa. Desde que ela sofreu derrame, ninguém dava bola pra ela. Maria era única que se importava com ela. Ela tinha três filhos pequenos e estava grávida de novo. Quando a Tininha e o Zé Luís brigavam, o que era comum, ela se encontrava com outros homens, inclusive Célio, marido da Maria, sua própria irmã. Ela era igual a minha mãe, não respeitava os maridos de ninguém. Se pagasse, ela não perdoaria nem os cunhados.

 Logo após o bebê da Maria nascer, uma linda menina, fui vê-la e segurei-a no colo. Devia ter uns 15 dias somente. Na maior inocência, eu falei

- Seu papai tem duas namoradas, sua mãe e a Tininha. Então você vai ter duas mães.

 Maria ficou pálida e pediu-me pra repetir. Eu respondi: 

- Ela vai ter duas mães, você e a Tininha. 

 Ela pediu detalhes e fui falando. Sem saber a gravidade da situação, contei tudo o que a Tininha fazia com o Célio, seu marido. Estávamos na casa do seu Jorge. Maria, revoltada, foi tirar satisfação com a Tininha, que, claro, negou tudo. A Maria pegou as crianças, saiu chorando e falou:

-  Nunca mais quero te ver na minha vida. 

 Nunca vou esquecer nos olhos de ódio da Tininha quando ela me olhou. Ela me bateu tanto que, se não fosse seu Jorge tirar ela de cima de mim, ela tinha me matado. Deixou-me cheia de hematomas por todo corpo. Então seu Jorge falou:

-  Você tá errada. Onde já se viu andar com o cunhado?

 Era um sujo falando do mal lavado, pois sempre quando eu estava dormindo, ele deitava ao meu lado para mexer comigo. Eu não podia falar nada, pois independentemente dele fazer isso, era o único que me ajudava, me alimentava, me dava roupa, calçados e ainda me deu um cachorrinho malhadinho lindo, que pus o nome de Tupi. Ele me adorava. Eu tinha que dar restos de comida e água escondida da Tininha. Ela não sabia que o Tupi era meu, achava que era do pai, porque ela odiava cachorros. 

 Depois que eu contei pra Maria sobre a Tininha e seu marido, ela enlouqueceu. Passando alguns meses, a bebê morreu. Ela ficou mais perturbada ainda. Batia muitos nos filhos e cismou que um rapaz novo e bonito era noivo dela, não falava coisa com coisa. Por fim, acabou se jogando na frente de um trem. Tiveram que pegar os pedaços dela para o velório. Eu fiquei muito mal porque ela não merecia passar por aquilo. Diferentemente da Tininha, era uma boa mulher. Com isso, as crianças foram morar com os avós paternos deles. Célio ficou muito mal. Sentia-se culpado por ela ter tirado a própria vida e caiu na bebida e na tristeza profunda. 

 Enquanto minha mãe pagava pensão, uma vez por mês via o Paulo e a Mirian. Eu estava com dez para onze anos quando a Tininha falou que era uma mixaria o que minha mãe dava a ela. Então ela disse 

- Você tem que sair e arrumar dinheiro. 

- Vou trabalhar – respondi.

- Vai fazer o que não sabe fazer nada, sua inútil! E outra coisa, preciso de dinheiro todos os dias aqui na minha mão. 

 Fui conversar com a Laura, que falou: 

- A Tininha quer que você venda seu corpo. Mas não faz isso. Guarda sua virgindade pra um dia você casar e ser feliz. Homem só casa com mulher virgem. 

 Falei pra Tininha que não queria vender meu corpo. Ela, com ironia, falou que seria mais fácil. E continuou:

- Mas pede, então. Vou te levar pra um lugar pra você pedir. Você fala assim: ‘moço, vim procurar serviço e não achei. Perdi o dinheiro de voltar pra casa. O senhor pode me dar o dinheiro do trem?’. 

 Eu era muito tímida, como eu iria fazer aquilo? Ela falou: 

- Vou te levar umas três vezes pra você aprender o caminho. Depois você se vira. Se não trouxer dinheiro, vai apanhar.

 Nessas alturas, a dona Rosa já havia falecido. Pedi para seu Jorge cuidar bem do meu cachorrinho Tupi, porque eu iria ficar o dia inteiro fora tentando trazer dinheiro para Tininha. 

 Tininha foi me ensinando o caminho até chegar ao mercadão. Era um lugar enorme, cinzento. Tinha de tudo ali. Havia homens apressados descarregando caminhão de verduras. O local era muito grande. Vi muitas crianças sujas, de pé no chão, pedindo e ganhando dinheiro. Eu não estava suja, pois a Tininha mandou tomar banho e escovar os dentes. Ela penteou meu cabelo, fez uma trança e me deu um chinelinho. E falou: 

- Vai arrumando dinheiro. À tarde venho te buscar.

 Ela saiu e eu fiquei desorientada. Tentava pedir dinheiro e me atrapalhava toda, as pessoas me deixavam falando sozinha. 

 O tempo foi passando e fiquei apavorada, não via a Tininha. Saí dali e comecei andar sem rumo, chorando. Não sabia onde eu estava. Já era tarde, umas 9 da noite, e procurava a Tininha, quando, cansada, vi uma moça que ia entrando numa bela casa. Desesperada, falei:

- Moça, procura a Tininha comigo? Eu me perdi dela.

- O que foi que aconteceu? – Falou a moça, que parecia ser muito bondosa. 

- Vim com minha tia Tininha procurar serviço, mas me perdi. Não sei onde ela está – falei chorando. 

- Calma, vamos achar. Mas entra pra você comer alguma coisa e conhecer minha mãe. 

- Não, moça! Só quero a Tininha. Ela que cuida de mim.

 Ela insistiu que eu entrasse, então saí chorando. Nunca senti tanto desespero. Ela foi atrás de mim e falou que ia ajudar a procurar a Tininha. Pegou na minha mão e andamos muito. Apontei pra um lugar e falei: 

- Ela deve estar ali. 

- Não podemos ir lá. É o Parque Dom Pedro, um local muito perigoso. Vamos pra minha casa e amanhã a gente procura. Eu, chorosa, disse não. 

Entramos num barzinho e ela conversou com um rapaz bonito. Ouvi-o falar a palavra polícia e me desesperei. Pensei “a polícia vai me prender e me bater”. Eu morria de medo deles. Vendo meu desespero, o rapaz tentou me acalmar e falou:

- Vamos dar uma volta de carro. Você gosta de andar de carro?

 Era um carro bonito. Fiquei um pouco mais calma até chegarmos em frente a um lugar todo amarelo. O portão grande foi aberto e meu coração começou a bater forte. Pensei que eles iam me prender. Entramos em uma grande sala onde tinha um menino. Ele tinha a cara de zombador e olhava pra mim com jeito estranho. Então o menino perguntou: 

- Você tem dinheiro?

 Foi que lembrei que tinha ganhado um dinheiro que estava suado na minha mão. Mostrei e ele pediu para entregar pra ele. Eu dei. De repente, entrou uma senhora que me revistou. Falou pra outra mulher 

- Essa aí não é de rua não. Tá de roupa limpa. Só se perdeu da tia. 

 Nessa hora aquela moça com o rapaz entrou e se abaixou perto de mim. Eu estava sentada em banco de cimento. Ela falou: 

- Vou ter que ir embora.

