Capítulo dois - Bruxa louca dos gatos

Mariana

Uau, uau, uau... mil vezes uau!

Eu tinha mesmo feito aquilo? Tinha salvado a vida de um gatinho?

Eu o abracei com força, sem nem me preocupar com o fato de ser um bichano que eu ainda não conhecia o temperamento (e se ele fosse arisco? Gatos, na maioria das vezes, não são muito adeptos a abraços, ainda mais de desconhecidos). Para a minha sorte, ele continuou bem quietinho, e compreendi, naquilo, que também devia estar feliz. Porque a vidinha dele tinha sido salva.

Meu Deus, eu era uma super-heroína!

Aliás, não apenas eu! Era incrível, mas o outro gatinho tinha sido salvo pela Sofia! Animada, fui até ela, olhando atenta para os dois lados antes de atravessar a rua. Percebi que ela parecia meio tensa, meio aérea, e isso me preocupou.

— Você tá bem? — perguntei, parando diante dela.

Sofia movimentou a cabeça numa afirmação, mas ainda não parecia muito bem. A maior prova disso foi o fato de ter devolvido a minha pergunta:

— E você?

— Estou bem, considerando que quase fui atropelada para salvar um gato burro.

— Ao menos concordamos em alguma coisa. Que bichos estúpidos!

Achei graça do jeito com que ela falou, mas logo notei que não era uma brincadeira, como no meu caso. Ela estava mesmo irritada com os pobres dos bichinhos.

Bem, mas como eu poderia defendê-los? Eles eram mesmo bem burrinhos. Gatos de rua deveriam ser mais espertos que aquilo.

Olhei para o gatinho preto que permanecia aninhado confortavelmente nos meus braços, e só então percebi que ele tinha uma coleirinha vermelha, com um guizo dourado preso a ela. O pelo brilhava e ele era gordinho demais para ser um bichinho de rua. Olhando para o branquinho, que parecia até dormir nos braços da Sofia, notei as mesmas características.

— Eles devem ter um dono — Sofia mostrou ter percebido o mesmo, apontando para as duas coleiras.

Ainda levei alguns instantes para deduzir de quem eles deviam ser. Quando isso aconteceu, recuei um passo e senti meus olhos se arregalando enquanto eu expunha minha dedução em voz alta:

— Ai, meu Deus! Eles devem ser da bruxa!

Vi Sofia franzir a testa e fazer uma cara de quem busca coerência nas minhas palavras. Se ela prestasse mais atenção às coisas que falo, lembraria a quem eu estava me referindo.

— A bruxa louca dos gatos! A que mora ali! — expliquei, apontando para a casa logo atrás dela.

Minha suposição fazia todo o sentido. Afinal, os gatos estavam bem diante da casa, nas duas vezes em que os vimos. Mas, ao invés de concordar comigo, Sofia rebateu:

— Para de chamar a mulher de bruxa. Você não é mais criança para acreditar em algo assim.

Tá, talvez ela tivesse um pouquinho de razão e fosse mesmo meio errado chamar a mulher assim. Já era hábito, o que eu podia fazer?

— Tá... Então, eles são da senhora louca dos gatos, melhorou?

— Então vamos devolvê-los para ela.

Sofia se virou e deu o primeiro passo em direção a casa. Mas eu praticamente me joguei na frente dela. Não que estivesse com medo da bruxa, digo, da senhora louca... mas...

Ah, caramba, eu estava com medo, sim!

— Você tem certeza disso? A gente pode só jogar os gatos pelo muro. Não precisamos exatamente falar com a dona deles, né?

— É claro que precisamos! Eu tirei esses gatos do meio da rua ainda hoje de manhã, e horas depois lá estavam eles de novo. Quase foram atropelados! Eles são muito idiotas para ficarem na rua, e ela precisa ter mais responsabilidade sobre os animais dela!

Suspirei, vencida. Sabia que aquele era o certo a se fazer. Mas, claro, saber era bem diferente de ter coragem para tal feito. Entreguei o gatinho preto para Sofia e me afastei alguns passos, parando bem embaixo de uma árvore e cruzando os braços. Ela não queria conversar com a bruxa? Então que fizesse isso sozinha. Estaria de longe, dando apoio moral.  Fiquei observando enquanto Sofia tocava a campainha e esperava. Passaram-se uns três minutos e não houve qualquer resposta, então ela tocou novamente. Esperou. Tocou pela terceira vez. Nada. Aquele silêncio só colaborava para aumentar ainda mais o meu medo. Afastei-me mais um passo, para olhar o andar superior da casa, vendo que as janelas estavam todas fechadas. As cortinas de cor escura impediam que se visse qualquer movimento do lado de dentro. Tudo isso só tornava a situação ainda mais medonha.

