Capítulo um - Nova irmã

Sofia

Eu às vezes reclamava da rotina, até que chegou o dia em que tudo o que eu mais desejei foi que as coisas continuassem da forma como estavam. O dia em que voltei da escola e não fui recebida por um “Acabei de limpar o chão, tire esses sapatos antes de entrar!”; em que o cheiro delicioso do almoço não invadiu as minhas narinas; em que não dei o costumeiro beijo no rosto da minha mãe, precedido por um “cheguei!” de minha parte e seguido por um “Como foi na escola hoje?” da parte dela. O dia em que sofri a maior dor da minha vida e que descobri que precisaria reaprender a viver, sem a minha mãe ao meu lado.

Tinha sido tudo absolutamente repentino. Era dia de folga dela e, por isso, decidira tirar a manhã para organizar os armários da cozinha, que estavam todos uma bagunça. Saí para a escola e, quando voltei, a encontrei caída no chão, já sem vida. A causa da morte foi determinada como ataque cardíaco, o que não fez o menor sentido na minha mente. Minha mãe tinha apenas trinta e seis anos, não bebia, não fumava e era amante da alimentação natural e do estilo de vida zen. Era simplesmente a pessoa mais saudável, tranquila e bem-disposta que eu conhecia. Não era para algo assim ter acontecido a ela. Mas aconteceu, e este era um fato que eu precisava aceitar. Não havia outra opção.

            Outras mudanças vieram. De casa, de cidade, de família. Dias depois de enterrar a minha mãe, eu entrava em um carro ao lado do Ricardo, o pai com quem eu mal havia convivido até então, e pegávamos a estrada rumo à minha nova vida.

Casas, árvores, lojas... Montanhas e mais montanhas, rios, vegetação... Tudo passava pela janela e era seguido pelos meus olhos em um misto de desinteresse e desânimo. Vez ou outra, Ricardo tentava puxar algum assunto que eu não tinha qualquer ânimo para continuar. Será que não estava claro para ele? Eu tinha enterrado a minha mãe há menos de uma semana e, agora, embarcava em uma viagem de oito horas rumo a uma nova vida em uma nova casa, uma nova cidade... e ao lado do pai que eu mal conhecia.

            A vida inteira fomos só a minha mãe e eu. Não que o Ricardo, meu pai, fosse um canalha desnaturado. Aliás, nunca houve nenhum comentário da minha mãe nesse sentido, afinal, os dois, de forma muito incomum, sempre mantiveram um relacionamento amigável, mesmo que à distância. Tiveram um namoro rápido na juventude, minha mãe descobriu a gravidez na mesma semana em que o Ricardo embarcava para iniciar a faculdade no Rio de Janeiro. Conversaram muito a respeito. Ela decidiu por me criar sozinha e ele se comprometeu em ajudar de todas as maneiras possíveis.

            E ajudou, até. No início foi mais difícil, mas logo que terminou a faculdade ele conseguiu um bom emprego e, consequentemente, minha pensão deu uma melhorada. Ele ligava toda semana para saber como eu estava, se precisava de alguma coisa... E nos visitava uma ou, no máximo, duas vezes por ano.

            Mas era isso. Um cara legal; uma visita em alguns feriados prolongados; o sujeito que pagava a minha escola, a natação e o curso de inglês. Um homem que, embora eu de vez em quando chamasse de “pai” (geralmente apenas quando falava diretamente com ele. Com os outros, me referia a ele pelo nome) e respeitasse como tal, eu não nutria nem um terço do amor que sentia pela minha mãe. Ela era todo o meu mundo.

            Depois de horas de uma viagem onde eu muito ouvi e pouco falei, enfim chegamos ao local que seria o meu novo lar. Enquanto Ricardo tirava as malas do carro, minha madrasta veio ao meu encontro, recebendo-me com um sorriso e um abraço. Nenhum dos dois foi correspondido. Depois, fui guiada até onde seria o meu novo quarto. Quando a porta foi aberta, descobri que teria que dividir o cômodo com alguém.

            — Olha quem chegou, Mari! — Márcia, minha madrasta, anunciou.

