Adeus, meu amigo!

Naquele dia, fiz o mesmo percurso de volta para Lyon. As ruas e avenidas de Paris estavam cheias de folhas. No final de setembro, o outono tornava o clima agradável. Lutei contra o sono enquanto descortinava a paisagem pela janela do meu carro. Anoitecia quando cheguei em Lyon, estava exausto. Levei mais vinte minutos  até, enfim, estar de volta ao meu apartamento.

Tirei a roupa que usava na noite anterior, entrei embaixo da água quente. Abaixei a cabeça enquanto a água caía na minha nuca e descia pelo meu corpo. Nunca tive um dia tão agitado como aquele. Enxuguei todo o meu corpo com a toalha que estava pendurada no vidro do box. Estava tão cansado que não procurei outra roupa, deitei na cama do jeito que cheguei ao mundo. Ativei o alarme e encostei no travesseiro, virei a cabeça para o lado direito. Nicole costumava dormir de roupa e detestava quando eu dormia nu. 

Eu gostava de acordar no meio da madrugada para admirá-la. Ela dormia com uma camisola fina, na maioria das vezes, os seios estavam fora do decote. Eu não resistia aqueles seios firmes que ficavam intumescidos com o calor da minha língua e dos meus lábios sugando seus mamilos.

Detestava quando ela usava calcinha para dormir, eu sempre rasgava ou a colocava para o lado antes de fazermos amor. Com meu corpo por cima do dela, eu sentia a pele lisa de sua barriga até o meio das pernas. 

Levantei os olhos e encarei a mulher que arqueava o corpo e movia os quadris contra minha boca. Me afastei quando vislumbrei o rosto de Marie e a música agitada que tocava, estávamos numa cama dentro da boate onde várias pessoas nos assistiam. Despertei confuso, elevei o torso e me sentei. O quarto estava frio e escuro. Esqueci de ligar a porra do aquecedor! O telefone não parava de tocar, não tinha ideia de quem me ligaria em plena madrugada. Deitei na cama, virei para o lado e coloquei o travesseiro sobre a minha cabeça, mas o ringtone do blackberry ainda tocava.

— Aqui é o Doutor Bittencourt! — falei num tom brusco. — Se não for emergência, peço que ligue mais tarde!

— Bonjour, Dr. Bittencourt! Estou ligando porque o senhor é um contato do Doutor Marcello Bordeaux Albuquerque! — A voz feminina e anasalada  me explicou. — O carro do doutor Bardeaux perdeu o freio e se chocou contra uma árvore na rodovia Auvérnia-Ródano-Alpes próxima à rua 7 de La République.

— Onde ele está? — Liguei a luz do abajur. —  Já levaram o Marcello para o hospital?

— Lamento, o doutor Bordeaux faleceu no local do acidente.

Um aperto dentro do meu peito me deixou em estado de choque. Coloquei a mão na cabeça e permaneci em silêncio. Mesmo que a nossa amizade estivesse abalada nos últimos dois anos, não esperava que o meu amigo partisse desse jeito, não no dia do nascimento de sua filha.

— Dr. Bittencourt! O senhor ainda está aí?

— Estou!

— Eu preciso que alguém traga os documentos para a liberação e o traslado do corpo.

— Providenciarei os documentos necessários e avisarei a família. Merci! — Encerrei a ligação e  me levantei da cama. 

Eu não sabia o que Marcello fazia em Lyon naquela hora da noite. Ele parecia tão feliz quando me despedi dele em Paris. Fui até a janela e olhei fixamente para uma ponte. Contemplei a imensidão do céu escuro, as lágrimas queimavam nos meus olhos naquela noite fria e chuvosa. Nas últimas horas fui de alegria à uma profunda tristeza, ele era como um irmão. Chorei por quase uma hora, liguei para a minha avó às 3 horas da manhã e pedi para que ela comunicasse ao Henry e a tia Heloísa. 

Não sabia como dar essa notícia aos pais dele. Marcello era o filho único e o Henry tinha expectativas quanto ao futuro do meu amigo. Nós assumiríamos os negócios da família. Faltava tão pouco...

Liguei para o hospital onde Josephiné estava internada e o médico me informou que ela havia sido sedada após um surto psicótico de transtorno bipolar. Tudo aconteceu tão rápido. Há algumas horas atrás, ele havia me pedido para cuidar  da filha recém nascida, Marcello teria pressentido que algo de ruim aconteceria?

 Dirigi até o local do acidente, o automóvel dele estava totalmente queimado. Tiravam a carcaça do que sobrou daquele conversível que ele exibia pelas ruas da cidade. Tapei a minha boca e abafei o choro. 

No dia seguinte, fui até o apartamento dele em Paris, onde o pai de Josephiné me aguardava. Peguei os documentos e voltei para Lyon. Minha avó e Henry chegaram pela madrugada.