 Levantei depressa, peguei na mão dela e falei:

- Me leva com você? 

- Agora não dá mais. Pode ser que nunca mais veja você. Mas nunca se esqueça de mim. 

 Agarrei-a e não queria soltar, mas ela teve que ir. Ambas começamos a chorar. 

 Quatro dias depois a Tininha me achou e contou a mesma história que eu contei pra aquelas pessoas. Ela era meu anjo. O juiz a mandou assinar um papel provando que ficaria cuidando de mim. Assim que saímos de lá, ela começou me xingar. Gritou: 

- Você é retardada mesmo. Vou te ensinar o lugar de novo. Se você se perder, não venho atrás de você.

 No outro dia estava ali no mercadão. Eu ficava envergonhada, mas conseguia alguma coisa. Cantadas eu recebia direto. Um dia fui sozinha, pois aprendi o caminho, mas não conseguia chegar nas pessoas e pedir. Foi quando um menino se aproximou de mim e perguntou meu nome. Disse que me chamava Marta. Ele pegou na minha mão e falou:

- Vem cá conhecer minha mãe. 

 A mãe dele era uma mulher robusta, morena, que amamentava um nenê e tinha mais duas crianças menores. Aí ele falou: 

- Mãe, ela tá sozinha. Posso ajudar ela? 

- Pode sim. Ajuda ela – disse a mulher simpática. 

 Então ele e a irmã pediam por uma hora e ele ganhava pra ele na outra hora. Ele me deu um saquinho de leite e falou:

- Põe tudo aí na hora do almoço. Vamos buscar comida. 

 Quando perguntei onde era, ele pediu pra segui-lo. Então entrou na cozinha de um grande restaurante. O pessoal parecia conhecer muito bem ele e a irmã. Perguntaram: 

- Quem é essa outra menina? 

- Minha amiga. 

 Eles pegaram as vasilhas e encheram de comida. Pegamos a comida e fomos comer junto com a mãe dele. Tudo era muito gostoso. No intervalo do almoço, a mãe dele lavou o nenê na pia do banheiro no mercadão e voltou pro mesmo lugar. Fomos a um lugar que dava esfirra amanhecida. Comemos mais. Depois ele me levou nas barracas de frutas. Ganhamos muitas frutas. Ele dizia que morava oposto de mim. A Tininha estava amando quando eu chegava com lagosta, frutas e dinheiro. Mal sabia ela que eu estava tendo ajuda. O Marcelo me contou que eles viviam fugindo do pai que era violento e batia muito neles e na mãe deles. Era muito bom estar com eles. Ele tentava me ensinar a pedir esmola, mas eu não conseguia, vivia dependendo dele pra me ajudar. Ele e sua mãe eram muito bondosos comigo. Ali acabei conhecendo outras crianças. Ficávamos brincando por horas de subir e descer a escada rolante. À noite, quando eu chegava a casa com dinheiro e coisas de comer, a Tininha nem me xingava. Até me deixava ir brincar com meu Tupizinho e ir assistir TV na casa da Laura. Lá também tinham fotonovelas que eu adorava ler. Muito me encantava com aquelas história lindas.

 Um dia cheguei ao mercadão e não encontrei meu amigo e sua mãe. Saí procurando pra todo lado, mas ninguém sabia deles. Fiquei desesperada. Não sabia como criar coragem pra pedir, eu era muito tímida. E como eu estava ficando mocinha, com um corpinho bonito, os homens se engraçavam comigo e faziam propostas indecentes. Nunca mais vi o garoto que me ajudava o dia inteiro até criar coragem pra pedir e conseguir alguma coisa não iria ser fácil.

 O mercado era muito grande. Não guardei na cabeça onde meu amigo conseguia as frutas e lagosta. O restaurante eu sabia onde era, mas não tinha coragem de ir lá pedir comida. As horas iam passando e eu sem arrumar nada. Comi algumas frutas que caíam no chão e conseguia pouco dinheiro. Eu demorava pra falar e eles não tinham paciência. Muitos nem notavam minha presença e alguns já pegavam o dinheiro pra ficar livre logo. Os dias passavam e eu arrumava pouco dinheiro. Com isso, a Tininha era um inferno na minha cabeça. Eu queria trabalhar, mas ela não queria. Ela gostava de me ver sofrer, sendo humilhada, principalmente porque estava ficando bonita. Todos diziam que eu iria transformar em uma mulher linda. 

 Um dia a Tininha falou que íamos nos mudar novamente como de costume. Se alguma coisa não agradasse no lugar, ela se mudava. Minha mãe tinha conseguido vender a casa e comprou uma casinha caindo aos pedaços em Poá, no mesmo lugar em que eu e a Tininha iríamos ficar. No dia da mudança, ela não queria levar o Tupi. Tive uma crise de choro. E quanto mais a Tininha me batia, mais eu chorava. Nem mais sentia a dor da surra que estava levando. Então seu Jorge falou pra me deixar levar o cachorro. Ela cedeu me xingando muito, dizendo que iria da sumiço nele.

 Mudamos pra um casebre que ficava escondido entre os matos, sem água, sem luz e a privada ficava bem longe, tinha que atravessar o quintal. Pela manhã dava pra escutar os passarinhos cantando. A Tininha amarrou o Tupi do lado de fora e eu pus água e um pouco de comida pra ele. Acima da nossa casa morava um casal de velhinhos. Eles eram muito bonzinhos. A senhora, Dona Geralda, gostava de mim. Eu a ajudava no serviço da casa e ela me dava um monte de fotonovelas que ela tinha. Eu pensava que se a casa dela tivesse TV seria perfeito, pois sentia saudades de assistir novelas como via na casa da Laura. 

 À noite eu soltava o Tupi e brincava com ele. Aquele cachorrinho era tudo que eu tinha. Eu arrumava panos velhos pra fazer cama pra ele, deixava de comer pra dar pra ele e quando chovia ou estava muito frio eu punha os panos dele debaixo da minha cama escondido. Ele dormia lá. Então a dona Geralda me deu uma casinha grande de cachorro. Assim ele ficava protegido do frio e da chuva. Todos os dias eu não via a hora de chegar a casa pra ficar com ele. Nos fins de semana ele corria a rolar na terra. Eu corria atrás dele, ele corria atrás de mim. Depois eu dava banho nele. Nunca tive nada minha vida. Ele era o meu melhor amigo que tinha e minha alegria naquela vida triste que vivia.

 A Tininha ainda bebia muito e me xingava muito, principalmente depois das brigas dela com Zé Luís, que eram constantes. Então minha alegria era meu Tupizinho. Mas uma noite cheguei a casa e não ouvi barulho dele, pois, quando ele percebia que eu estava chegando, já começava a latir e balançar o rabinho. Estava muito silencioso. Corri na casinha dele, mas ele não estava. Corri pra dentro e perguntei, já chorando, pra Tininha: 

- Cadê o Tupi? 

- Não sei de cachorro não – ela com grosseria falou. E depois gritou. - Cadê a merreca?

 Entreguei pra ela. Justo naquele dia tinha um pouco a mais e eu tinha trazido lagosta também. Aí ela, um pouco mais calma, falou 

- Esse cachorro escapou.

- Ele tava amarrado. 