            A garota diante de mim abriu um largo sorriso e eu não pude evitar fazer uma rápida avaliação a respeito dela. Pelo que eu sabia, ela era um ano mais nova que eu: enquanto eu tinha dezesseis, ela estava com quinze. Mas só de olhar, ninguém daria a ela mais do que doze. Não apenas por ser pequena em estatura, mas por todo um conjunto da obra. Ela usava um vestido rodado cor-de-rosa e sapatos pretos com laços, que lembravam os daquelas bonecas antigas. Os cabelos castanho-claros e bem lisos estavam presos por dois coques, com a franja reta caindo sobre a testa. O quarto, aliás, era bem um reflexo daquela pessoinha exótica: todo decorado em tons pastéis e repletos de bichos de pelúcia, miniaturas de desenhos japoneses e pôsteres com fotos de uns homens orientais que eu não fazia ideia de quem seriam.

            E era ali que eu iria dormir todas as noites...

            Logo que Márcia saiu, a garota se aproximou, empolgada.

— Seja bem-vinda! Meu nome é Mariana. Mas pode me chamar só de Mari. E o seu?

Quanta idiotice. Eu sabia o nome dela. E ela, é óbvio, também sabia o meu. Não havia motivos para apresentações formais. Mas, já que ela tanto insistia:

            — Sofia.

            — E como eu posso te chamar?

            —...Sofia.

            — Ah, é difícil ter um apelido para um nome pequeno, não é?

            — Não gosto de apelidos.

            Ela fez cara de sentida, mas isso não durou muito tempo antes que ela voltasse a sorrir e começasse a me mostrar o meu novo quarto que parecia feito para abrigar uma criança de cinco anos.

            — Olha, deixei um espaço no guarda-roupas para você, e também liberei algumas prateleiras da estante. — Ela puxou uma cama de rodinhas de baixo da sua. Também estava coberta por um lençol rosa, isso não me surpreendeu. — Eu durmo na cama de cima, mas, se você quiser, pode ficar com ela para você, caso se sinta mais confortável. E fique à vontade caso queira fazer alguma mudança.

            Na verdade, o que eu menos queria na vida era uma mudança. Queria apenas que tudo continuasse como estava: na minha casa, na minha cidade... com a minha mãe.

            Alguém bateu na porta e, instantes depois, a abriu, perguntando se poderia entrar. Era o Ricardo, trazendo as minhas malas. Mariana correu para abraçá-lo e foi correspondida com o mesmo carinho e empolgação. Percebi que ela o chamava de pai, o que não era de se estranhar, já que ela era bem pequena quando a mãe se casou e ele praticamente a criou. Engraçado perceber que ele era muito mais pai dela do que meu. Era até mais parecido fisicamente com ela do que comigo: a mesma pele branca e os mesmos cabelos castanhos, embora os do meu pai fossem bem mais escuros. Ele era um cara bem bonito, aliás. Tinha os cabelos compridos, presos por um baixo rabo de cavalo, olhos esverdeados e um sorriso largo e fácil. Já eu era uma cópia perfeita da minha mãe: a mesma pele negra, os mesmos cabelos volumosos e cacheados... Mas ela era bem mais bonita e bem mais feliz. Diziam que eu tinha um jeito meio melancólico, meio emburrado... o que era verdade, apesar de eu não fazer de propósito.

            O que poucos sabiam era que eu nem sempre fui assim.

            — O jantar está pronto, meninas — Ricardo comunicou, logo que Mariana o soltou. — Sofia, deixe para arrumar as suas coisas depois e venha comer com a gente.

            — Estou sem fome — respondi de imediato. E peguei uma das malas, colocando-a sobre a cama e começando a tirar as peças de roupa de dentro dela.

            Ele ainda insistiu, mas eu ignorei pelo tempo suficiente de fazê-lo desistir.

            Quando, enfim, fiquei sozinha, desfiz rapidamente as malas. Três delas foram o suficiente para caber todas as coisas que eu decidi levar para a minha nova vida. Coloquei tudo dentro do guarda-roupas e usei apenas uma das prateleiras vazias para colocar alguns livros, material escolar e um pequeno porta-joias com algumas bijuterias – a maioria da minha mãe. Ela era super vaidosa, usava uns brincos grandes e colares cheios de pedras. Por mais que eu soubesse que provavelmente jamais usaria aquilo, quis levar tais lembranças comigo.

Arranquei aquele lençol ridículo da cama de baixo (e só então percebi que tinha estampa com desenhos de gatinhos) e troquei por um que eu tinha levado. Amarelo, liso e já um pouco desgastado do tempo. Também levei meu próprio travesseiro e um edredom que era da minha mãe. Talvez fosse uma mera impressão, mas eu ainda conseguia sentir, nele, o cheiro dela.