— Olá!

A voz feminina próxima ao meu ouvido fez com que eu sobressaltasse ao mesmo tempo em que soltava um grito assustado. Virei-me para aquela que tinha me cumprimentado. Era uma garota mais ou menos da minha idade, embora fosse uns bons dez centímetros mais alta do que eu (ou seja: como qualquer outra, já que eu era a menor da minha turma). Tinha os cabelos na altura dos ombros, ondulados e castanho-escuros, e olhos no mesmo tom cobertos por um par de óculos de grau.

Abri a boca para responder, mas o susto tinha sido tão grande que a minha voz simplesmente não saía. Sofia se aproximou nesse momento, tomando a palavra e me salvando daquela situação constrangedora.

— Boa tarde. Você mora por aqui?

— Oi! — a menina a cumprimentou. — É, eu moro logo ali. — Ela apontou para a casa ao lado.

Aquilo me animou e fez com que minha voz, enfim, saísse:

— Ai, que bom! É vizinha dela, então deve conhecer a bruxa louca dos gatos, né?

Ela sorriu, simpática. E isso me aliviou um pouco mais o peso do susto. Era só uma garota normal, graças a Deus.

— Bem, eu conheço a bruxa louca dos gatos, sim.

Olhei para Sofia e sorri, fazendo a minha melhor cara de vitoriosa. Aquilo era para ela ver que eu não era uma “garotinha medrosa”, todo o meu temor tinha um embasamento bem sólido.

— Viu, Sofia? Todo mundo aqui no bairro conhece a Bruxa louca dos gatos.

Então, a garota completou:

— Na verdade, eu a conheço porque ela é minha tia.

Meu sorriso se desfez, ao mesmo tempo em que eu desejei que um buraco se abrisse abaixo dos meus pés, para eu poder me enfiar depois daquela tremenda bola fora. Meu rosto queimava tanto, que eu precisei controlar a vontade de escondê-lo com as mãos e depois sair correndo, numa atitude ainda mais vexatória.

Para o meu alívio, Sofia decidiu assumir a conversa:

— Então, achamos que esses gatos são dela.

Os gatinhos, claro! Minha vergonha passou subitamente, dando lugar à minha revolta pela situação.

— É! Os pobrezinhos quase foram atropelados! Sua tia é uma irresponsável por deixá-los na rua!

Os olhos da menina se voltaram para os dois bichanos que permaneciam nos braços de Sofia. Mais precisamente, para as coleiras nos pescoços deles.

— Sim, provavelmente são dela. Ela usa uma coleira igual em todos eles.

Tomei fôlego para voltar a falar e colocar para fora um pouco mais da minha revolta. Porém, Sofia foi mais rápida:

— Parece que ela não está em casa. Sabe que horas volta?

— Pra que ela tem que voltar? — consegui voltar a falar. — É só deixar os gatos com a sobrinha dela e pronto! Vamos voltar pra casa!

— De jeito nenhum! — Sofia era mesmo uma responsável inconsequente! Por mais que isso soasse meio contraditório. — Quero entregar pessoalmente para ela e contar o que aconteceu. Ela precisa ter mais cuidado com eles.

— A gente pode escrever um bilhete, que tal? Anda, Sofia, deixa esses gatos e vamos embora!

Sofia me ignorou completamente, voltando-se para a sobrinha da bruxa.

— Sabe que horas ela volta?

Ela ajeitou os óculos e fez uma cara de dúvida, o que me fez entender que não teria uma boa notícia para me dar. Dito e feito!

— O problema é que não sabemos quando ela volta para casa. Ela passou mal há alguns dias e está hospitalizada e sem previsão para alta.

Eu lamentava muito que isso tivesse acontecido. Tanto, que minha pose de brava desabou e eu até deixei um pouco de lado o medo que sentia da bruxa. Porém, no instante seguinte eu me forcei a voltar a assumir uma postura determinada, quando pensei naqueles pobres bichinhos que não tinham como ficar pelas ruas. Nenhum animal merecia viver assim, ainda mais sendo dois tapados que nem aqueles gatos, que não sobreviveriam nem dois dias! Se aquela menina era sobrinha da dona deles, também tinha alguma responsabilidade naquilo.

— Então você vai ficar com os gatinhos, não vai?

Ela voltou a ajeitar os óculos – aquilo parecia algum tipo de mania – e se mostrou meio sem graça para responder:

— Eu até queria, mas não tenho como ficar com eles.

— Mas os gatos são da sua tia, e você tem que ficar com eles até ela voltar!

