Capítulo 4 - Lágrimas Contidas

Na manhã seguinte, Damien retomou seu lugar na varanda, desta vez acompanhado pela irmã.  Ambos olhavam para a praça, e perceberam que o mendigo que Damien tinha ajudado estava sentado no mesmo lugar lendo o livro que ele havia emprestado.

-Liz.

-Diz, pirralho.--sempre chamava Damien de pirralho.

-Nossos pais esconderam alguma coisa de nós durante todo esse tempo.

-E o que era?  Como sabe?--lançou-lhe um olhar curioso.

-Escutei a conversa do papai com nossos avós.  Eu não queria, mas acabei ficando do outro lado da porta escutando tudo...

-O que você ouviu?

-Nada concreto, mas algumas coisas me deixaram sem dormir...  falaram sobre Deuses, visões...  algo sobre não sermos humanos comuns.

-Acha que devíamos perguntar?

-Não acredito que vai adiantar, e além do mais, acho que ficariam chateados se soubessem que fiquei atrás da porta escutando.  Bem, pelo menos papai iria, era ele que não queria nos contar o que há de errado com a gente...  se bem que, eu podia estar no final do corredor que ia ouvir do mesmo jeito, Vô James estava muito nervoso.  Fez papai prometer que vai contar para nós assim que passar essa...  essa...

-Entendi.--ambos ficaram com um nó na garganta que parecia estar sufocando, mas seguraram a emoção. Apenas apertaram a mão um do outro e continuaram contemplando a praça.

O mais estranho era que embora não soubessem, ambos estavam tristes pelo mesmo motivo:  não conseguiam sofrer como as outras pessoas sofriam.  Se preocupavam mais com isso do que efetivamente pela perda da mãe.

Richard, seu pai e Xavier estavam na sala conversando, enquanto sua mãe e sua sogra estavam na cozinha.

-As irmãs de Dri virão?--Perguntou Richard ao seu sogro.

-Claro! Devem chegar no final da manhã.  Você não marcou funeral, marcou?

-Não.  Fiz como vocês me pediram.

-Obrigado, filho.--Xavier tinha o rosto redondo, parecia um Papai Noel, cabelo e barba bem branca, e se não fossem as olheiras e a circunstância estaria sempre sorrindo e brincando, especialmente com os netos. E sempre considerou Richard como um filho que nunca teve.

-Já tive aquela conversa com Richard, Xavier.

-Pai...  outra vez?

-Estou apenas comunicando a ele.--falou calmamente.

-Eu tinha dito ao seu pai que se ele não tivesse essa conversa com você que eu teria.--olhou sério e no fundo dos olhos de Richard. Seu olhar era ainda mais intimidador que de seu pai. No entanto, no instante seguinte, suavizou a expressão e lançou uma piscadela e sussurrou.--mas fico feliz que tenha decidido contar.

Alguma coisa muito incomum acontecia na família.  Era a primeira perda em quase dez anos, quando o marido de uma das irmãs de Adriana faleceu por conta de uma doença rara, e desta vez um membro de sangue havia morrido.  Embora tudo isso estivesse acontecendo, todos estavam sentidos, mas a atmosfera da casa era de serenidade, mesmo entre Damien e Elizabeth.

A chuva descia fina do lado de fora do crematório.  Enquanto a atenção dos outros estava voltada para o caixão de Adriana, Damien e Elizabeth olhavam para a passagem de vidro que dava para o cemitério.

Por consenso, o caixão estava lacrado, ninguém queria guardar uma imagem triste de uma pessoa tão carinhosa e vibrante como Adriana.  Na realidade essa foi uma idéia que partiu dos próprios filhos, o que surpreendeu muita gente.

Não foi chamado nenhum padre para fazer preces, nem ninguém se ofereceu para dizer nada.  Quando o caixão foi levado até a esteira onde o levaria para a fornalha, depois que todos se aproximaram e fizeram suas despedidas, foi a vez de Damien e Elizabeth.

Se aproximaram, um da cada lado, Damien esticou seu braço esquerdo para Elizabeth, olhou no fundo dos olhos dela, ambos emocionados.  Damien colocou um lírio branco em cima do caixão, e Elizabeth sussurrou algo que chamou a atenção de seu irmão imediatamente.  Parecia um idioma diferente.

Xavier e James se entreolharam.

Os irmãos se afastaram do caixão e Richard autorizou o funcionário do crematório a prosseguir.  Elizabeth e Damien não ficaram para ver, saíram do local e foram caminhar pelas vias estreitas entre os mausoléus e jazigos.

-O que foi que você disse lá dentro?--perguntou Damien.

-Mamãe me contou uma vez que tinha inventado um idioma para que só nós duas pudéssemos entender.  Então eu me despedi dela dessa forma.--Liz olhou para o céu.--traduzindo o que eu tinha dito:  Até mais tarde mamãe, cuide de nós onde quer que você esteja, mas...  esteja sempre perto.