            Deitei na cama de baixo, cobrindo-me completamente. Algum tempo depois, ouvi Mariana voltando ao quarto, mas continuei imóvel, fingindo que dormia e, dessa forma, não fui perturbada.

            E continuei naquele jeito, quieta, durante horas até, enfim, conseguir pegar no sono.

            Foi uma péssima noite, marcada por pesadelos mesclados a uma gigantesca sensação de solidão.

*****

            No dia seguinte, mais mudanças. Já seria o meu primeiro dia na nova escola. Durante o tempo em que Ricardo esteve na minha cidade cuidando das burocracias relacionadas à morte da minha mãe, Márcia agilizou as coisas da minha nova vida, o que já incluía até mesmo o meu novo uniforme. O colégio ficava a três quadras de casa e o caminho era feito a pé, com direito a uma garota com tiara de orelhas de gato (sério, qual era a necessidade daquilo? Carnaval fora de época?) tagarelando no meu ouvido durante todo o trajeto, enquanto me mostrava os “pontos turísticos” do bairro: o clube onde era realizado mensalmente o evento de Anime que ela não perdia por nada; a casa onde morava o professor de Matemática, que ela alegava ser chato; a pequena galeria onde tinha uma lojinha de roupas com várias coisas “lindas” (se era lá que ela fazia compras, devia ser uma loja infantil, provavelmente!); e a casa da “bruxa louca dos gatos”.

            — Bruxa? — eu finalmente murmurei alguma coisa, curiosa.

            — É o que todo mundo diz. Ela deve ter... sei lá... uns trinta gatos. E é super antissocial, não fala com ninguém, nem responde quando dão bom dia nem nada.

            — Então ela é a louca dos gatos. Por que o “bruxa”?

            — Me contaram uma vez que cada gato dela traz a alma de uma pessoa. E que eles podem abrir um portal para outro mundo.

            Olhei para ela, esperando realmente que ela risse ou completasse a piada. Mas, não, apenas continuou séria, demonstrando que acreditava em toda aquela baboseira sem coerência.

            — Jura que você acredita nessas besteiras?

            — Você só não acredita porque ainda não conhece a bruxa louca dos gatos.

            Enfim, chegamos ao novo colégio. Por pura infelicidade, fui matriculada na mesma turma da Mariana, já que, apesar de mais velha, eu havia repetido um ano e agora estávamos na mesma série. Com isso eu precisei aturá-la me apresentando a todos como sua meio-irmã, termo que eu achava, além de ridículo, estupidamente inapropriado. Ela tinha um grupinho de amigas que falavam igualzinho a ela, soltando uns termos estrangeiros no meio das frases, que eu fiquei na dúvida se eram japoneses ou coreanos, até descobrir que era um pouco de cada. Tive que aturá-las no meu pé durante todo o recreio, conversando sobre animes, séries de super-heróis e música coreana. Apenas assuntos dos quais eu não sabia absolutamente nada.

Tentei me afastar em vários momentos, mas ela me perseguiu durante todo o horário de aula. Na hora da saída, eu bem que tentei ir sozinha (já sabia o caminho, oras), mas ela me esperou e foi do meu lado, de novo falando pelos cotovelos sobre coisas que, sinceramente, não me interessavam nem um pouco. Quando chegamos em casa, ela me esperou para almoçar. Depois, sentei no sofá da sala e ela se sentou ao meu lado, assumindo o controle da tevê e colocando em uma série que ela jurava que eu ia adorar. Saí e fui para o quarto estudar. Ela foi atrás e ficou lendo um mangá e dando gargalhadas que me faziam desconcentrar o tempo todo. Depois do jantar, deixei-a na sala conversando com os pais e fui para o andar de cima. Tomei um banho bem demorado e achei que enfim poderia ter um momento a sós, em silêncio. Mas me enganei. Quando entrei no quarto, encontrei Mariana sentada na cama de baixo (que seria a minha cama) com um notebook aberto, para o qual olhava, distraída, e um monte de pacotes de salgadinhos e chocolates diante de si.

— O que está fazendo?

Ela pareceu se assustar, mas logo que me olhou, abriu um sorriso.

— Ah, Sofi, separei uns filmes pra gente assistir!

