— Ah, você está aqui... — diz ela, com um sorriso tímido que parece deslocado naquela hora e lugar. — Vim pegar um pouco de água.
Permaneço em silêncio, observando enquanto ela caminha despreocupada até a geladeira.
A naturalidade de seus movimentos contrasta com a tensão que cresce dentro de mim como uma onda prestes a quebrar.O perfume leve que ela exala — doce, juvenil — chega até mim, tornando a cena ainda mais insuportável.
— Não sabia que estava acordado; você é o irmão de Rafael, não? — murmura ela, enchendo um copo de água. Sua voz é casual, quase inocente, como se nada na situação fosse errado.
— Sim. — Respondo com um corte seco. Não me dou ao trabalho de me apresentar.
Sei que não vale a pena criar laços; a garota não vai durar. — É tarde — acrescento, a voz afiada como uma lâmina. — Talvez você devesse ir para casa.Ela sorri levemente, sem se intimidar, e responde com simplicidade:
— Vou passar a noite com Rafael — diz ela, sem traço de provocação, apenas constatando um fato.
Sinto meu maxilar se contrair, tanto que chega a doer.
Não é apenas sua presença que me incomoda; é o que ela representa. Rafael mergulhado nesse mundo de indulgência, incapaz de compreender o peso de suas escolhas.Com um suspiro pesado, quase um rosnado contido, coloco meu copo na mesa com força, o som seco ecoando na cozinha vazia.
O peso da frustração em meu peito cresce, uma tempestade de emoções prestes a explodir.— Boa noite — digo, em um tom frio e definitivo, antes de me levantar, o corpo tensionado como um fio prestes a se partir.
Enquanto subo as escadas, não posso deixar de notar os sinais do tempo na casa que um dia foi o orgulho da família Fernandez.
Pequenas rachaduras nas paredes, a madeira do corrimão desgastada pelo uso, quadros antigos que um dia foram vibrantes agora parecem pálidos, quase esquecidos.
Cada detalhe carrega a dor de uma era que se desfaz diante dos meus olhos.
Não consigo sequer trazer Dara para visitar minha casa.
O pensamento me sufoca, como uma mão invisível apertando minha garganta.
A ideia de expô-la a isso é como lançar um cristal delicado em meio a uma tempestade de granizo.
Eu poderia me mudar.
Deixar isso para trás e viver minha própria vida.
Mas cada vez que penso nisso, sinto um peso diferente, como se abandonar esta casa fosse abrir as portas para o caos completo.E Santiago?
Penso nele mais que tudo, porque no fundo sei que, se eu me for, Rafael irá desmoronar ainda mais.
Ele não tem freios, nenhum senso de limite.Eu permaneço aqui, mesmo quando tudo em mim grita para partir, porque sinto que sou o único fio que ainda equilibra as coisas. Talvez seja tolice, mas me agarro a essa ilusão de controle, como um homem se agarra a uma rocha em meio a uma correnteza.
A raiva cresce dentro de mim, alimentada pelo cansaço de apagar os incêndios que Rafael deixa por onde passa.
Cada dia que passa, sinto que estou lutando sozinho contra a maré, carregando um fardo que não deveria ser apenas meu.
Por que tudo precisa girar em torno dele?
Por que meus valores, minhas necessidades, são sempre secundários?
Essas perguntas se arrastam como feridas abertas, difíceis de ignorar, impossíveis de curar enquanto esse ciclo destrutivo continuar.
E mesmo sabendo disso, mesmo sentindo a exaustão corroer cada parte de mim... eu permaneço.
Permanecer... talvez seja minha maldição.