-...--Damien ficou em silêncio inicialmente e depois falou.--será que vamos ficar bem?

-Vamos sim.  Mas eu não queria que ela fosse... queria tanto...--desabou em um último choro no ombro do irmão.

Se abraçaram e se emocionaram embaixo de uma escultura belíssima:  um anjo enorme de asas abertas de uma forma que parecia querer envolvê-los...  protegê-los.

Apenas os amigos mais próximos seguiram para a casa da família para um jantar.  Chegando no apartamento, Elizabeth foi com Katherine para o quarto, Damien fechou-se no escritório do pai, virou a alta poltrona de couro na direção da janela e sentou-se lá, tentando ficar o mais isolado possível da “multidão”.  Ficando a cargo do pai deles de recepcionar as pessoas e cuidar para que todos ficassem confortáveis.

Apesar de ser um casal de muitos amigos, somente uns poucos se encaminharam para lá.  O melhor amigo de Richard, Douglas, que também era o médico da família, fez questão de estar presente, mesmo sendo dia de seu plantão em um grande hospital.

-Como você está, meu amigo?

-Não sei, Doug.  Acho que a ficha não caiu, ainda.  Estive tão envolvido com todo o processo que não tive a oportunidade de avaliar o meu estado.  Minha preocupação maior é com as crianças.

-Eles são mais fortes do que imagina, Richard.  Tenha o seu tempo também.  Não tente ser onipotente.

-Obrigado por ter vindo, meu amigo.  Só com você me sinto à vontade para falar sobre qualquer coisa.

-Posso dar uma olhada nas crianças, se quiser.

-Por favor,... Damien está no escritório sozinho, mas tenho certeza que vai gostar de te ver.  Liz está no quarto dela com Kate.

Douglas cumprimentou os pais de Adriana, transmitindo suas condolências e se dirigiu para o escritório.  Ele e Damien tinham muita afinidade.  Bateu à porta e sem aguardar por uma resposta a abriu vagarosamente.

-Posso entrar?--Damien reconheceu a voz, se levantou e abriu um sorriso.

-Tio!  Que bom que veio.  Vi você no funeral, mas não estava me sentindo bem com um monte de gente em volta para conversarmos.--abraçaram-se.  Os dois consideravam-se mesmo tio e sobrinho, não é à toa que Douglas era padrinho de Damien já que Richard era filho único.

-Como vai essa cabeça?

-Confusa...  mas já me sinto melhor.  Sei que vou sentir muita falta da mamãe,... eu só queria que não tivesse acontecido daquela forma.

-Ninguém nunca quer, Damien.  Todo mundo espera morrer bem velhinho e tranqüilo, porém nem sempre Deus quer que seja dessa forma.--a palavra “Deus” martelou na mente de Damien tudo o que tinha ouvido no dia anterior.

-Eu sei.  Queria poder ter feito alguma coisa.

-E o que teria feito?

-...--Damien ficou em silêncio.

-O que aconteceu você não poderia ter evitado e, Damien...--levantou o rosto do afilhado e o encarou no fundo dos olhos.--não é culpa sua.

-Mas eu não acho que tenha sido, Tio.

-Soa como se estivesse se culpando.

-Não... não estou.  Pode ficar tranqüilo.

-Tem certeza?--Damien afirmou com a cabeça.--Que bom!  Se importa se eu te deixar por alguns instantes?  Quero ver como Liz está.

-Claro que não.

Após o evento fúnebre, os convidados foram se retirando aos poucos.  Richard e Douglas ficaram conversando na varanda enquanto seus pais e sogros terminavam de arrumar as coisas.

-Rich, acho que você e as crianças deveriam viajar, aproveitar que faltam ainda algumas semanas para a escola...

-Estive conversando com meus pais e meus sogros exatamente sobre isso, confesso que fiquei tentado em voltar para o Brasil com as crianças por uns tempos.  Tirá-las um pouco desse clima, acho que vai fazer bem para todos nós.

-Por que não une as duas coisas?  Poderiam, talvez, ir para Miami e de lá pegar o barco de seus pais para o Brasil.  Eles ainda têm casa lá, não tem?...--foi interrompido bruscamente por Richard.

-Espera só um instante.  Já volto.--fingiu estar calmo quando saiu da varanda, foi até a cozinha.--Pai.  Elizabeth...  acho que vou precisar de ajuda.

Para não despertar a atenção, andaram apressadamente na direção do quarto de sua filha, no caminho Damien abriu a porta.

-O que está acontecendo?  Liz está bem?--em seguida Virginia chegou perto dele.

-Está meu bem...  vem comigo, fiz aqueles cookies que você tanto gosta.--ela murmurou algo muito baixinho, porém Damien não percebeu.

-Por que então meu pai e meu avô foram para o quarto dela?

-Ela deve ter chamado eles.  Sabe como ela tem pavor de baratas, não é?--sorriu.  E embora Damien não percebesse, Virginia havia sussurrado algumas palavras por entre os dentes.