Assistir filmes com ela? Mas o que aquela garota tinha na cabeça? Fiquei olhando-a, sem reação para uma resposta automática. Então, ela continuou a falar:

— Não sei de qual chocolate você gosta mais, então comprei vários diferentes. Não teremos desperdícios porque eu gosto de todos. Sobre os filmes, pensei em assistirmos algo leve, tipo uma comédia romântica, o que acha? Separei alguns doramas muito legais também. Não sei se você gosta, mas...

— Saia da minha cama — enfim, consegui dizer alguma coisa.

Ela se calou, parecendo surpresa com a minha reação, embora eu nem ao menos tivesse elevado o tom de voz.

Na verdade, eu não queria mandá-la sair. Eu é que queria sair dali. Porque aquela cama não era minha. Nada por ali era meu. Eu não pertencia mais a lugar algum. E tal sensação era tão desesperadora, que só me fazia ter vontade de correr como uma louca, sem destino, numa tentativa ilusória de encontrar algum lugar ao qual eu pudesse chamar de lar. Se eu não podia fazer algo tão estúpido, então que ao menos pudesse chamar de “meu” aquele colchão coberto pelo velho lençol e o edredom no qual eu queria me camuflar, como se fosse capaz de me proteger de toda a solidão do meu mundo.

— Desculpa, Sofi — Mariana enfim disse algo. — É que, como nós agora somos irmãs, eu achei que a gente podia...

— A gente não pode! — eu a interrompi, passando a falar mais alto. — Nós não somos irmãs e eu já te disse que não gosto de apelidos. Meu nome é Sofia.

Os olhos dela rapidamente se encheram de lágrimas e isso fez com que eu, por um rápido momento, me sentisse arrependida e culpada. Que droga, eu não queria fazer ninguém chorar. Mas ela ultrapassava os limites, invadia o meu espaço, deixava-me sem ar!

Segurando o choro, ela apanhou todo o seu lanchinho e o notebook e jogou tudo em sua própria cama, indo também para lá. Choramingou mais alguns pedidos de desculpa que eu não respondi. Então, eu pude enfim deitar. Como na noite anterior, cobri-me completamente, tentando sentir algum aconchego naquele escuro e no cheiro da minha mãe que já nem mais existia, mas que eu fantasiava sentir no edredom.

Mas tudo o que eu consegui realmente sentir foi a dor da saudade.

*****

A manhã começou um pouco mais silenciosa do que a do dia anterior. Ouvi quando Mariana acordou e foi para o banheiro do quarto para se arrumar e esperei até que ela voltasse para, só então, fazer o mesmo. Ao nos cruzarmos no caminho, trocamos um baixo e rápido “bom dia”. Tinha passado apenas duas noites naquela casa, mas já era mais do que suficiente para que eu soubesse que aquele silêncio e desânimo não eram nada comuns à enteada do meu pai.

Ao terminar de me arrumar, desci para a cozinha e todos já me aguardavam lá, sentados ao redor da mesa preparada para o café da manhã. Tanto Márcia quanto Ricardo sorriram e me desejaram um bom dia, que foi respondido com bem menos sorrisos e empolgação. Meu pai fez uma péssima tentativa de puxar assunto:

— Animada para o segundo dia na nova escola?

Movi a cabeça em uma afirmação, tentando parecer educada, quando na verdade adoraria responder aquilo com outra pergunta.

Eu parecia sentir alguma ínfima ponta de animação?

Pensei em que motivos ele teria para ficar insistindo em forçar uma intimidade que nós não possuíamos, uma descontração que eu não tinha como corresponder.

Naquele momento, eu sabia o que ocorreria a seguir: Mariana começaria a tagarelar sobre o dia anterior na escola, como se ela fosse capaz de responder por mim. Porém, isso não aconteceu. Ela continuou tão calada quanto estava estranhamente naquela manhã. E a mãe dela pareceu perceber isso também.

— Mari, aconteceu alguma coisa? Está tão quietinha.

Ela forçou um sorriso e negou.

— Não aconteceu nada, mamãe. Eu só estou com sono.

— Já sei! — Márcia voltou a sorrir. — Ficou até tarde de papo com a sua irmã e não dormiu nada, não é?