Raul Romero FernandezA chuva tamborila nas janelas da biblioteca, criando uma melodia irregular que preenche o silêncio do cômodo. O fogo crepita suavemente na lareira, projetando sombras alongadas nas estantes de livros antigos. Sentado na poltrona de couro que pertenceu ao meu pai, giro lentamente um copo de uísque nas mãos, observando o líquido dourado dançar sob a luz bruxuleante.É tarde, e Rafael ainda não voltou para casa.A tensão que cresce no meu peito já se tornou uma velha conhecida — um peso invisível, porém constante. As noites se repetem como um ciclo vicioso: eu esperando, enquanto ele se perde em madrugadas que parecem nunca acabar.Uma batida suave na porta interrompe meus pensamentos. Ergo os olhos e vejo Teodora, a governanta que nos acompanha há tantos anos que se tornou quase uma segunda mãe. Ela está parada na entrada, com um sorriso brando, mas os olhos denunciam o cansaço de quem já viu mais do que gostaria.— Rafael ainda não chegou? — pergunta, como se já s
O quarto está silencioso, exceto pelo som do meu próprio fôlego irregular. Meus olhos pesam, e a cabeça lateja, ainda repleta da névoa alcoólica que me acompanhou a noite inteira. Cambaleio até a cama e me jogo nela, afundando no colchão que não oferece conforto algum. Não busco mais conforto; busco apenas uma pausa no caos. Escuto a garrafa rolando pelo chão, vazia, como eu. Apago antes que consiga pensar em qualquer coisa, afundando na escuridão que tem sido minha companheira mais fiel.Quando abro os olhos, o sol já está alto. São onze horas.A luz invade o quarto sem pedir licença, ferindo meus olhos.A dor de cabeça me atinge como uma martelada, antes mesmo de eu lembrar quem sou ou onde estou.Suspiro fundo, soltando um palavrão baixo.Minha vida é um espelho quebrado — cada pedaço refletindo sonhos estilhaçados, mentiras contadas e partes de mim que já não reconheço.Levanto-me com esforço, tropeçando até o banheiro.O reflexo no espelho me encara com a crueldade da verdade: ol
RaulTeodora se aproxima, seus olhos carregados de uma sabedoria que às vezes me irrita, mas que, no fundo, admiro.— Rafael precisa de ajuda. Está claro que seu irmão é um alcoólatra.Suspiro profundamente, o cansaço tomando conta.— Sim, eu sei — admito, minha voz quebrando sob o peso das palavras. — Mas ele não quer ajuda. E eu... não sei como forçá-lo. Já falei para ele procurar o AATeodora se aproxima, repousando uma mão firme, porém reconfortante, em meu ombro.— Às vezes, Raul, as pessoas precisam chegar ao fundo do poço antes de enxergarem o caminho de volta. Mas você não precisa carregar isso sozinho.Faço um gesto vago em direção à porta por onde Rafael desapareceu.— Ele é meu irmão. Quem mais vai cuidar dele, senão eu? E o Santiago? Esse menino já perdeu a mãe. Não posso deixá-lo perder o pai também.— E o que acontece com você? — Teodora insiste, sua voz impregnada de preocupação. — Até quando você vai continuar se sacrificando por ele? Venda essa casa, junte com suas ec
Beleza IbéricaEscritório CentralManhã seguinteAnna Simon RicciMeu coração bate forte no peito, ecoando minha ansiedade. Essa entrevista para o cargo de secretária na Beleza Ibérica Cosméticos é mais do que uma oportunidade: é minha chance de recomeçar. Um raio de esperança que ilumina o meu futuro. Enquanto me olho no espelho, tento acalmar as borboletas que dançam no meu estômago. Afinal, essa fábrica de cosméticos, com sua origem espanhola, representa não apenas um emprego, mas a possibilidade de fazer parte de algo grandioso. Meu reflexo revela uma mistura de nervosismo e determinação. Ajusto o colar que pertenceu à minha avó, como se ele pudesse me dar força. Hoje, ele parece ainda mais significativo.Com a pasta em mãos, contendo meu currículo impecavelmente organizado e uma carta de apresentação que escrevi com cuidado, deixo minha casa e sigo em direção ao meu destino. O sol brilha no céu, mas meu coração está envolto em uma nuvem de incerteza, e a estrada até o prédio da