- Ela deu sumiço com seu cachorro – falou o Zé Luís, meio grogue. 

- Não sei de cachorro não – repetiu ela. 

 Saí feita louca e fui à casa do casal, mas, por eles serem de idade, estava tudo fechado. Estavam dormindo. Comecei a assobiar e gritar por ele. Fui de rua em rua chorando. Eu estava desesperada. Perguntava pra um e pra outro, mas ninguém sabia o paradeiro do Tupi. Andei muito. Começou a chover e pensei “coitadinho, deve tá com fome, com sede, com frio e com saudade de mim”. Já era tarde da noite quando voltei pra casa. Estava toda molhada da chuva. Fui à casinha dele com esperança que ele tivesse voltado, mas nada. A Tininha e o Zé Luís dormiam tranquilamente. Chorei a noite inteira e levantei várias vezes pra ir à casinha dele. Dormi muito mal. Acordei queimando de febre. Comecei a me arrumar pra ir à cidade pedir esmola, mas estava muito mal. A Tininha percebeu, pôs a mão em mim e viu que eu estava com muita febre. Olhou pro Zé Luís e falou: 

- Temos que levar ela na farmácia. 

 A febre era tanta que mal conseguia andar. Eles meio que me arrastavam. O farmacêutico me examinou e disse:

- A garganta tá boa. Já que ela está com febre, vamos entrar com antibiótico – Ele, muito gentil, perguntou onde doía. Desabei em lágrimas e perguntei: 

- O senhor viu meu cachorro?

- Como é seu cachorro?

- Ele é pequeno, malhadinho e muito bonitinho. E se chama Tupi. O senhor o viu? – Falei cheia de esperança.

 Com muita dó de mim, falou que não tinha o visto e deu a ideia de arrumar outro cachorrinho. Chorando, falei: 

- Não, eu quero ele. Ele sumiu. 

 Até a Tininha naquele momento parecia esta com pena de mim. Falou:

-  Alguém deve tá tomando conta dele. Se ele fugiu, foi procurar lugar melhor.

 Mas eu sabia que meu cachorrinho jamais iria me abandonar. Fiquei vários dias doente e a Tininha cuidou de mim. Não via a hora de melhorar pra voltar pra rua. Quando melhorei, fui na casa do casal pra perguntar se eles tinham visto o Tupi. Ela falou que ouviu gritar muito e depois silêncio. Naquele tempo eu era muito inocente, não liguei uma coisa com outra. Hoje, depois de muitos anos, acredito que a Tininha matou meu cachorrinho por pura maldade. E mesmo sofrendo muito e sentindo muita falta dele, tive que ir pra cidade ganhar um dinheiro. Ainda tinha muita vergonha, mas não tinha opção. Eu não podia escolher outra vida se não tinha nenhum lugar pra uma menina de doze anos. Melhor com aquela megera do que ficar na rua correndo risco de ser estuprada por aqueles homens que já me desejavam como mulher. Parecíamos ciganos, a gente não parava em nenhum lugar. Ela já tinha decidido voltar para o lugar onde tinha saído há algum tempo.

 Ao me despedir do casal de velhos, fiquei muito triste, pois eu os considerava como meus avós. Minha irmã Mirian pediu pra Tininha levá-la com a gente, pois a mulher judiava muito dela, apesar de que com a Tininha não seria diferente. Eu não tinha outra saída a não ser suportá-la, mas mesmo assim ela quis ir e a mulher acabou a deixando ir com a gente. Fiquei feliz, pois ia ter companhia pra ir pra cidade pedir dinheiro e a Tininha também só aceitou levá-la por esse motivo, porque ela via a gente como fonte de dinheiro. A Mirian não gostou nem um pouco da ideia, mas enfim acabou indo com a gente. No primeiro dia em que saímos, a colocava para pedir, mas ela não queria, ficava com vergonha. Eu também tinha, mas teríamos que conseguir dinheiro de qualquer jeito. Se a gente chegasse sem nada, tomávamos uma surra. E a Tininha batia sem dó. 

 Certa vez um grandalhão que vivia dando dinheiro pra nós, que se chamava Abigail, perguntou o que a gente desejava muito ter. Respondi que meu sonho era ter uma televisão. Então ele contou que tinha uma televisão pequena, que dava pra gente carregar. Nossos olhos se iluminaram e eu disse:

- Você traz pra nós?

- Não. Vocês vão buscar hoje mesmo e já podem assistir na sua casa. Vou dar o dinheiro do ônibus e vocês me acompanham. Finjam que nem me conhecem. Vamos pegar dois ônibus. 

 Estávamos tão empolgadas com a ideia de ter uma televisão que nem perguntamos por que a gente tinha que fingir que nem o conhecíamos. A viagem era longa. Descemos em um lugar estranho. Na calçada, perguntei onde era. Ele, um pouco longe de nós, mostrou uns prédios e falou:

- Eu moro em um daqueles prédios. Pra ir lá, temos que entrar pela mata pra cortar caminho, assim chegamos mais rápido. Vou na frente. 

 Entramos em uma mata fechada, parecia que não passava ninguém por ali. Meu único pensamento era ganhar a televisão. Já imaginava chegando a noite e ver novelas. Era meu sonho. Enquanto sonhava, ia acompanhando aquele homem. De repente, ele parou de frente pra um riacho e começou a tirar a camisa. Foi aí que desconfiei e falei pra Mirian correr. Aquele homem era gordo, não conseguia correr muito. Quando olhei pra trás, só via o cabelinho da Mirian e ele quase pegando ela, que quase não aguentava correr. Eu a incentivava: 

- Corre, Mirian! Corre!

 Quando chegamos na estrada, estávamos cansadas. Então vi um senhorzinho com uns vasos no carrinho de rolimã. Eu, ofegante, pedi dinheiro pra pegar o ônibus. Ele generosamente deu. Atravessamos a rua e pegamos o mesmo ônibus que nos trouxe. Entramos, ainda assustadas e ofegantes. A Mirian estava muito brava e disse:

- Não vou vir mais com você. 

 Depois perguntamos pra algumas pessoas como chegar ao mercadão. Chegando lá, o mercadão já estava fechado e deserto. A Mirian ia aos carros pedir dinheiro, mas ninguém dava. Não tínhamos como vir embora. Devia ser onze da noite. Estávamos perto do mercadão quando vi aquele homem se aproximar de nós. Ele, com a maior cara de pau, perguntou por que corremos, pois não ia fazer nada. Eu disse:

- Você é louco! 

- Ele tirou dinheiro do bolso e falou:

-  É pra vocês, venham pegar.

- Você acha que sou boba? Já liguei pra minha mãe, ela já ta vindo buscar a gente. 

 Enquanto falava, vi vindo um grupo de pessoas. 

- Viu? Eles já estão vindo e vão chamar a polícia. 

 Enquanto ele se distraiu olhando o pessoal, a Mirian tomou o dinheiro da mão dele e desta vez foi à vez dela falar “corre!”. Eu corri. Quando olhei pra trás, ele também estava correndo, só que em sentido contrário. Chegamos muito tarde em casa. A Tininha falou:

- Nossa, achei que vocês tinham morrido. 