Me irritava a maneira como tanto ela quanto o Ricardo se referiam a nós como irmãs, sendo que todos sabíamos muito bem que aquilo não era verdade. Ela podia se considerar filha do meu pai, mas mal me conhecia. Mal nos conhecíamos, como poderíamos nos considerar qualquer coisa além de duas adolescentes que dividiam um quarto insuportavelmente cor-de-rosa? No entanto, optei por não me manifestar a respeito. Que falassem o que quisessem, não me importava.

Mariana se levantou.

— Precisamos ir ou vamos nos atrasar.

E, antes de sair, deu um beijo no rosto da mãe e do padrasto e saiu na frente, andando devagar, dando a entender que estava esperando que eu a seguisse. E foi o que eu fiz, depois de murmurar um “tchau” à mesa, sem maiores despedidas.

*****

Nesse dia eu consegui, enfim, ter um pouco de paz. Sentei no mais extremo canto da sala de aula, bem longe de Mariana e de suas amigas animadinhas. E continuei por lá, sozinha, durante todo o horário do recreio. Fiquei revisando a matéria do dia, tentando entender as minhas próprias anotações feitas durante a aula do tal professor de Matemática. Aliás, tinha constatado que Mariana estava com toda a razão: ele de fato era muito chato. Tive medo de acabar dormindo durante a aula – aliás, pude ver que alguns alunos realmente fizeram isso. Mariana foi um deles, o que não me surpreendia muito.

Ainda tivemos aula de Química e Inglês no mesmo dia. Algumas matérias eu já sabia bem. Outras, me pareciam completamente novas. Era muito ruim ter que trocar de colégio desse jeito, em pleno mês de agosto. Torcia para conseguir me adaptar o mais rápido possível.

Porque, em casa, eu já sabia que essa adaptação seria impossível.

Por falar em casa, quando chegou o horário de voltar para lá, o meu desânimo simplesmente triplicou. Mariana me aguardava no portão da escola, e pensei até em dizer a ela que aquilo não era nem um pouco necessário. Eu já conhecia o caminho e não pretendia me perder nem mesmo fugir. Claro, apenas por eu não ter para onde ir.

— Mamãe me ligou e pediu para passarmos no mercado. Ela precisa de algumas coisas para o almoço — ela anunciou logo que cheguei até ela.

Movi a cabeça em silêncio e saímos juntas, caminhando pela calçada. Fizemos um caminho diferente dessa vez, entrando em uma das ruas transversais à principal, até o tal mercado. Adiantei-me em pegar o cesto para compras. Não por uma gentileza, mas por mera pressa. Imaginei que aquela menina tão pequena e enrolada iria acabar se atrapalhando para levar a bolsa, a cesta e, ainda, ler a lista de compras e apanhar os itens nas prateleiras. Por isso, fui seguindo-a, guardando os alimentos que ela me entregava. Fizemos isso no mais absoluto silêncio. Foram umas quatro ou cinco coisas apenas, que me davam a entender que Márcia pretendia preparar uma lasanha para o almoço.

Observei enquanto Mariana pagava as compras e achei interessante o fato de ela ter cartão de crédito – ou andar com um da mãe, que seja! Nós tínhamos quase a mesma idade, e eu mesma tinha um cartão, mas eu achava aquela garota tão irresponsável que não imaginava como alguém poderia confiar algo assim a ela. Eu não subiria em nem um degrau de uma escada se ela estivesse segurando.

Depois de pagar, saímos do mercado, cada uma de nós carregando uma das bolsas de compras. Mal chegamos à rua e levei um susto quando Mariana, sem mais nem menos, abaixou-se atrás de mim, empurrando-me para me posicionar de forma com que ela ficasse devidamente escondida de sei lá quem ou o quê.

— O que você está fazendo? — eu praticamente gritei, assustada.

— Psiu! Fala baixo, senão ele vai olhar pra cá!

— “Ele” quem, sua louca?

— Me esconde! Não deixa ele me ver!

— Mas... do que afinal você está se escondendo?

Segui os olhos assustados dela, encontrando um garoto do outro lado da rua, mexendo distraído no celular. Ele usava o uniforme de outro colégio, devia ser pouco mais alto que eu e parecia ser um pouco mais velho também. Uns dezessete ou dezoito anos, talvez. Mas não tinha cara de ser alguém perigoso ou coisa do tipo. Bem, como eu sabia que a cara de alguém não era parâmetro para caráter, simplesmente segui andando, devagar, deixando que Mariana continuasse a me usar como esconderijo, até que virássemos em uma rua, onde ele não poderia mais nos ver. Ela soltou um suspiro, enfim voltando a caminhar direito.