Determinada, peguei um dos gatinhos – o branco – e o levei até o portão da casa onde a sobrinha da bruxa disse que morava, preparando-me para jogá-lo para dentro através das grades. Sofia e a garota que eu ainda não sabia o nome gritaram, juntas, ao mesmo tempo em que um ataque vindo do lado de dentro das grades me fez recuar em um pulo. Três ferozes rottweilers surgiram, latindo e encarando o gatinho com olhares assassinos.

Calmamente, a menina explicou:

— Então, como estava tentando falar, tenho três cachorros que não gostam muito de gatos.

Fazia todo o sentido, de fato. Certo, ela estava perdoada. Realmente não tinha como ficar com eles. Logo me veio outra dúvida:

— E o que aconteceu com os outros gatos? Ela tinha uns trinta ou mais!

— É, ela tinha. No dia em que ela foi para o hospital, recebi a ajuda de alguns amigos para fotografar e anunciar todos eles pela internet. Foi um custo, mas conseguimos adotantes para todos. Mas esses dois aí não estavam na casa. Não sei como conseguiram escapar, os gatos da minha tia são, incrivelmente, todos bem caseiros.

Ah, é claro! Tudo fazia sentido. Eram gatos de uma bruxa, no fim das contas!

Sofia voltou a falar:

— Se sua tia não está em casa e você não pode ficar com os gatos... O que vamos fazer com eles? Não podem ficar na rua.

Ela suspirou, mostrando que não gostava muito da sugestão que fez a seguir:

— Não tem jeito, terei que levá-los para um abrigo.

Achei a ideia horrível e já ia intervir. Mas, para a minha surpresa, Sofia foi mais rápida e praticamente gritou, demonstrando aflição:

— Não, de jeito nenhum! Abrigos não são uma hipótese! Vamos achar alguém que possa adotá-los. Até lá, ficaremos com eles!

Em um primeiro momento, senti um sorriso se formar em meu rosto, em um misto de orgulho e surpresa. Quem diria que a Sofia, sendo tão durona, poderia se mostrar tão preocupada com o bem-estar daqueles gatinhos. No entanto, logo que absorvi o que ela tinha dito, voltei a me apavorar.

— Não podemos levá-los pra casa, Sofia. Nossos pais não vão deixar eles ficarem!

Ela me encarou, determinada.

— Não sei quanto a sua mãe, mas o Ricardo não está em posição de me negar muita coisa. — Voltou a olhar para a sobrinha da bruxa. — Nós vamos cuidar deles enquanto procuramos por adotantes.

Ela sorriu, parecendo agradecida. E eu também voltei a esboçar um sorriso, orgulhosa.

*****

Eu não fazia ideia de como ela tinha conseguido aquele feito.

Sofia podia parecer bem durona, mas, ao mesmo tempo, ela estranhamente dominava a arte da chantagem emocional como ninguém. Ela tinha conseguido que até mesmo a minha mãe ficasse sensibilizada com a história dos gatos. Não que isso seja muito difícil, já que, ao contrário do meu pai, ela gostava muito de animais, embora nunca tivesse aprovado a ideia de tê-los em casa, com aqueles discursos chatos de responsabilidade. Mas ela não apenas comprou a ideia de cuidar dos bichinhos, como ligou para o trabalho do meu pai, convencendo-o a deixá-los. Quando o fez, enfatizou muito que aquele era um pedido da Sofia. Ele aceitou bem rápido.

Agora, estávamos nós – Sofia e eu – no quarto, observando enquanto os gatos comiam a ração que minha mãe rapidamente providenciou. Eles pareciam famintos, pobrezinhos.

Já eu, em contrapartida, continuava intrigada:

— Eu peço um bichinho de estimação a minha vida inteira, e meus pais nunca me deixaram ter. Como você conseguiu convencê-los tão fácil?

— Como eu falei, tenho créditos. Ele não está em condição de me negar muita coisa.

Dei de ombros, voltando ao assunto principal:

— E como faremos para conseguir alguém para adotá-los?

— A mesma coisa que a Daniele fez com os outros. Vamos fotografá-los e anunciá-los pela internet.

Ah, sim... descobrimos que a sobrinha da dona dos gatos se chamava Daniele. Porém, apesar do que tinha acabado de falar, Sofia logo apresentou uma ideia muito melhor a respeito dos gatinhos:

— Já que estamos dando lar temporário para eles, acho que não é o caso de procurarmos adotantes. Podemos ficar com eles até que a dona possa sair do hospital.

É, ela tinha razão. Pensei que a bruxa ficaria triste ao descobrir que doaram todos os seus bichinhos.

— Ainda mais sendo bichinhos mágicos, né? — completei em voz alta.

— De novo com isso? São gatos! Apenas gatos!

— Gatos que abrem um portal para outro mundo! Há quem diga que para o inferno!