— Tudo bem — ela diz, com um tom que é ao mesmo tempo gentil e profissional.Há algo nesse pequeno gesto que me desarma. Um detalhe quase imperceptível, mas que me faz querer entender mais.— Vamos começar. Me fale sobre você e por que acredita ser a pessoa certa para esta posição?Ela respira fundo, e sua postura muda sutilmente. Seus olhos, que antes estavam dispersos, agora se fixam em mim. Há um brilho ali que me prende, uma convicção que cresce à medida que ela fala.— Sou formada em administração e tenho experiência em marketing estratégico. Nos últimos dois anos, trabalhei desenvolvendo campanhas para uma empresa têxtil, mas que infelizmente fechou suas portas aqui em Londres.Enquanto ela fala, algo em seu tom me surpreende. Não é apenas o conteúdo, mas a maneira como ela entrega as palavras, com uma franqueza quase desarmante. Tento me concentrar no currículo, mas minha mente divaga.AnnaO homem à minha frente permanece em silêncio por um momento, como se absorvesse cada pal
RaulAnna é um paradoxo diante dos meus olhos: sua beleza tem uma força desarmante, mas não é só isso que a faz se destacar. É o brilho em seus olhos, uma determinação que parece inabalável, misturada a uma vulnerabilidade cuidadosamente escondida.É como se cada palavra dela carregasse um peso genuíno, como se ela não estivesse tentando me impressionar, mas, sim, me convencer de sua verdade. Isso deveria ser reconfortante, mas, na realidade, me desconcerta.Seus olhos me desafiam de forma sutil, sem perceber. Há um brilho ali, uma intensidade que mexe de certa forma comigo. Minha mente deveria estar focada em avaliar suas qualificações, em julgar objetivamente se ela é capaz de lidar com as demandas do cargo, mas a verdade é que estou mais fascinado pela pessoa à minha frente do que pelo currículo à minha mão.Ela responde à minha pergunta sobre enfrentar o caos com firmeza. A resposta é prática, objetiva, mas o que realmente me impressiona é o controle em sua voz, mesmo quando sei q
Só ela. Não sei o que isso acende em mim. Mas acende. E o pior é que não entendo por quê.Ela é só uma candidata. Eu a conheci agora. Não faz sentido esse tipo de interesse surgir assim, do nada, com essa força estranha que me tira do eixo.Guardo a informação como quem guarda um segredo precioso. Como se, de alguma forma, isso me desse acesso a uma parte dela que ninguém mais conhece.Meu celular vibra na mesa. Com dificuldade, desvio os olhos dos dela e encaro a tela.Dara.E de repente — como uma lâmina atravessando uma brisa — a imagem dela me invade. Seus olhos marejados naquela noite em que me pediu para não contar a ninguém. O medo escondido sob a maquiagem. A força que ela finge ter, mas que só eu sei o quanto está se desfazendo.Minha garganta aperta.Lembro do toque gelado da mão dela. Da forma como ela segura firme minha camisa, como se aquilo fosse a única âncora em meio ao desespero.Ela também não tem ninguém. Só eu.Meus olhos voltam para Anna. Ela continua ali, sentada
AnnaQuando ele estende a mão, minha mente grita uma advertência. "Seja rápida. Seja profissional." Mas há algo em seus olhos que faz minhas pernas tremerem de leve. Ele não olha para mim apenas como um entrevistador avaliando uma candidata. Há algo mais ali, uma intensidade que não sei como decifrar.Eu estico a mão com cautela, tentando parecer calma. Mas, quando nossos dedos se encontram, sinto uma onda de calor que irradia pelo meu corpo. Não é apenas um toque; é um choque, uma corrente que conecta nossas peles e me faz prender a respiração.Seus dedos são firmes, mas não frios como eu esperava. Ao contrário, o toque é quente, seguro, como se ele tivesse a capacidade de envolver o momento em algo único. Tento ignorar a maneira como meu coração parece ecoar o pulsar desse contato, mas falho miseravelmente.— Muito obrigada, Sr. Fernandez. — Minha voz soa firme, mas meu interior está um caos, como se cada célula estivesse reagindo ao toque dele.Quando retiro minha mão, sinto a ausê