— Será que pode me explicar o que foi aquilo?

— Desculpa! — ela choramingou. — Não quis te deixar irritada... de novo!

— O que está me irritando é não entender o que aconteceu agora! Quem é aquele cara? O que ele fez com você?

— Ele não fez nada.

— Certo... Então o que você fez com ele?

— Nada. — Ela suspirou novamente, dessa vez em um tom de lamento. — Infelizmente, nada!

— Então o que foi aquela cena toda?

O rosto dela corou. Percebi que apertava uma das mãos, parecendo tensa ou tímida... ou as duas coisas.

— Sofi... Desculpa, digo... Sofia... Você já gostou de alguém?

Parei de andar e a encarei por alguns instantes, até que a pergunta fosse completamente processada e contextualizada. Senti vontade de socá-la ao entender o que estava acontecendo.

— Você estava se escondendo daquele garoto porque gosta dele?

— Sim... Falando assim, parece meio estúpido. Mas é isso, sim.

— Não parece estúpido. É estúpido. Não acredito que fez essa cena toda por uma bobagem dessas.

Bufei, antes de voltar a caminhar. Ela ficou alguns passos para trás, mas logo se apressou em me alcançar. Achei que meu insulto tinha sido o suficiente para deixá-la arrependida ao ponto de não tocar mais no assunto. Porém, é óbvio, não foi o que aconteceu.

— Você ainda não me respondeu, Sofia!

Arg, o que era aquilo? Mais uma tentativa de aproximação? Qual seria o próximo passo? Irmos para casa tomar sorvete juntas enquanto trançamos os cabelos uma da outra e conversamos sobre garotos? Quanta idiotice!

Ela ainda aguardava por uma resposta, então decidi dar uma resposta a ela, tentando soar natural um assunto que ainda me incomodava bastante.

— É claro que já gostei de alguém. Tenho dezesseis anos. Eu não acredito que você nunca tenha se apaixonado antes!

— Já... Digo, acho que já gostei de outros meninos, mas... Sabe, com ele é diferente!

— Sei... não se escondia com os outros?

— Bem... Eu sou uma garota que se esconde com uma certa frequência. Sabe, sou muito tímida.

Senti vontade de rir. Tímida, a Mariana? No dia anterior, ela tinha ido para a escola com um arco de orelhas de gato. Nesse dia, usava um laço cor-de-rosa enorme preso em sua cabeça com uma faixa. Faltava discrição para a suposta timidez.

— Você é uma das pessoas mais escandalosas que já conheci! — rebati.

— Vai, isso não é verdade!

— Hoje, no recreio, quando olhei pela janela vi você e suas amigas no pátio fazendo uma coreografia e cantando uma música japonesa.

— Não era japonesa, era coreana. — Ah, claro, agora aquilo parecia bem mais discreto! — Além do mais... — ela prosseguiu. — Não sou tímida com as minhas amigas... mas sou com os garotos.

— Ser tímida é um pouco diferente de se esconder atrás das pessoas só porque viu um garoto na rua. Se quer mesmo ter alguma coisa com ele, está indo por um caminho completamente errado.

Ela se calou, pensativa e, por um momento, vivi a ilusão de que conseguiríamos terminar o trajeto até a casa naquele reconfortante silêncio. Claro, novamente voltei a me enganar. O silêncio dela não durou mais do que alguns segundos.

— Não sei se é exatamente isso o que eu quero. Engraçado que todas as minhas amigas já ficaram, namoraram ou até transaram, enquanto eu ainda nem consigo compreender direito o que é gostar de alguém. Eu acho aquele garoto super gatinho e fico muito tímida sempre que ele passa perto de mim, mas não sei se isso é o mesmo que estar apaixonada. Você já teve namorado, Sofia?

De repente, eu me senti de volta aos meus doze anos, conversando com uma amiguinha. Só que eu já tinha dezesseis e aquela garota e eu, definitivamente, não éramos amigas.

— Já namorei, sim. Mas eu não quero falar sobre isso com você.

Disse isso no momento em que chegávamos ao portão de casa. Eu o abri e entrei na frente. Larguei as compras na cozinha e subi as escadas, indo direto para o banheiro, tomar um bom e demorado banho. Era o único momento em que eu, enfim, conseguia ficar um pouco sozinha dentro daquela casa. E odiava ter que gastá-lo pensando no assunto tão desagradável que Mariana teve a infeliz ideia de me lembrar.