— Eles não foram capazes de escapar sozinhos de um atropelamento, e você acha que podem abrir portais? Pelo amor de Deus! A mulher não é uma bruxa! É a tia da Daniele. É só uma senhora que mora sozinha com seus gatos de estimação.

— E que não gosta de gente. E assusta as criancinhas. E tem gatos de comportamentos estranhos.

— Ela assusta as criancinhas porque, aposto, elas a perturbam com essa história de bruxa. Gatos sempre têm comportamentos “estranhos”. E, quanto a gostar de gente... Não a culpo. Eu mesma não gosto muito. Além do mais, se fosse uma bruxa, acha que teria tido um AVC?

— É... olhando por esse lado...

— Então, deixe de ser tão infantil. Pare de acreditar nessas besteiras. São só gatos comuns e vamos cuidar deles até que a dona possa levá-los para casa.

Concordei em silêncio, apenas movimentando a cabeça. Até porque, mágicos ou não... eles eram uma gracinha. E eu estava feliz em finalmente ter bichinhos em casa. Ainda que fosse apenas por um período.

*****

           

Embora fossem temporários, decidimos que os gatinhos precisavam de nomes e fizemos uma reunião para decidir, durante o jantar. Sofia ficou séria o tempo todo e quase não falou nada, mas, ainda assim, fez parte das decisões. Pensei se aquele não seria o primeiro sinal de que ela estava começando a se permitir fazer parte da família, e isso fez tudo, para mim, ficar ainda mais emocionante.

Meu pai, de início, ainda torceu um pouco o nariz para os novos moradores da casa, mas pareceu se empolgar com a ideia de que eles pudessem animar um pouco a Sofia, e desconfio que foi só por isso que ela concordou com a reunião familiar para a decisão dos nomes. Poderíamos ter, apenas, discutido a respeito das opções, mas eu apresentei uma ideia mais divertida: propus que cada um anotasse três opções de duplas de nomes em papéis separados e a decisão seria por sorteio. Para ficar mais justo, todos teriam o direito de vetar os nomes sorteados e, se houvesse pelo menos dois vetos, um novo sorteio seria feito.

O primeiro sorteio foi feito. Os nomes eram Arroz e Feijão. Sugestão do meu pai. Vetado por unanimidade.

No segundo, um dos meus papéis saiu! Os nomes mais perfeitos do mundo: Ártemis e Luna. Empolguei-me na defesa, explicando que eram dois gatos bem parecidos com eles, de Sailor Moon, um anime clássico que eu amava com todas as minhas forças. Mamãe adorou, mas meu pai achou os nomes péssimos, argumentando que os dois gatos eram machos (ou ao menos era o que deduzíamos. Nunca imaginei que fosse difícil identificar sexo de gatos. Com cachorros era tão fácil!) e nenhum desses dois eram nomes masculinos. Fiquei revoltada e expliquei que o Ártemis do anime era um “menino”. Sofia bancou a chata, citou mitologia grega para afirmar que esse era o nome de uma deusa e, com isso, a minha escolha foi vetada.

O terceiro papel sorteado foi da Sofia, e eu bem que deveria dar o troco e também vetar, mas tive que concordar que as ideias eram boas. Tanto, que acabou vencendo por unanimidade. E os gatinhos, a partir daquele momento, passaram a ser chamados de Yin e Yang. Como naquele princípio filosófico chinês.

Yin era o pretinho e Yang era o branquinho. Lógico que precisamos fazer uma rápida pesquisa na internet para confirmar se era mesmo essa a denominação das cores.

O restante da semana passou com certa tranquilidade. Não poderia dizer que meu relacionamento com a Sofia estava melhorando, porque a verdade era que ela não parecia gostar muito (na verdade, nada) de mim. Mas eu ficava feliz por agora, enfim, termos um assunto em comum. Sem contar que ela parecia menos séria desde que os gatos passaram a morar com a gente. Ela visivelmente gostava deles. Parecia ter, enfim, encontrado algo para gostar, e isso me animava bastante e me dava esperanças de que assim ela aos poucos ficaria mais feliz.

E era bem difícil ser infeliz com aquelas duas bolas de pelo nos recepcionando sempre que chegávamos em casa. No início, confesso, eu tinha certo receio, por tudo o que contavam a respeito dos gatos da bruxa.

Nas primeiras noites foi um pouco difícil. Eu acordava o tempo todo para vigiá-los. Teve uma noite em que, após um cochilo, eu despertei no meio da madrugada e não os avistei. Fiquei desesperada e acordei a Sofia, chorando, dizendo que eles tinham aberto o portal e ido para o outro mundo. Na verdade, estavam os dois bem tranquilos, dormindo juntos dentro de uma das malas da Sofia. Lógico que ela brigou comigo, me xingou e me mandou parar de palhaçada.

