Rezá, chorá e trabaiá...

          A cada dia eu me apaixono mais e mais por essa gente brasileira. Esse povo comum que – como costumo escrever em minhas crônicas – me encanta, me dá aulas de como viver com sabedoria e que tem sido um manancial de inspiração para mim.

          Lembro-me perfeitamente, que num domingo de outubro, do abençoado ano de 2017, costumeiramente, fui fazer minha caminhada matinal; ao descer minha rua, antes, portanto, do percurso do exercício, passei no mercado municipal, perto de casa, para comprar frutas uma vez que ele fecha mais cedo e eu precisava de mamão e laranja; ao entrar na banca onde costumo comprar, escolhi as frutas, entreguei à dona para pesar e, após explicar a ela que ia caminhar até perto de uma ponte  no final da avenida, onde costumam ir os atletas do asfalto, perguntei-lhe se podia apanhá-las na volta, resultando daí este rápido diálogo, pois, ao me ouvir, a senhora interessadamente comentou:

          - Eu moro bem ali perto, sabe. E acrescentou:

          - O senhor podia caminhar até a ponte do Bezerrão. É o que todo mundo faz. (essa ponte, que atravessa o rio das Mortes, o qual cruza a cidade, fica a uns sete quilômetros de minha casa).

          Então eu esclareci:

          - Vou até lá, sim. Sempre vou.

          A senhora então continuou:

          - Tem 41 anos que eu pego ônibus às 05h15 toda segunda, quarta, sábado e domingo ali no ponto da ponte. Nos outros dias venho de caminhão. A partir do dia 15 vou tomar o ônibus às 04h15! O senhor já pensou, como será então?!

          Não entendendo o que ela queria dizer com aquilo, perguntei:

          - Como assim?

          Aí ela prontamente respondeu:

          - É o horário de verão. No domingo que vem, de madrugada, muda! (aquele domingo seria dia 15).

          Daí por que retruquei:

          - Mas a hora é a mesma, só vai adiantar o relógio em uma hora, a senhora continuará pegando o ônibus às 05h15!

          Nesse momento, ela desancou o governo.

          - Não! O governo não pensa no povo! É um absurdo! Vô acordá mais cedo! O governo não quer saber da gente! Decide e ponto.

          Calmamente, eu ponderei:

          - É que o sol aparece mais cedo, uma hora mais ou menos. A senhora entende!

          E ela:

          - Não! Não entendo. Olha, o senhor não imagina como é a minha vida! Num tem ideia. Num sabe nada! Minha vida é rezá, chorá e trabaiá! E repetiu com força, a voz carregada de múltiplos sentimentos que escondiam suas histórias, suas mazelas, suas alegrias:

          - Rezá! Chorá! Trabaiá! E concluiu:

          - Eu choro, mas sou feliz! E assim vô vivendo...

          Nesse momento, aproveitando a presença de mais duas pessoas na lojinha e o fato de a senhora estar entretida com elas, desejei-lhes um bom domingo, deixei minhas compras e dali saí com a certeza de que tinha recebido uma bela dica para minha crônica daquele fim de semana.

          Assim que tomei o percurso habitual, comecei a escrever esta crônica em minha cabeça. Verdade, meus amigos, isso acontece demais comigo. Recebo o toque, pego um gancho do cotidiano, vejo, ouço algo instigante, daí bate a inspiração e começo a gerar a crônica ou o poema naquele exato momento; sempre foi assim, desde menino quando tracei minhas primeiras linhas de um texto. Muitas de minhas crônicas e poesias nasceram enquanto eu caminhava, dava aula, ia às compras, viajava ou fazia algo diferente do que estar à frente de um papel ou de um computador...

          Então, ao mesmo tempo em que andava, eu me perguntava: por que chorá?! Chorá por quê?! De alegria, será? Pouco provável, isso seria apenas uma teoria. E ela chora, mas é feliz?! Como? De que modo, considerando a emoção contida na sua fala e o que ela deixou transparecer naquele veemente apelo, pareceu-me uma contradição.

          O que estaria por trás dessa frase tão expressiva? Daquele desabafo tão honesto? Que dramas esconde a vida daquela simpática e adorável vendedora do mercado municipal desta São João Del Rei – MG, a cidade dos Sinos?

          O que será que existe nela além daquela aparência tão forte, vigorosa, jovem ainda, apesar de aparentar uns 65 anos? O que a faz chorá, e além de rezá, trabaiá? O quê? Intrigado, eu me fazia essas perguntas e me instigava com elas uma vez que me emocionara com desabafo tão espontâneo e sincero, o qual despertara uma sedenta curiosidade em minha veia cronista.

          Que ambiguidade de sentimentos a leva a chorar, mas ao mesmo tempo ser feliz!? Contraditório, sim! Não?

          Nesse ínterim, veio à minha memória que nas outras vezes em que lá estivera, eu já observara certa tristeza, uma rara e suave melancolia nos seus belos olhos azuis, um olhar distante, perdido, como se esperasse por algo que não viria ou que procurasse por alguma coisa que perdera e que, em vão, tentava encontrar...

          Isso tudo me levou à seguinte constatação:

          Rezar, pois vivemos numa das cidades mais católicas deste nosso Brasil. Aqui a religiosidade é latente. É viva e vivenciada em plenitude. E essa senhora é mais uma dessas pessoas que busca na religião a força para viver.

          Trabalhar também é natural e faz parte da nossa vida e dessa massa de brasileiros que o fazem porque buscam sobreviver ou progredir.

          Daí por que “Laborare est orare”. Trabalhar é orar.

          O que é intrigante é o Chorar! Isso me fascinou. Instigou minha imaginação. Me provocou como poeta e prosador. Não sou psicólogo. Sou professor e escritor. Mas me atrevo a permear de vez em quando pela psicologia humana, portanto, deixo aqui esta pergunta reflexiva:

        Neste mundão de Deus-Pai, tão bonito e gostoso, complexo sim, muitas vezes, assustador, contudo bão demais de se viver – quem e quantos de nós além de trabaiá e rezá – também NÃO CHORA...?!

          - Você, aí, meu caro leitor, por acaso não costuma CHORÁ???

          Vamos refletir juntos, vamos??? Quem sabe continuo o tema – instigante e desafiador – numa próxima crônica, se bem que para isso acontecer... “só o vento sabe a resposta...”

Nota de rodapé:

Considerando que sou linguista de formação acadêmica, profundo apreciador e defensor de nossas variantes linguísticas, mantive a originalidade do belíssimo falar dessa senhora, Dona Lena - que tematizou minha Crônica. Conservei a autenticidade, a beleza, a pureza e a riqueza de sua expressão verbal popular, da qual sou admirador incondicional.

Como professor de Língua Portuguesa por mais de 50 anos, nunca considerei a expressão “erro de língua”. Para mim, por inclinação pessoal e, certamente por ter aprendido com grandes Mestres, entendo essa fala como fato linguístico, como riqueza de nossos diferentes falares, como expressão da cultura e da beleza de nosso idioma. Nunca fui um professor gramatiqueiro. Eu também tenho o hábito de acordá cedo, rezá, às vezes chorá e depois trabaiá...

São João Del Rei, 10 de agosto de 2018

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