*****

Os dias se passaram sem maiores mudanças. Márcia e Ricardo continuavam me tratando com sorrisos e tentando agir como se tudo estivesse como sempre esteve, como se eu não tivesse acabado de perder a minha mãe e mudar toda a minha vida, e como se eu tivesse morado a vida inteira naquela casa.

Ao menos a Mariana estava dando um tempo de me incomodar. Às vezes tentava forçar alguma aproximação, mas eu logo a cortava, tornando a afastá-la. Tive que repetir que não éramos irmãs ainda uma meia-dúzia de vezes, e que pedir para calar a boca e me deixar dormir praticamente todas as noites. Ainda íamos e voltávamos juntas do colégio todos os dias, mas não voltamos a encontrar o tal garoto que a fez me usar como esconderijo ambulante. Ela ainda tentou voltar a falar a respeito dele em outra ocasião, mas logo a cortei, deixando claro que não estava interessada no assunto. E que também não estava a fim de bancar a amiga experiente contando sobre as minhas vivências amorosas.

Com isso, passaram-se duas semanas. Era uma manhã nublada e fria, mais uma em que caminhávamos lado a lado e em silêncio rumo ao colégio. Tudo estava exatamente igual aos outros dias, até que surgiu algo diferente que chamou a minha atenção. Avistei dois gatos na rua. Bem no meio da rua, para ser mais exata. Estavam sentados, um do lado do outro, como dois bibelôs egípcios. Era interessante o fato de um deles ser completamente branco e, o outro, completamente preto. Não tinham sequer uma manchinha no pelo que fosse de outra cor. Os olhos, ao contrário, eram idênticos, de um azul cristalino. Por ser uma rua residencial, o movimento de carros ali não era tão grande assim, mas dois animais tão pequenos corriam riscos naquela situação.

Andei apressada até o meio da rua e, com o pé, toquei delicadamente as costas de cada um dos gatos, murmurando um “passa!”, que fez com que eles se levantassem e, como num movimento ensaiado e coreografado, fossem andando elegantemente até a calçada. Depois pularam em um muro e correram, até sumirem de minhas vistas. Voltei para a calçada, onde Mariana me esperava.

— Gosta de gatos? — ela perguntou, como quem demonstra um grande interesse em um fato tão banal.

— Não gosto de ver animais sendo atropelados — retruquei.

— Eu sempre quis ter um bichinho. Mas o meu pai... digo, o nosso pai... não gosta muito.

Soltei um suspiro cansado, demonstrando que não estava nada animada com a conversa. Então apressei o passo. Ela me seguiu e, dessa vez, fez o silêncio que eu tanto desejava.

O dia na escola foi igual a todos os outros. Passei o recreio sozinha, comendo uma barra de cereal que levei na mochila e revisando as matérias. Gostava de passar as minhas anotações a limpo, de forma organizada. Achava essa a melhor forma de estudar. Em certo momento, fiz uma pausa para descansar a mão e, então, olhei pela janela. Qual não foi a minha surpresa em ver que Mariana fazia o mesmo que em todos os outros dias: suas dancinhas coreografadas ao lado das amigas, bem no meio do pátio da escola. Todo mundo que passava as olhava com curiosidade. Alguns tinham admiração. A maioria, achava graça. E ela ainda tinha a coragem de me dizer que era tímida? Pelo visto, ela e seu grupinho eram a principal atração dos recreios do colégio.

Algumas horas depois, finalmente tocou o sinal da saída. Enrolei bastante para sair, guardando o meu material com toda a calma do mundo, na esperança de que, dessa forma, a Mariana cansasse de me esperar e fosse embora na frente. Enquanto fazia isso, pensei que seria bom arrumar alguma forma de ocupar as minhas tardes. Quem sabe se eu arranjasse um emprego de meio expediente? Além de passar mais tempo fora daquela casa, ainda conseguiria juntar algum dinheiro. Pensava a respeito dessa ideia quando, ao chegar ao portão da escola, vi que todo o meu esforço da enrolação tinha sido completamente inútil. Mariana ainda estava lá, plantada, como sempre, me esperando para que fôssemos embora juntas. Soltei um suspiro cansado e reclamei, quando começamos a andar:

— Você não precisa me esperar todos os dias. Eu já aprendi o caminho para a casa de vocês.