 Não falei nada pra ela, mesmo porque ela não ia ligar. O que interessava era o dinheiro que trazíamos nada mais. Falei pra ela que ninguém quer dar dinheiro e que eles mandam a gente trabalhar. Disse que queria trabalhar e ela perguntou:

-  Fazer o quê?

- De empregada – respondi. 

- Você não sabe fazer nada. Se quisesse, tinha um modo bem simples de ganhar muito dinheiro.

- Isso nunca. Vou casar virgem igual à Laura me ensinou – gritei com firmeza.

- Mal sabia ela que naquele dia quase tinha perdido minha virgindade ou, pior, a vida na mão daquele doido. Eu e minha irmã corremos grande risco. Vai saber há quanto tempo aquele louco planejava aquele plano macabro. Mirian acabou voltando para casa da Lurdes, lá pelo menos não tinha que ficar na rua pedindo esmola e sendo humilhada pelo outros. A não ser só pela Lurdes que batia nela, mas alimentava e não deixava a passar fome. E eu acabei ficando sozinha de novo. 

 Então me tornei mocinha. A Tininha com seu jeito bruto me explicou como teria que fazer. Ela me dava uns retalhos de panos e me ensinou a cuidar da higiene. Durante os dias em que estava menstruada, ela não deixava ir pra cidade, medo de ficar com alguém e arrumar filho, porque depois não teria utilidade pra ela com uma criança. Então me dizia:

- Toma cuidado! Agora você pode engravidar.

 Apesar de não ter nem namorado, morria de medo de engravidar. Nem sabia como engravidava e falava:

- Nunca que vou engravidar antes de casar. A Laura falou engravidar só depois do casamento, porque toda a moça que tinha filho antes de casar era perdida. Depois ninguém casava com ela. Vi muitos casos de moças que perdia a virgindade e o pai fazia casar obrigada.

 Apesar de a minha mãe continuar pagando minha pensão, eu quase não via o Paulo e a Mirian. A Tininha ia buscar o dinheiro e já não me levava mais. Minha mãe continuava bebendo, só que agora ela morava com tal de Carlito que pegava todo dinheiro dela. Eles viviam bêbados. O Paulo, junto com ela, aprendeu a furtar pra comer. Coitado do meu irmão, vivia uma vida pior que a minha.

 Num sábado, a Tininha me mandou ir à padaria. Quando estava chegando da padaria, vi de costas uma moça conversando com Tininha. Ela calçava botas longas e estava de minissaia e um cabelo bem curtinho. Reconheci a voz dela. Era a Sueli, minha irmã querida. Ela se virou e eu fiquei pasma. A barriga dela estava enorme. Pensei “será que minha irmã casou? Ou ela era uma perdida?”. Ela me abraçou e falou:

- Nossa, como você cresceu. Você está tão bonita!

 Fazia anos que esperava por aquele abraço. Entreguei o pão pra Tininha e fiquei ali abraçada com ela escutando as conversas das duas. A Tininha falou: 

- Aqui não tem como você morar. Já viu com sua mãe?

- Fiquei lá uns dias, mas não tem como. O homem dela não aceitou. Tenho dó do meu irmão. Não sei como ele consegue viver no meio de tanta sujeira. 

- A Tininha tinha muitos defeitos, mas era super limpa e cozinhava muito bem. Já a casa da minha mãe não tinha como entrar de tanta sujeira. Então Tininha falou:

- Tenho uma ideia. Por que você não pede pra ficar na casa do Joãozinho? 

 Joãozinho era irmão caçula da Tininha. Ele gostava da minha irmã quando ela era pequena, ele a tinha apelidado de Rosa Branca. Ele era um homem violento. Batia em todas as mulheres. Diziam que só aproveitava das mulheres e deixavam-nas sofrendo com os filhos. Não queria minha irmã na casa daquele homem, mas ela estava sem opção. Sueli queria só por um tempo. E falou: 

- Meu tio Pedro não pode me aceitar lá porque a Ivone já tem um casal de filhos.

 Desde que o tio Pedro levou a Sueli, foi pra servir de empregada pra eles. As filhas estavam nas melhores escolas, mas eles não matricularam a Sueli. Nas férias, eles viajavam e deixavam a Sueli com a sogra dele fazendo todo o serviço de casa sozinha. Agora que Sueli engravidou, viraram as costas pra ela. 

 Pensei “o que vai ser da minha irmã na mão do Joãozinho?”. Ela era muito jovem, devia ter apenas 15 anos. O João aceitou minha irmã ficar com ele até a criança nascer. A Sueli, mesmo grávida, cuidava da casa toda e deu um toque feminino. Ela ganhou um bercinho, algumas roupas e até fraldas. Mesmo diante da situação difícil, ela amava seu filhinho. 

- Quando ganhar meu nenê e acabar o resguardo, vou procurar um serviço e pagar alguém pra olhar meu filho.

 Eu sabia que ela seria uma ótima mãe. O João estava humilhando muito minha irmã: 

- Tá vendo? Quando você era pequena não me quis. Agora tá dependendo de mim, ainda por cima grávida. Na hora que esse nenê nascer, vocês vão embora. 

 A Sueli concordava, mas ele começou a se engraçar por ela e pediu pra ela aceitar ele como marido. Ela, naquele momento, precisava mais que tudo de um teto pra ela e o filho. Acabou se tornando mulher dele pouco tempo depois. 

 Quando sentiu as dores do parto, o João a levou para o hospital. Ela deu a luz a um lindo menino de mais de quatro quilos. Foi um parto difícil, minha irmã mal conseguia andar. Mas mesmo com dificuldade, sem ninguém pra ajudá-la no resguardo, ela cuidava do filho com todo amor que só uma mãe de verdade pode sentir. 

 Aguentar o João não era fácil. Ele xingava o tempo todo, chamava o menino de branquelo. Graças a Deus minha irmã tinha muito leite, mas ele tinha muita cólica e chorava. O João não suportava o choro dele. Um dia ele falou 

- Você não vai dar conta de cuidar dessa criança, você vai ter doá-la pra alguém cuidar.

 Passaram uns dias ele disse que tinha arrumado uma pessoa boa pra ficar com o nenê. A Sueli respondeu: 

- Não quero dar meu filho. Vou arrumar alguém pra cuidar dele e vou trabalhar e criá-lo sozinha. Vou embora da sua casa, pode ficar tranquilo. Só me dá mais tempo pra organizar.

 Durante uma semana, o João falava na cabeça dela, mas ela não queria dar a criança. Eu dizia: 

- Não dá seu filho de maneira alguma, podemos tentar cuidar dele juntas.

Numa noite fria de chuva, a Sueli havia acabado de amamentar o nenê. Eu estava ali perto dela, encantada com nenê. De repente, entrou o João e uma senhora. Ela, toda gentil, falou: 

- Seu marido falou que vocês estão tendo dificuldade de cuidar da criança. Conheço uma pessoa, que inclusive está lá fora, que vai poder dar uma vida boa para seu filho.

- Não quero dar meu filho – respondeu a Sueli entre lágrimas. 

- Então pega ele e sai agora – falou o João de forma rude. 

- Me deixa ficar até amanhã. Prometo que saio daqui com meu filho, estar chovendo muito e ele pode ficar doente.

- AGORA! Ou entrega a criança agora ou saem os dois. 