Eles entraram na pequena sala e se acomodaram no sofá vermelho de três lugares. As paredes eram brancas, havia uma mesa de centro onde eu servia o café expresso. Abri a porta que dava para a varanda e olhei a ponte enquanto Sophie consolava o Henry. 

Não tive coragem de contar ao Henry sobre a neta que nasceu há dois dias. Essa era uma decisão de Josephiné.

— Descanse um pouco, mon coeur!

 Minha avó se aproximou e tocou em meus cabelos.

— Eu não consigo dormir.

Debrucei-me na grade em volta da sacada.

— Você não devia ter reconhecido o corpo do Marcello.

— Eu queria ter certeza!

Tirei os óculos e cocei o meu olho esquerdo com a palma da mão.

— Como está o Henry?

— Ele sofre, mas é forte! Está conversando com a enfermeira da Heloísa. Ela foi medicada.

— Coitada da tia Heloísa.

— Tinha mais de dois anos que ela não via o filho. Desde que ele discutiu com o pai no restaurante no dia do aniversário dele,  Marcello não voltou ao Brasil.

— Marcello não me falou sobre essa discussão.

Minha avó tinha uma voz calma e um sotaque que eu amava. Ela cresceu nas praias e fortificações do século XVII  da pequena vila no oeste da região da Bretanha. Logo depois que ela terminou o PhD em neurocirurgia, casou-se com meu avô Rodolpho. 

Meu avô era um renomado cardiologista. Lembro daqueles cabelos vermelhos e as faces rosadas com aqueles olhos cor de azeitona verdes. Vovô morreu quando eu tinha 7 anos, num acidente. O automóvel perdeu o freio em uma noite chuvosa assim como o carro do Marcello.

— Vão liberar o corpo para o translado amanhã! — Henry veio até a varanda. — Já aluguei um jato.

— Vou com vocês! — Ergui o torso e me espreguicei.

— Non! —  Os olhos de safira de minha vó brilharam.

— Vou sim!

Entrei na sala e fui para a cozinha, ela me seguiu.

— Você não pode prejudicar o seu trabalho. Tem dois dias que você não aparece no hospital —  disse ela, num tom gutural.

— Ele era como um irmão para mim!

A minha avó odiava ser contrariada, tudo à nossa volta tinha que ser do jeito dela. Ela gritou tão alto no dia em que descobriu que casei com a Nicole que a mansão inteira ouviu o sermão que ela dava.

— Sophie está certa! — Henry limpou a garganta. — Você precisa obter avaliações positivas para agregar ao seu currículo.

— Eu só quero ir ao enterro dele! — Afrontei o Henry.

— Ta gueule, Alexander! — Ela ergueu a voz. — Você  escutou o que o Henry disse? Você fica!

Sempre que eu falava em voltar para o Brasil, minha avó pensava que era  com a intenção de encontrar a Nicole.

— Que merda!

 Saí da cozinha e peguei as chaves do meu carro no aparador que ficava em frente ao sofá da sala. Penteei os meus cabelos com os meus dedos e segui para a porta.

— Onde você vai, Alexander?

— Preciso de ar puro, Sophie!

— Me respeite, Alexander! — exigiu ela.

Estava cansado de acatar as ordens da minha avó. Deixei a mulher que eu amava no Brasil para fazer a vontade dela e até hoje sofro em silêncio por perder a Nicky. 

Eu dirigi em alta velocidade até o Instituto Médico Legal. Se o meu carro batesse em algum lugar, seria um favor, pelo menos acalmaria aquela dor que apertava o meu coração. Parei em frente ao local onde o meu melhor amigo estava em uma geladeira. Encostei a minha testa no volante e chorei.

Os meus olhos estavam vermelhos quando fitei o meu reflexo no retrovisor. Removi os óculos e enxuguei o rosto com o dorso da minha mão. Saí e bati a porta do veículo. Não tive outra alternativa a não ser conversar com a legista e explicar a minha situação. Ela abriu uma exceção e deixou que eu me despedisse do meu amigo.

— Você tem certeza? — perguntou ela, cautelosa.

— Sim!

Engoli em seco quando a legista abriu a gaveta. Não contive o choro ao ver o rosto e o pescoço sem a pele. 

— Ele não sofreu — ponderou a mulher esbelta. — Faleceu no impacto.

— Adeus, meu amigo! — Me despedi com a voz embargada pelo choro. — Cuidarei da minha afilhada…  Descanse em paz!

Mesmo estando acostumado a lidar com a morte e a ver aquele tipo de coisa no hospital, não era fácil perder um ente querido. Muitas vezes tive que confortar familiares assim como aquela legista fazia comigo. Ela me abraçou e ficou perto de mim até que eu me acalmasse.

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