— É nossa casa. E não me custa te esperar. Apesar de você não querer que nós sejamos como irmãs, eu quero cuidar de você.

Não consegui conter uma risada. Aquela garotinha querendo cuidar de mim?

— E por que acha que eu preciso que você, ou qualquer outra pessoa, cuide de mim?

— Sofia, você acabou de perder a sua mãe. Eu estaria arrasada caso isso acontecesse comigo, mas você fica tentando bancar a durona e afastando todo mundo.

O riso morreu entre os meus lábios e voltei a ficar séria. Olhei para a frente e tentei dar um fim ao assunto, mas ela insistiu:

— Eu sei que você mal teve contato com o papai, e que nem conhecia a minha mãe, e muito menos eu. Mas, ainda assim, nós agora somos a sua família. E a gente quer que você fique bem.

— Eu não preciso de nenhum de vocês.

— Todo mundo precisa de alguém.

— Ouviu isso em algum desses desenhos felizes que você gosta de assistir?

— Não, eu aprendi isso com a vida.

— Vida? Você é só uma garotinha mimada e infantil, que vive trancada em algum mundo mágico e inexistente. Você não sabe nada a respeito da vida.

Atravessei para a calçada do outro lado da rua. Enquanto fazia isso, ouvi que aquela pirralha chata ainda insistiu em me chamar, mas ignorei e ela, por fim, pareceu compreender e se calou. Continuamos o nosso trajeto, caminhando em calçadas separadas, em lados opostos, como deveria ser. Meus passos eram apressados, mas eu os reduzi ao notar, ainda longe, uma cena tanto peculiar quanto familiar. Era como um filme a se repetir, já que eu tinha visto exatamente o mesmo poucas horas antes, pela manhã. Lá estavam mais uma vez, bem no meio da rua, os dois gatos de antes. Um branco e outro preto, ambos sentados como duas estátuas, ignorando completamente os riscos que corriam ali.

— Bichos idiotas... — resmunguei.

Decidi que eu não tinha absolutamente nada a ver com aquilo. Se os gatos eram suicidas ou não tinham qualquer senso de perigo, eu não podia fazer nada. Já os tinha tirado de lá pela manhã. Não ia passar o dia inteiro a fiscalizá-los. Eu não conseguia dar conta de fiscalizar corretamente nem a minha própria vida!

Estava bem determinada a passar direto quando um som abrupto chamou a minha atenção. Parei e virei o pescoço para a esquerda, avistando um carro que vinha em uma velocidade bem além da permitida naquela rua residencial. Sem pensar muito sobre as consequências ou o perigo dos meus atos, eu saí em disparada para o meio da rua. Nesse exato momento os dois gatos, talvez também assustados com o barulho, se afastaram, de modo com que eu só conseguiria agarrar um deles. Não daria tempo de salvar os dois. Agindo por instinto, é claro, apanhei o que estava mais acessível, mais próximo a mim. E só depois que cheguei à calçada oposta, já com o bichano a salvo em meus braços, é que vi que era o de cor branca. Senti medo de olhar para trás quando ouvi que o carro passava direto, sem frear ou desviar. O gatinho preto teria conseguido escapar? Minhas mãos tremiam, enquanto eu fazia um grande esforço mental para me acalmar. Gatos são rápidos, pensei. E são espertos também. Não é à toa que há quem diga que eles têm sete vidas, de tão bem que sabem se virar pelas ruas. Porém, aqueles dois não pareciam ser lá tão inteligentes assim. Pareciam dois babacas parados bem no meio de uma rua de veículos. Passei a tremer ainda mais.

Respirando fundo, tomei coragem para, enfim, me virar. Puxei o ar para dentro dos meus pulmões ainda mais profundamente, num misto de surpresa e alívio com a cena que eu encontrei. Na outra calçada, outra pessoa repetia os mesmos gestos que eu. Mariana se virava para mim, também parecendo aflita, trazendo o gato preto entre as mãos trêmulas.

Quando o meu olhar encontrou o dela, senti uma vertigem, como se todo o bairro começasse a girar ao nosso redor. Uma sensação estranha que me parecia muito, mas muito ruim.

Como se fosse um presságio de que alguma coisa estaria para acontecer.

Alguma coisa que mudaria a minha vida ainda mais.

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