 Eu assistia tudo calada. Queria ajudar minha irmã, mas não sabia como. Ela olhou para os lados pra ver se tinha uma mala pra colocar as poucas coisas dela. Nem guarda-chuva tinha e estava um temporal. A senhora chegou perto da minha irmã e falou:

 - Não tem como você cuidar dele. Pode ficar sossegada, seu filho vai ser muito bem cuidado – enquanto ela falava, foi tirando o nenê dos seus braços. Eu não podia acreditar que nunca mais iria ver meu primeiro sobrinho. 

 Olhei para a Sueli e falei 

- Eles levaram seu filho e você deixou?

 Ela se sentou na cama, pegou uma roupinha dele e apertou no peito. Não falava, não chorava. Os olhos dela estavam sem vida. Nunca vi tanta dor em um olhar. Parecia estar em choque. O silêncio era cortado pelo barulho da chuva. Sem saber o que dizer, assim que a chuva parou, fui embora deixando ela com uma tremenda tristeza. Ela teve que acostumar com dor de ficar longe do seu filho.

 O João era muito violento, batia muito na minha irmã Sueli. Ela não podia conversar com ninguém. Eu ficava triste ao vê-la sofrer tanto. Desde que me entendia por gente, a nossa vida sempre foi assim, tentando sobreviver de todo jeito e dependendo de pessoas ruins. Gostaria que pelo menos minha irmã tivesse tido um destino diferente. Ela merecia encontrar um amor de verdade, um homem que a correspondesse de verdade e que não a maltratasse como aquele homem. 

 Cada dia que passava ficava mais difícil eu ganhar dinheiro para Tininha. As mulheres não davam e os homens queriam meu corpo em troca. Para não ficar sem receber nada, eu era obrigada a deixar ser tocada por uns velhos nojentos que fazia carinhos indecentes. Eu queria mesmo era trabalhar pra ganhar dinheiro de forma honesta, mas a Tininha não aceitava. Passando algum tempo, Sueli engravidou do João e deu a luz uma linda menina. João, mesmo com sua frieza, ficou feliz e disse:

- Essa sim vou criar! É minha filha.

 Minha irmã abaixou a cabeça. Só Deus sabe o que passava na cabeça dela, a dor que ela estava sentindo mesmo com o nascimento da filha. O João continuava mau, sarcástico. Minha irmã sofria muito na mão dele e não tinha ninguém pra protegê-la. A Tininha, mesmo sendo grossa e arrogante, ainda sentia pena da minha irmã e às vezes entrava no meio tentando defendê-la. Mas não adiantava, ele não a ouvia.

 Seu Jorge se casou de novo e deixou a casinha para João e a Sueli morar. Uma tarde eu desci na estação de Guainazes para refrescar a cabeça e pensando na minha vida e nas dos meus irmãos. Conheci um homem com aparência de trinta e poucos anos que educadamente puxou conversa comigo. Ele era gentil, então fui educada com ele, que foi me acompanhando e disse que se chamava Rodrigo e que gostou muito de mim. Fiquei lisonjeada, mas não senti atração nenhuma por ele. E naquele momento não pensava em namorar ninguém, apenas conseguir um trabalho e tentar uma nova vida e novas conquistas. Era meu sonho poder trabalhar e ajudar meus irmãos.

 Rodrigo e Tininha ficaram amigos. Se conheceram por acaso, assim dizia ela, coisa que acho difícil por ser coincidência demais. E vindo da Tininha, poderia esperar qualquer coisa. Quando o vi, ele já frequentava minha casa. E com isso a Tininha aproveitou que estava apaixonado por mim e tirava o que podia dele. Ele pagava aluguel e comprava roupas lindas pra mim. Ele sabia conversar muito bem. Apesar de não corresponder os seus sentimentos, gostava dele como pessoa. Ele era muito bom pra mim. Começamos um namorar. Eu estava ficando mocinha e gostava dos seus beijos. Sentia prazer quando ele me tocava, mas eu não o amava. O Rodrigo sempre bancava tudo, não tinha miséria de gastar. Comprou até uma televisão pra mim. Não gostava que fizesse aquilo, não gosto de aproveitar de ninguém. Por isso procurei um serviço, mas eu não sabia fazer nada e a mulher não tinha vontade de ensinar. Ela deixava por minha conta, mas um mês depois ela acertou comigo e mandou-me ir embora. Saí chorando e pensando “e agora, o que vai ser de mim?”. Já estava com catorze anos, não queria voltar a pedir na rua. Quando estava indo embora, encontrei uma senhora que tinha feito amizade com ela no ônibus. A dona Vera era alegre e gentil. Perguntou por que eu estava chorando. Falei que tinha sido mandada embora. Ela então disse

- Tenho um serviço pra você. Ela se chama Estela. A empregada dela de muitos anos foi embora e quer arrumar outra. Vamos lá agora.

 Eu topei na hora, pois era tudo que eu queria era trabalhar. Chegamos à casa da mulher que precisava de empregada. Ela me apresentou a dona da casa, combinamos o salário e já comecei a trabalhar no dia seguinte. Eles foram muito bons comigo e me ensinaram o que precisava aprender em uma casa. 

Agora com quinze anos, tinha minhas amigas. Andréia era a que mais saía comigo. A gente se dava superbem, começamos a sair para bailinhos de fundo de quintal. O Rodrigo lá só me observando, me amando. Às vezes eu dava uns beijos nele, mas não passava disso. Eu queria mesmo era viver, curtir minha adolescência. Meus hormônios estavam à flor da pele. Eu sentia muito desejo, mas pensava “vou guardar minha virgindade, vou casar virgem”. Era muito namoradeira, mas não queria me envolver com ninguém de maneira mais séria. O Rodrigo vinha muito em casa. Às vezes, quando ele chegava, eu estava saindo com minhas amigas. Ele parecia um irmão mais velho, não conseguia vê-lo com outros olhos, mas ele nunca reclamava. Ele entendia, só queria de vez em quando minha atenção e pedia pra tomar cuidado. Ele assistia de camarote eu desabrochando pra vida.

Eu e minhas amigas às vezes íamos assistir ao programa do Sílvio Santos. Era uma maratona pra pegar um convite. Tinha que ir no sábado e ficar o dia inteiro. No outro dia ia pra Globo assistir o programa. Tinha dias que o Sílvio só brincava e ria quando estava no ar. Na hora do comercial ele fechava a cara e entrava no camarim. Não adiantava gritar por ele. Conheci muitos artistas da época. Sábado, depois que pegávamos o convite, íamos pra TV Tupi. Lá, quietinhas, assistíamos Almoço com as Estrelas na rádio. Víamos o Barros de Alencar, que nem notava nossa presença.

Eu ficava no trabalho e iria de quinze em quinze dias pra casa da Tininha. O meu salário ficava quase tudo com ela, mesmo quase não ficando lá. O que sobrava, comprava roupas e calçados.

Eu quase não via o Paulo, a Mirian e a Natalina. Minha mãe às vezes eu via na casa da Sueli. Ela estava sempre bêbada. Eu tinha vergonha de dizer que ela era minha mãe. Um dia estava com umas amigas conversando, quando ela chegou bêbada, suja, mal cheirosa e gritando: 

- Não vai me apresentar pra suas amigas?