Na segunda-feira, a caminho para a escola, encontramos com a Daniele, saindo de seu portão também indo para o colégio. Ela estudava em uma escola estadual que ficava bem próxima à nossa. Estranhei o fato de nunca tê-la visto pela região. Eu era nascida e criada naquele bairro e conhecia praticamente todo mundo por ali.

— Tem só três meses que me mudei — ele contou, enquanto andávamos lado a lado. — Eu morava com o meu pai, mas resolvi vir passar algum tempo com a minha mãe.

— A irmã da bruxa louca dos gatos? — perguntei, sem qualquer maldade, juro. Ganhei uma cotovelada da Sofia, que a fez gritar de dor.

Daniele riu. Como podia se divertir com aquelas maldades?

— É, minha mãe é irmã da “Bruxa louca dos gatos”. Se isso for hereditário, talvez eu tenha herdado algum dom de bruxaria também, quem sabe?

— Ou talvez a loucura — rebati. E nós duas rimos juntas. Sofia revirou os olhos, notoriamente condenando o meu comentário. A verdade é que eu já me sentia amiga da Daniele.

Ela parecia uma garota muito legal. Não era lá muito fã de animes, mas curtia Marvel, DC e Star Wars, além de jogar videogame e RPG. Ou seja: tínhamos muito em comum.

Ainda sorrindo, ela voltou ao assunto principal:

— E os gatinhos, como estão?

Empolguei-me em responder:

— Eles são muito bonzinhos e carinhosos, quase não dão trabalho. Mas comem muito, vão ficar duas bolotas! O Yin, principalmente. É o mais guloso!

Ela ajeitou os óculos, naquele gesto que eu já tinha entendido se tratar, realmente, de uma mania.

— Yin? Deram nomes para eles?

— Sim! Yin e Yang! Escolha da Sofia!

— São bons nomes. Mas sabem o que dizem quando damos nomes a um animal, não é?

— Não — Pisquei, intrigada. — O que dizem?

— Que não devemos fazer isso com animais temporários. Quando a gente dá um nome, acabamos nos apegando e é mais difícil deixá-los ir.

— Isso não vai acontecer — Sofia rebateu, sem desviar os olhos da rua.

Eu não tinha pensado muito a respeito disso. Por mais que eu soubesse que eles eram temporários, parecia tão natural que eles agora pertencessem à nossa casa...

— Não sei se vou querer que eles vão embora — choraminguei.

— Jura? — Daniele disse, num tom divertido. — Ao menos vai poder voltar a dormir sem medo de eles abrirem um portal para o inferno, no meio da noite.

            Senti meu rosto queimar, envergonhada. Ouvindo assim, meu medo realmente parecia bem ridículo, mas eu não conseguia evitá-lo. Oras, eu tinha crescido ouvindo histórias sobre a bruxa e seus gatos... Não era fácil deixar tudo aquilo para trás.

Chegamos à entrada da nossa escola, Sofia resmungou um “tchau” – bem mais para a Daniele do que para mim – e entrou, deixando nós duas diante do portão. Ainda faltavam dez minutos para o início da aula, então continuei contando sobre os gatinhos. Até que minha fala travou ao avistar o meu crush passando tranquilamente pela rua, acompanhado por outros dois garotos. Como da outra vez, apressei-me em me esconder, usando Daniele como meu escudo.

— O que está fazendo? — ela perguntou, confusa.

Ainda com o rosto escondido, confessei com a voz baixa e tímida:

— Aquele menino ali, o do meio. Eu meio que... gosto dele.

Ela fez silêncio por alguns instantes, e deduzi que estivesse olhando para o garoto em questão. Então voltou a falar, com a voz animada:

— Ah, eu o conheço. Ele é da minha turma!

Em um pulo, fui para a frente dela, muito interessada naquela informação.

— Sério que você o conhece? Como ele se chama?

Ela riu e eu não compreendi qual era a graça.

— Gosta de alguém que você não sabe nem o nome? Vocês alguma vez já conversaram?

— Nunca! Mas... eu o vejo sempre indo e voltando da escola.

— Você apenas o vê e já está apaixonada?

Falando assim, parecia bem estranho mesmo. A verdade é que eu ainda não compreendia direito como funcionava essa coisa de se apaixonar. Porém, vi ali uma oportunidade de conversar sobre o assunto com alguém que parecia bem mais madura e segura do que eu. E que provavelmente não ia apenas me dar uns foras, como a Sofia fazia.

— Você gosta de algum menino, Dani? — Sim, eu já estava me sentindo íntima o suficiente para fazer aquele tipo de pergunta e para chamá-la por um apelido. Eu geralmente pegava intimidade bem rápido mesmo.