-Você falou os famosos cookies da Vó Virginia?--distraiu-se por um instante.

-Esses mesmos.--sorriu ainda mais animada.  Mal terminou de responder, Damien correu para a cozinha para atacar os tão adorados biscoitos de sua avó.  Virginia olhou para os lados e suspirou aliviada.--que bom que ainda não perdi o jeito.--falou baixo.

Nesse meio tempo, Richard já havia entrado no quarto de Liz com seu pai.  Ficou olhando para sua filha, que parecia estar pendurada por fios invisíveis, como se fosse uma marionete, com os olhos fechados e completamente imóvel.

-Um católico fervoroso já ia começar a fazer um exorcismo aqui.--brincou James.

-Pai!  Para com isso, não é hora para brincadeiras.--falou sério.

-Richard.  Você sabe o que significa isso, não sabe?

-Infelizmente sei.

-Mais que nunca você precisa ter essa conversa com seus filhos o mais rápido possível.--deu dois tapinhas no ombro de Richard e deu meia volta.

-Espera...  onde você vai...  me ajuda aqui, pai.

-Pra quê?  Você é plenamente capaz de resolver isso sozinho, não precisa de mim.--e terminando a frase saiu do quarto.  Foi até a copa, onde Damien devorava as guloseimas de Virginia.--espero que tenha sobrado pelo menos um para seu velho vô aqui.

-Claro que sim, vô!--terminou de engolir o pedaço que estava em sua boca.--como está Liz?

-Não era nada demais, ela estava sonhando e pensou ter visto uma barata na parede, é só.

-Como ela gritou por vocês sem que eu tivesse ouvido antes?  Na verdade, eu senti... lá no fundo... que estava acontecendo algo com ela.

-Como eu disse... foi apenas um sonho ruim.--Virginia esticou uma caneca para Damien com leite morno.

-Tome, querido. Beba tudo.--Damien sentiu-se leve depois que terminou de beber.

-Oba!  Os famosos cookies da vó Virginia! Obrigado, vovó!--levantou-se e abraçou a avó com tanta animação.  Parecia ter esquecido tudo o que tinha acontecido nos últimos minutos.--Richard chegou e Virginia discretamente fez sinal para que ele e Douglas para que não tocassem no assunto.

-Damien...  o que você acha de ficarmos uns tempos no Brasil?--ele terminou de dar um gole no leite e encarou o pai com uma expressão indecifrável no olhar.

“Acho que estou errando a mão...”--pensou a mãe de Richard.

-Sabe, eu não pensei que fosse dizer isso, mas...-limpou a boca com um guardanapo.--pode ser uma boa idéia.  Mas não quero dar uma resposta agora.

-Acho que seria bom para vocês, estarem um pouco longe disso tudo, recomeçar a vida sem ficar relembrando as coisas ruins que aconteceram nesses últimos dias.--falou Douglas chegando no local.

-Não sei.  Nossa vida está toda aqui, minha escola, nossos amigos.  Mas, entendo o que querem dizer.  Pai,--Damien olhou para seu pai.--se a gente não se adaptar, podemos voltar, não é?

-Sempre.

-Tudo bem,...  eu...  aceito.  Só tem uma coisa, não sei se vocês conseguirão convencer Liz tão facilmente.

-Aí é que você se engana...--falou Richard com um tom de superioridade exagerado.--ela já aceitou.  Tenho uma surpresa para você.

-O que é?--perguntou curioso.

-Vamos todos juntos, isto é, menos Douglas.  Ele irá depois nos visitar...  vamos no barco do vô James.

-Verdade?--perguntou animado olhando para o avô que apenas concordou com a cabeça.--maneiro!--Richard finalmente conseguiu sentir-se relaxado.

-Bem, hoje o dia foi extenuante.  Vocês se importam que eu me retire antes de vocês?--perguntou Richard.

-Claro que não, meu filho.--Virginia chegou perto dele e o abraçou.--vai descansar.

-Quer que eu lhe dê algum remédio para dormir, Rich?

-Não, meu amigo, vou ficar bem.--deu um sorriso cansado para Douglas.

Ele dirigiu-se para o quarto, fechou a porta atrás de si. Sentou no chão, olhando para a cama vazia e impecavelmente arrumada.

“Dri...  o que vamos fazer sem você?”--pensou e as lágrimas finalmente começaram a brotar em seus olhos.--“Me ajuda, onde quer que você esteja!”

Olhou para todos os pertences de sua falecida esposa ainda nos seus lugares, cremes, maquiagem, perfumes, escova de cabelo, e muitas fotos dos filhos e do marido espalhados por todos os cantos do quarto, uma mania que ela tinha.

Depois de tanto esforço para se manter forte para amparar seus filhos, Richard enfim estava chorando pela sua perda.  Agora era a vez dele chorar por Adriana.

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