Eu estava com tanta vergonha que não conseguia abrir a boca. Então ela começou a levantar a saia e disse:

- Você saiu daqui, tá vendo de onde você saiu? Sabe como eu sofri pra você nascer? 

Então recuperei a voz e falei:

- Colocar filho no mundo até bicho põe. Quero ver é cuidar, criar, dar amor. Isso a senhora nunca fez. Deixou a gente jogados como bicho. Então se esquece de mim, porque não tenho mãe. 

Virei às costas e fui embora, deixando ela no chão chorando. Minhas amigas vieram correndo atrás de mim.

- Nossa, Marta! Coitada, é sua mãe! 

- Pega ela pra vocês. Cuidem dela – falei ironicamente. 

Isso encerrou o assunto. Como toda adolescente, eu estava um pouco rebelde e ficava na minha. Mas quando a Tininha vinha me humilhar e falar as coisas que só ela achava certo, eu respondia à altura. Já não aceitava mais seus desaforos e não tinha mais medo deles. Pois já trabalhava e agora tinha forças pra sobreviver sem depender totalmente dela. Saía e não dava satisfação, mesmo porque ela nem perguntava. Não dormia com nenhum homem até porque tinha minha crença e convicções de casar virgem, mas carícias e beijos corriam soltos. 

O Rodrigo continuava ir até minha casa para me dar presentes e ajudar no aluguel sem pedir nada. Em troca, às vezes ficávamos horas conversando e rindo das suas piadas. Um dia contei pra ele sobre o abuso que sofri na infância. Ele perguntou: 

- Será que você ainda é virgem?

Fiquei com a pulga atrás da orelha, pois lembrei que seu Jorge falava “vou pôr só um pouquinho”. Fora os outros ex-namorados da minha mãe. Fiquei em dúvida, mas quinze dias depois ele pagou um ginecologista. Estava com muita vergonha. Depois de me examinar, o médico assinou um documento, onde dizia que eu era virgem. Foi um alívio. O Rodrigo guardou o documento com ele. Eu gostava muito do Rodrigo. Ele me levava no cinema e sempre estava me agradando. E nunca tentou algo a mais a não ser uns beijos. Ele sabia que eu era uma menina de vida sofrida que agora estava se abrindo para o mundo e querendo conhecer as novidades do momento, sair com as amigas, ir à praia e a boates que na época era modinha entre os jovens.

Eu estava vivendo um momento mágico. Eram os anos 70, com bailes de fundo de quintal, namorico, muito beijo na boca, roupas da moda. Naquele tempo era diferente. Tinham muitos jovens que mexiam com drogas. Esses tinham a turminha deles. Automaticamente quem não mexia não se misturava. Então cada um na sua. Eu não mexia, nem cigarro fumava. Mas adorava ficar de zueira com cuba libre – bebida muito comum entre os jovens – e meia de seda, uma bebida verde geladinha que era uma delícia e que eu bebia só no fim de semana. 

Minha relação com a Tininha tinha melhorado muito depois que eu comecei a bater de frente com ela. Apesar dela sempre dizer que ainda iria me quebrar a cara, eu não confiava na melhoria dela. Fui visitar a Sueli, ela não estava bem. Como sempre, o João continuava a humilhar e bater nela. Felizmente ela decidiu arrumar um trabalho, mas não podia levar crianças. Ela deixou aos cuidados da Tininha pra olhar e ficava com eles à noite, pois conseguiu uma pequena casinha pra morar. Não era fácil sua luta, mas era melhor que ficar à mercê do João.

O João ficou louco, querendo saber onde ela estava. Ele foi procurá-la na casa do tio Pedro e na minha mãe e não a encontrava, pois ninguém falava nada. Sueli recebeu o seu primeiro mês e pagou a Tininha. Comprou as coisas pra todo mundo e estava feliz e decidida até o João conseguir encontrá-la. E com promessas vazias e pedidas de perdão falso, acabou convencendo o coração mole da minha irmã a voltar pra ele.

Certo dia, enquanto eu estava trabalhando, uma mulher de uns trinta e poucos anos bateu na casa da Sueli. Ela começou a chorar e falou que era mulher do Rodrigo. Disse que desde que ele me conheceu, ele mudou. Na casa dela tinha fotos minhas pra todo lado. Falou também que no parto do filho caçula deles ela foi ganhar sozinha. Implorou pra minha irmã pedir pra eu largar dele. A Sueli me defendeu e falou:

- Minha irmã não tem nada com ele. Ela é virgem, não é amante dele. Nem gosta dele pra namorar. Minha irmã esta vivendo a vidinha dela. Ele que vem e fica lá. Ajuda, mas não tem nada não.

A mulher insistiu, dizendo pra Sueli falar comigo pra largar dele. Disse que o amava e o queria de volta. A Sueli, compadecida da mulher, falou:

- Fica sossegada. Vou falar com ela. Tenho certeza que nem amizade ela vai querer com ele.

Quando cheguei, minha irmã contou tudo pra mim. Pensei “nunca que ia me envolver com homem casado”. Ele nunca falou que era casado, fiquei muito brava. No outro dia cheguei em casa e ele estava lá. Falei: 

- Então você é casado, cheio de filhos? Por que você nunca me contou? 

Antes de ele responder, a Tininha falou: 

- Aquela mulher é doida. Ele morou com ela, mas não é casado. 

- Fica comigo. Eu alugo uma casa bonita e te ensino a dirigir. Compro um carro pra você. Eu te amo. Você é a coisa que mais amo do mundo – Rodrigo falou desesperado.

Ele começou a chorar. Eu, com raiva, falei: 

- Vai dizer essas coisas pra sua mulher. Nunca que vou ser sua amante. 

- Eu quero casar com você. Vou pedir o divórcio e caso com você. 

- Você ta louco! Nunca que vou me casar com um homem que é casado e cheio de filhos. Sua esposa contou pra minha irmã que vocês têm quatro filhos. Além do que, no dia que ela foi ganhar o caçula, foi pro hospital sozinha, porque você estava comigo. Ela acha que sou sua amante. Nem sua namorada eu sou. 

- Eu sei disso. Mas agora que você descobriu, vamos namorar, ficar juntos. Eu te adoro. 

- Me ESQUECE, não quero te ver nunca mais. 

Ele foi embora chorando. Falei pra Tininha que não queria mais ele ali, mas ele continuou indo. Eu não aceitava mais os presentes dele nem conversava com ele. Ficou muito abatido e dizia “pelo menos conversa comigo”, mas eu nem olhava pra ele. Depois de uns três meses, com ele tentando de tudo pra eu voltar a falar com ele, cheguei em casa e vi, em cima da mesa, algo que me lembrava um rádio. Ele, todo entusiasmado, falou 

- Olha o que eu trouxe pra você.

Fiquei curiosa. Aquele treco gravava tudo o que a gente falava. Eu achei demais. Ficamos quase a noite inteira gravando as conversas e ouvindo. Daquele dia em diante, aquilo passou ser uma diversão também. De forma natural, passei a conversar e rir com ele. Só isso, nada de abraços e beijos. 