Ao contrário da Sofia, ela não parecia se incomodar com isso. Continuou sorrindo, embora tenha dado uma resposta diferente da que eu esperava.

— Ah, não... Nunca gostei de nenhum menino. — Certo... Talvez ela não fosse assim tão mais experiente do que eu. — Acredito que a Sofia possa te ajudar nessas coisas mais do que eu.

Achei graça. Ela não conhecia ainda a Sofia tão bem quanto eu.

— Sofia não gosta de nenhum garoto. Aliás, acho que ela é como você, nunca gostou de ninguém.

— Eu não disse que não gosto de ninguém. Disse que não gosto de meninos.

Ainda levei alguns segundos para finalmente compreender o que ela dizia. E fiquei sem graça pela minha indiscrição. Não que eu costumasse ser discreta em outros momentos, mas... eu não esperava por aquilo, confesso.

— Desculpa, Dani. Eu não quis ser invasiva.

Ela continuou sorrindo, parecendo completamente despreocupada.

— Ah, não esquenta. Tá de boa pra mim. Espero que esteja de boa pra você também.

— Ué, e por que não estaria?

— Algumas pessoas veem problemas nisso.

— Muitas pessoas também veem problemas com as minhas roupas de lolita, mas eu não me importo.

Dani riu, o que me fez voltar a me perguntar qual seria a graça.

— Você é uma gracinha, Mari. Tenho que ir. Boa aula!

Dito isso, ela se virou e seguiu pela rua. Fiquei ali parada, vendo-a se afastar, até que sumisse do alcance das minhas vistas ao virar na esquina à frente, entrando na rua onde ficava o colégio dela. Fiquei feliz por ela ter me contado, de forma tão natural, algo importante de sua vida. Naquele momento, tive ainda mais certeza de que havia feito uma nova amiga.

Pensei em por que as coisas com a Sofia não podiam ter sido simples daquele jeito. Ou, ao menos, um pouquinho menos difíceis. Pensar nisso fez o meu peito se encher de tristeza.

Suspirando, enfim entrei na escola. Mas passaria o restante do meu dia pensando a respeito disso.

*****

Já eram quase onze da noite quando dei boa noite aos meus pais e subi para o quarto. Tinha sido uma noite divertida. Depois do jantar, assistimos juntos a alguns filmes na TV da sala, até que percebi que já era tarde e eu teria aula no dia seguinte. Quando entrei no quarto, encontrei Sofia mexendo no guarda-roupas, apanhando o baby doll que provavelmente vestiria depois do banho que sempre tomava pouco antes de deitar. Aliás, ela tomava muitos banhos por dia, o que me parecia um tanto exagerado.

Porém, não foi sobre a questão dos banhos que eu estava preocupada. Foi com outra coisa, que expus enquanto fechava a porta do quarto:

— Papai perguntou por você. Por que não desceu pra jantar?

A resposta dela, pra variar, veio seca, curta, e sem nem ao menos olhar para mim.

— Estou sem fome.

— Pelo menos podia ter descido para dar um oi. Poxa, ele está se esforçando para se aproximar de você.

— Se um pai com quem você mal conviveu a vida inteira aparecesse depois de uma tragédia querendo aproximação, você... — Ela se calou subitamente, parecendo refletir sobre a própria pergunta. — Ah, esquece. Você não é parâmetro para isso. Aceitaria a aproximação de qualquer desconhecido.

Dito isso, ela seguiu para o banheiro, onde se trancou. Sentei-me na minha cama, pensando que talvez ela não teria feito tal suposição caso soubesse que havia um abismo de diferença entre o meu pai biológico e o dela. Sei que meu pai de criação vacilou com ela. Bastante, até. Foi bem menos presente do que deveria e, acredito, até mesmo do que gostaria, por conta da distância física. Mas, o meu...

            Distrai-me dos meus pensamentos quando duas bolinhas de pelo surgiram na minha frente. Yin e Yang tinham saltado em minha cama, e agora vinham até mim, fazendo charminho. Usei a ponta do lençol para provocá-los, e ficaram os dois sentadinhos sobre o colchão, mexendo as patinhas em direção ao pedaço de pano que eu balançava sobre suas cabeças. Eles eram umas graças! Voltei a me entristecer, pensando que algum dia eles iriam embora.