Então comecei a namorar sério o Juraci, amigo da Andréia, minha amiga de baile e aventuras. Ele não era bonito, mas era charmoso. Parei de ir para os bailinhos de fundo de quintal. Ficávamos em casa vendo TV e ouvindo música da vitrola que o Rodrigo tinha me dado. O Juraci não entedia o porquê daquele homem bem mais velho que eu dizer ser meu amigo. No fim eles fizeram amizade. O Rodrigo entendeu que não podia me ter, mas pra ele era um consolo só de estar perto de mim e tendo minha amizade. Muitas vezes deixávamos o Rodrigo junto com a Tininha. Eles ficavam lá conversando de forma animada, contando piada, enquanto a gente ia namorar no corredor que ficava do lado de fora. As carícias dele me deixavam louca. Ficava pensando que, quando eu casasse, o sexo ia ser muito bom. Quando eu via que as coisas estavam indo longe demais, corria pra dentro e ele ia embora. Eu gostava muito dele, mas não era um grande amor da minha vida, esse grande amor que só existia em novelas. Depois de um ano e dois meses de namoro, ele começou a ficar diferente. Só vinha me ver no sábado. Comentei isso com Andréia.

Ele deixou no ar que a filha da dona da pensão onde ele morava era louca por ele. Senti um frio na barriga, pois já a tinha visto e percebi que ela era muito bonita. Falei com ele sobre isso, mas ele negou qualquer envolvimento com ela. Mas ele continuava a faltar nos encontros. Eu me arrumava e ficava igual a uma palhaça esperando. O Rodrigo ficava ali tentando me fazer rir e me consolava. Afirmava seu amor por mim, apesar dele ser casado. Eu não sentia nada por ele. Um sábado estava esperando pelo Juraci, mas ele não chegava. A Tininha foi na pensão pra saber o que estava acontecendo. Quando voltou, contou que o Juraci estava na parte de fora da pensão aos beijos com uma moça. Parecia que o chão havia sumido dos meus pés. Ele não teve a dignidade de terminar. Como podia ser tão cafajeste? Num momento de raiva, fui rasgando cartão de dia dos namorados e os pequenos presentes joguei tudo fora. Fiquei muito mal. Então fiquei esperando um pouco longe da pensão e mandei a Andréia chamá-lo. Ele veio de bermuda e chinelo, bem à vontade. Falei muita coisa pra ele:

- Você não foi homem nem pra terminar. Não é obrigado a ficar comigo, mas tinha que terminar antes de ficar com a filha da dona da pensão. 

- Você é minha namorada de verdade.

- Sou sua namorada de verdade? E ela é de mentira? Se liga! 

Virei as costas e fui embora chorando. Eu estava muito mal e dizia pra mim mesma que nunca mais ia deixar homem algum me fazer de palhaça. Naquele mesmo dia fui a um bailinho de fundo de quintal com a Andréia. Dancei, bebi muita cuba libre e beijei muito. Já era de madrugada quando resolvi ir embora. A Andréia queria ir também. Quando a gente estava saindo, Juraci chegou. Comentei com Andréia que ele devia ter posto a bonequinha dele pra dormir antes de sair. Passei por ele ignorando completamente sua presença.

Fiquei uns três meses sofrendo e chorando. Não sabia porque estava assim, talvez pelo orgulho ferido, porque eu não o amava. Gostava da sua companhia, dos seus carinhos, mas não passava disso.

Quando completei dezessete anos, lembro que eu estava fora o dia inteiro. Não sei se estava trabalhando ou não. Só sei que, quando cheguei em casa, acendi a luz e escutei um sonoro parabéns pra você. Olhei em volta e a mesa estava com uma toalha bonita, com bolo, salgadinhos e docinhos. Eu nunca tinha tido uma festa de aniversário. Meus amigos estavam todos ali. Até o Claudio e o Luiz Carlos, que eu não via há muito tempo. Estavam ali também a Laura e o Sérgio, filho da Sara. A gente era muito amigo. Chorei de emoção. O Rodrigo estava sentado em uma cadeira em um canto. Percebi que ele tinha organizado tudo. Olhei pra ele agradecida. Ele só fez um gesto com a cabeça. Foram horas muito agradáveis. Quando parti o bolo, o primeiro pedaço foi pra Rodrigo. Sussurrei “obrigada”. O Rodrigo continuou sentado, gravando algo no gravador. Ganhei alguns presentes. Depois que todos foram embora, eles falou pra ouvir a fita. Falei que sim, eu ouviria. Pedi pra Tininha levar um pedaço de bolo e salgados pra minha irmã, pois o João não tinha deixado ela nem meus sobrinhos vir. O resto que sobrou, a vizinha guardou na geladeira dela, pois não tínhamos geladeira O Rodrigo queria comprar, mas não aceitei. Mais tarde escutei a fita que ele havia gravado. De fundo tinha a música “Porque chora à tarde”, do Antônio Marcos. Ele dizia várias coisas sobre me amar muito, que queria passar comigo muitos e muitos aniversários e não tinha perdido a esperança de ficar comigo. Na época, mesmo com aquelas lindas palavras, não senti nada, pois, mesmo com tantos agrados e dedicação da parte dele, não consegui correspondê-lo. 

O tempo passando e eu já nem lembrava mais do Juraci. Então a Andréia falou que havia aberto uma discoteca nova que estava o maior sucesso e que precisávamos conhecer. Disseram que era muito lindo, com luzes coloridas. Era um grande salão todo vermelho, com um pequeno palco e globos coloridos. Ficamos encantadas. A gente se esbaldava dançando. Estava calor e fomos ao barzinho tomar alguma coisa. O salão tinha duas enormes portas laterais. Lá fora ficavam muitos jovens se beijando e outros no barzinho bebendo. Foi quando começou a tocar uma seleção de música lenta e me deparei com um rapaz, moreno forte, de uma beleza sem igual. Parecia um galã de novela. Ele estava sentado conversando com outros jovens. Por um momento não parecia ter mais ninguém ali. Ficamos nos olhando por alguns segundos e meu coração parecia que ia sair pela boca. Nem com o Juraci, que namorei por mais de um ano, havia sentido tamanha sensação. Muitos podem não acreditar, mas foi amor à primeira vista. Mas me recompus rapidinho e pensei comigo “o que um moço tão lindo daquele ia querer comigo? Levar pra cama, é claro”. Afinal, eu podia não ser linda, mas tinha um corpo legal, dentes bons e era jovem. Pra cama podia ter muitos, pra algo mais sério não. Só lembrar o que o Juraci fez comigo. Eu estava decidida não deixar homem algum brincar com os meus sentimentos. Por mais que eu tentasse, não conseguia tirar aquele moço do pensamento. E assim foram vários fins de semana com a gente só se olhando. Era coisa de doido o que eu sentia por ele. Então começamos a conversar. Ele me levou pra casa e quis me beijar, mas me despedi com um seco “boa noite”.

O tempo ia passando e eu cada vez mais apaixonada. Ivan era o nome dele. Era bonito demais. Que cheiro bom ele tinha, que roupas cheirosas. Andréia o achava lindo. Eu me desabafava com o Rodrigo. Dizia que nunca tinha gostado de alguém como gostava do Ivan. 

- Você podia sentir esse amor todo por mim – reclamou o Rodrigo.

Contei pra Sueli sobre o Ivan e como eu estava apaixonada por ele. Ela não gostou da ideia:

- Cuidado! Esses moços bonitos só querem aproveitar de você. Precisa arrumar um moço bom, trabalhador, que cuide de você. Esse negócio de amor é bobagem. Eles só querem aproveitar. 