Cerca de quinze minutos depois, Sofia saiu do banheiro, com os cabelos amarrados no alto da cabeça e já vestindo seu baby doll. Levantei-me e fui ao banheiro, trocar de roupas e escovar os meus dentes. Voltei ao quarto no momento em que ela fechava a janela. Sentei-me novamente na minha cama e tornei a acariciar os gatos, enquanto Sofia arrumava o material escolar do dia seguinte dentro da mochila. Ela fazia aquilo em silêncio, como se estivesse sozinha por ali. Era como ela geralmente agia, na verdade. Sempre achei que ter uma irmã fosse algo maravilhoso, mas ela não parecia pensar dessa forma. O sentimento de solidão dela era visível, quase palpável... Sendo assim, por que não se dava ao direito de aceitar sua nova família? Ela precisava daquilo, não era? Sabia disso, porque eu também, um dia, senti tal necessidade. Ricardo, agora meu pai, foi um grande presente na minha vida. E eu tinha me iludido ao pensar que aquela “irmã” também seria.

Aquilo foi, aos poucos, criando uma sensação de agonia em meu peito, e esta foi crescendo, crescendo... até que, quando me dei conta, as primeiras lágrimas molhavam o meu rosto. Sofia olhou para mim, mas não disse nada, apenas foi até o interruptor e apagou a luz, em seguida sentando-se em sua cama. Achei que ela fosse continuar a me ignorar, como sempre fazia, e então deitar e dormir. Foi uma surpresa perceber que não foi o que aconteceu.

— Está passando mal ou coisa do tipo? — a voz dela era indiferente, mas o simples fato de fazer aquela pergunta foi uma surpresa pra mim.

Murmurei um som de discordância, não queria preocupá-la. Ao mesmo tempo, vi ali uma abertura para desabafar.

— Na verdade, eu só fiquei triste por pensar em algumas coisas... Estava pensando que, de certa forma, nós até que somos parecidas.

— Nós não somos nada parecidas.

Pensando um pouco melhor, ela não deixava de ter sua cota de razão. Não éramos exatamente parecidas, esta não era a palavra mais adequada. Ela tinha perdido a mãe, e eu nem seria capaz de imaginar o quanto isso era triste. Mas a mãe dela não a havia abandonado por vontade própria, diferente do meu pai biológico, que não representava para mim nada mais do que um nome no meu registro de nascimento.

— Eu não tenho como responder a sua pergunta, Sofia. O meu pai não apareceria depois de uma tragédia, porque ele sequer lembra que eu existo. Ele nunca veio me ver, nunca telefonou, nunca pagou pensão... nunca olhou para mim.

Sofia ficou calada. Acho que, quando fez a pergunta, certamente não esperava uma resposta daquele tipo. Ainda levou alguns segundos até conseguir dizer algo:

— Não deveria sentir a falta de alguém que te deixou.

— Ah, eu não sinto. Juro, não sinto mesmo. Eu tive um ótimo pai, no fim das contas. — Puxei com força o ar para os pulmões, segurando o choro que certamente dava a impressão de contrariar o que eu tinha acabado de dizer. Não era mesmo por aquilo que eu sofria.

— Então por que está chorando?

— Sabe... o nosso pai sempre falou muito de você. Sempre me disse que queria muito que nós duas nos conhecêssemos. E ele me ensinou a vida inteira que eu tinha uma irmã, porque era assim que ele sempre falava: “Vou ligar para a sua irmã”, “Preciso depositar o dinheiro da escola da sua irmã”, “No feriado, vou viajar para visitar a sua irmã”. Daí aconteceu tudo isso. E foi triste demais a forma como você perdeu a sua mãe, mas eu fiquei feliz quando soube que você viria morar com a gente, porque achei que, dessa forma, talvez eu pudesse te ajudar.

Ouvi a respiração pesada dela e houve uma pausa, como se escolhesse as palavras que usaria a seguir.

— Eu não gosto de estar aqui. Não dá para estar feliz morando com um pai que, para mim, sempre foi uma visita, não parte da minha família. Minha família sempre foi apenas a minha mãe e eu. E, quanto a você... Não, nós não somos irmãs. Não temos o mesmo sangue, nem fomos criadas juntas. Somos diferentes demais para sermos até mesmo amigas.

— É uma pena que pense assim. Eu queria muito poder te ajudar.

— Eu não preciso da ajuda de ninguém.

Ela se deitou, como sempre se cobrindo inteira com o edredom. Passei as mãos pelo rosto, percebendo, enfim, que a maior parte daquelas lágrimas não eram por mim. Eu estava chorando pelas dores de alguém que se mantinha o tempo inteiro tão firme quanto uma rocha. E, quando me dei conta, já estava dizendo algo a respeito disso:

— Desde que chegou aqui, eu nunca vi você chorar.

— Chorar não muda nada. Não adianta, nem mesmo ameniza coisa nenhuma.

— Acho que não é bem assim. Até a pessoa mais forte precisa chorar de vez em quando.

Ela ficou em silêncio e eu compreendi que a conversa estava terminada. Tinha sido longa até demais. Continuei ali sentada, fazendo carinho nos gatos, até que o sono me venceu e enfim deitei para dormir. Acho que fiquei adormecida por poucos minutos, mas logo despertei ao ouvir o barulho de algo batendo e, assustada, levantei-me, olhando ao redor para entender o que tinha acontecido. A janela do quarto estava aberta. O que era estranho, porque lembrava de ter visto a Sofia fechando logo que voltou do banho. Talvez tivesse deixado o trinco desencaixado e ela havia sido aberta pelo vento.

Levantei-me para fechá-la e, quando comecei a fazer isso, vi o vulto de dois gatos andando pelo muro da frente. Quando passaram embaixo do foco de luz de um poste, reconheci como sendo os nossos bichinhos temporários.

— Ei, voltem aqui! — chamei baixo demais para que eles me ouvissem, mas alto o suficiente para acordar Sofia.

— O que aconteceu?

— O Yin e o Yang... — Foi só o que eu resmunguei antes de sair do quarto e descer as escadas.

Abri devagar a porta da frente e saí pelo quintal até chegar ao muro no mesmo momento em que os dois gatos pulavam para a rua.

— Merda! — Ouvi o xingamento bem atrás de mim e me virei, vendo que Sofia tinha me seguido.

Abri o portão, na esperança de apanhar os gatos na calçada. Mas os danadinhos já estavam no meio da rua, andando rapidamente pela escuridão da noite. Estava tudo deserto, por isso não me importei muito em sair do jeito como estava, com minha camisola cor de rosa, da Hello Kitty. Sofia usava um baby doll e assim mesmo me seguiu, chamando baixinho pelos gatos, embora de forma bem mais irritada e menos carinhosa que eu. Em determinado momento, passamos as duas a correr atrás dos bichanos, mas eles pareciam também apressar seus passos na mesma medida em que apressávamos os nossos. Em determinado momento, nós duas paramos quando simplesmente não os avistamos mais.

— Eles sumiram! — constatei, assustada.

Olhei para Sofia e percebi que, apesar de cética, ela parecia tão intrigada quanto eu. E não era para menos, os dois animais haviam simplesmente desaparecido. Eu não os tirei das minhas vistas em momento algum... era como se tivessem evaporado bem diante dos nossos olhos. Como algo assim seria possível?

— O que estão fazendo aí? — a voz me fez sobressaltar de susto, ao mesmo tempo em que soltava um gritinho e me agarrava ao braço de Sofia.

Olhamos as duas para a casa à nossa direita. Em uma das janelas do segundo andar, estava Daniele, nos olhando com uma expressão confusa. Tentei começar a se explicar, mas ela fez um sinal com a mão para que esperássemos e sumiu da janela, saindo minutos depois pelo portão da casa e indo até nós.

— Estava jogando vídeo game e deixei a janela aberta por causa do calor. Quando fui fechar para dormir, olhei para a rua e vi duas loucas de pijama. Quase não acreditei quando reconheci vocês!

Eu estava muito assustada, e quando isso acontecia, eu falava ainda mais do que o meu normal. Por isso contei toda a história... a janela aberta, a fuga dos gatos, nós duas tentando alcançá-los e o sumiço deles bem diante dos nossos olhos. Ao final, a Dani riu, parecendo não acreditar muito no que ouvia.

— Eles devem ter se escondido. Entrado em alguma lixeira ou pulado o muro de alguma casa. Gatos são assim mesmo, Mari.

Quis concordar, mas sabia muito bem o que tinha visto. E não era a única, porque Sofia incrivelmente confirmou:

— Eles estavam bem no meio da rua, andando em linha reta, e sumiram.

— Nada some do nada! — Dani rebateu. Sofia movimentou a cabeça em concordância, mas ressalvou:

— Nada some do nada... Mas o que aqueles gatos fizeram foi algo bem próximo a isso.

Voltei a olhar para o meio da rua, com um pouco mais de atenção, e percebi um objeto pequeno caído lá. Estreitando os olhos, identifiquei como sendo uma das coleiras vermelhas. Devagar, ainda hesitante, comecei a caminhar na intenção de apanhar o objeto. Nesse momento, o som de um motor de carro cortou o silêncio da noite. Mas foi tudo tão rápido, que sequer tive tempo de pensar sobre o que estaria acontecendo. Senti uma mão se agarrando ao meu braço e virei o rosto, me deparando com a Sofia. Foi aí que algo completamente anormal, ainda mais do que tudo até então, aconteceu. Foi como se o chão tivesse se aberto. Agarrei-me ao braço de Sofia e ouvi o som do meu próprio grito ecoando naquela profunda escuridão.

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