Eu vi que minha irmã tinha razão, mas não conseguia parar de pensar nele. Isso já vinha por vários meses. A gente vivia brigando, eu não o deixava nem me beijar. Ele me levava pra casa na esperança de me beijar, mas eu não deixava. Um dia ele me falou:

- Garota, beijo não pega filho. E se pegasse, jamais abandonaria você e um filho meu.

 Eu quis abaixar a guarda, mas não podia ceder. Eu ficava dançando e beijando outros moços perto dele só pra ele ver que não queria nada. Porque eu pensava que ele só queria se aproveitar de mim. Uma vez a Andréia estava com um amigo dele e o Ivan estava sem carro. A Andréia ia dormir na minha casa. Então saímos os quatro e ele foi segurando minha mão. Só aquele simples contato já fazia meu coração disparar. Eu tentava controlar sem deixar transparecer aquele louco sentimento que me corroía por dentro. Chegamos em frente ao grupo escolar que um dia estudei. Atrás desta escola tinha uma grama verdinha. Estava garoando. A Andréia ficou namorando mais pra lá e nós dois deitamos na grama lado a lado. Eu estava tão feliz. Só o fato de ele estar ali tão pertinho de mim, meu coração batia mais forte. Senti uma paz tão grande perto dele. Nossas mãos quase se tocando, sentindo a garoa molhar nossos corpos. Que vontade de beijá-lo e abraçar forte. Não falávamos uma palavra. Aquele momento estava sendo mágico. Eu só queria que não acabasse nunca. Se eu tivesse o poder de eternizar um momento da minha vida, seria esse. Só Deus sabe quantas e quantas vez revivi esta cena na minha cabeça. Não sei por quanto tempo ficamos ali quietinhos, sem dizer uma palavra. De repente escutei Andréia me chamar. Levantei rapidamente. Eu ali com o coração cheio de amor e não sabendo como lidar com isso, pois não queria me iludir pra não sofrer.

A Tininha sempre pegando no meu pé e me xingando porque eu saía muito e não me importava com suas críticas. Um dia cheguei do serviço e, como sempre, tomei banho. Esse dia o Rodrigo não estava como de costume fazia. A Tininha estava bêbada gritando feito louca e do nada ela começou me provocar e dizer coisas sem sentindo: 

- Você pensa o quê? Só por que tem esse corpinho, esse cabelo, tem umas roupinhas, pensa que é melhor que eu? Se eu quiser, eu arrumo quantos homens quiser. E você nem sabe fazer um amor gostoso. O coitado do Rodrigo fica aí sofrendo por você. Eu já falei pra ele que é só ele querer que eu sei fazer um amor gostoso. 

- A senhora tá louca em falar umas coisas dessas pro Rodrigo. Mas pra mim tanto faz, não tenho nada com ele mesmo porque ele e casado. 

- Casado? Casado merda – dizia ela. 

- Tô nem aí, não quero homem casado.

- - Lembra-se de quando você era criança? Eu te falei que, quando você completasse dezessete anos, íamos brigar de mulher pra mulher? É agora. Vem brigar comigo – ela surtou. 

Eu não estava com medo, mas também não queria pôr as mãos nela por respeito. Afinal, mal ou bem, ela me criou. E também, mesmo que aceitasse, eu não conseguiria, pois ela brigava muito bem, brigava até com homem

- Vem brigar comigo. Vou retalhar seu rosto inteirinho. Quero ver quem vai olhar pra ele – ela continuou.

- Tô indo embora agora. Vou lá pra casa da minha irmã. 

Comecei pegar minhas coisas, mas, de repente, ela me deu uma garrafada na cabeça e vi o sangue escorrer no meu rosto. Fiquei tonta. Nesta hora meu cunhado João chegou e ficou assustado. 

- VOCÊ TÁ LOUCA, TININHA? – ele gritou. 

Ele foi tirando os cacos da minha cabeça e esquentou água pra lavar o corte. Machuquei também minha mão direita com os estilhaços dos cacos. A Tininha parecia ter caído em si, mas decidi ir embora mais depressa. O João foi pegando minhas coisas e fomos pra casa dele. Minha irmã cuidou do meu machucado. 

Já fazia algum tempo que estava na casa da minha irmã, nem queria saber da Tininha. Mas as coisas não estavam sendo fáceis. O João se sentia no direito de m****r em mim, estava me proibindo de sair. Além de dizer coisas absurdas. Bastou um tempo para morar na casa da Sueli e vi que não dava certo. Ela fazia tudo para mim, mas o João agia como se fosse meu marido. Então a Sueli me incentivou a procurar meu tio Pedro e sua mulher para morar com eles.

Num domingo de manhã fui à casa dos meus tios e bati na porta. Estranhei, pois fui recebida por pessoas que eu nunca tinha visto. Eram parentes do meu pai. Foram eles que ajudaram meus pais quando vieram para São Paulo. Depois dos cumprimentos, elas ficaram sabendo que eu era filha do Joaquim. A Lúcia disse que gostava muito dos meus pais. Então começou a falar da minha mãe e eu desviei o assunto. Perguntei dos meus tios e das crianças. Elas falaram que o tio Pedro tinha ido fazer compras. Quando ele chegou do mercado, contei pra ele do ocorrido e ele falou que ficava feliz de me dar abrigo, pois ele iria ficar sozinho. E a sua mulher tinha falecido e tinha espaço de sobra pra mim. Depois de me alojar, fui fazer uma boa faxina, pois a casa estava uma enorme bagunça.

Assim era a minha rotina. Trabalhava fora. Cuidava da casa do meu tio, fazia a comida. Passei a frequentar a igreja com meu tio. Eles queriam muito que eu aceitasse Jesus. Meu tio falou um pouco das minhas roupas, dizia eram muito ousadas. Mas só falou, não me proibiu de nada. 

 Eu ligava sempre do orelhão no serviço da Andréia para saber do Ivan, eu dizia estava quase louca de saudades dele. Ela dava notícias. Um fim de semana fui para casa da Sueli, onde era bem recebida. Minha irmã fazia tudo que eu gostava, até bolo de chocolate e fazia minha unha. Assim eu matava a saudade dos meus sobrinhos que eu adorava. Como minha irmã era evangélica, dizia para mim que, ao invés de ir à discoteca, devia ir à igreja, pois lá ia arrumar um marido. Mas eu não queria marido, só queria o Ivan. 

 À noite encontrei com a Andréia em frente à discoteca. Meu coração batia forte só de pensar em vê-lo depois de três meses. Quando entramos, procurei por ele olhando em cada canto, mas não achei. Depois de um tempo, ele entrou, como sempre muito lindo. Meu coração batia forte, mas eu precisava disfarçar. Ele olhava para todos os lados, parecia procurar alguém. Quando nossos olhos se cruzaram, ambos desviamos o olhar. Durante quase toda a noite, a gente só se olhava sem dizer uma palavra. Eu dançava, ria com as amigas, dançava música lenta com outros rapazes. Ele ficava chateado e saía mais cedo da discoteca.

 Assim passou a ser minha rotina. Todos os finais de semana ia pra casa da minha irmã e saía pra dançar. Um dia, na discoteca, como sempre só bebendo 

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