Juliet Pierce
Estava dentro do carro, parada no acostamento da noventa e cinco, enquanto a chuva caía lá fora. O som da chuva sempre me acalmava, meu pai costumava dizer: “um banho de chuva pode lavar a alma”. Olhei para o banco de trás por um instante, onde meus pequenos dormiam tranquilos, como se o nosso mundo não tivesse acabado de desabar. Depois... me encarei no retrovisor. O roxo em volta dos olhos ainda estava ali. Assim como as marcas nos pulsos e nos braços.
Uma lembrança dolorosa, de que tantos anos de dedicação sempre foram retribuídos da pior forma, com gritos, t***s, chutes…
Endireitei a postura, apertando o volante com força. A partir de hoje, não sou mais Juliet Monroe. Voltei a ser Juliet Pierce.
Não fazia ideia de para onde ir, mas precisava decidir logo. O dinheiro que meu pai deixou nos sustentaria por um tempo... mas não por muito.
Ouvi a voz do meu menino:
— Estamos chegando, mamãe? Tô com fome.
— Ah, querido... mais alguns minutos e encontraremos uma lanchonete. — Me virei para olhá-lo. — E vamos comer panquecas deliciosas.
— Eu quero hambúrguer com batata frita. — Ri ao vê-lo pelo retrovisor.
— Bem, são oito da manhã, mas hoje vou permitir um delicioso hambúrguer com batata frita.
— Posso tomar milk-shake? — A voz sonolenta da Laurinha ecoou dentro do carro.
— Claro, minha princesa.
Eu realmente precisava de uma pausa. Dirigi a noite inteira. Lembrei de ter passado por uma placa que indicava um motel e uma lanchonete. Seria perfeito para alimentar meus filhos e descansar um pouco.
Alguns minutos depois, chegamos ao local. Para minha surpresa, o motel tinha um ar aconchegante, quase familiar. Suspirei aliviada. Não suportaria ter que ficar com as crianças em um daqueles motéis de beira de estrada cheios de motoqueiros e usuários.
Antes de sair do carro, vesti uma blusa que escondesse as marcas. O olho, mesmo com base, ainda era visível. Respirei fundo, desci e segurei as mãos dos meus pequenos.
Ao entrarmos, uma senhora simpática atrás do balcão nos cumprimentou:
— Bom dia!
— Bom dia! — Respondemos, retribuindo o sorriso.
— Sentem-se, já levo o cardápio.
Assenti, e nos sentamos ao fundo, perto de um fliperama, o que deixou Heitor empolgado. A senhora trouxe o cardápio, fizemos os pedidos e, em poucos minutos, a mesa estava cheia: tudo o que as crianças pediram e, ainda, um bolo de chocolate “por conta da casa”.
Depois do café, as crianças foram brincar, e eu apoiei os cotovelos na mesa, escondendo o rosto entre as mãos. O cansaço era visível, meu corpo gritava mas não era só pela dor física. A tensão… essa era maior ainda. As mensagens de George não paravam. Eu precisava me livrar desse celular.
— Posso me sentar? — perguntou a senhora.
— Sim, claro — respondi, ajeitando-me.
— Seus filhos são lindos — disse ela, olhando para eles, que brincavam como se hoje fosse só mais um dia comum.
— Obrigada — respondi.
— Você denunciou? — apontou discretamente para os meus pulsos, que apareceram quando a blusa escorregou um pouco. Olhei para ela, incomodada com a abordagem direta.
— Me desculpe pela intromissão, querida. Mas vi seu olho, e agora as marcas... só me preocupei com você e com as crianças.
— Agradeço, senhora... — Fiz um gesto para que ela dissesse seu nome.
— Anne — respondeu. — Anne Thompson. Sou a dona do lugar.
— Prazer, senhora Thompson. Sou Juliet Mon... — Hesitei. Ia dizer meu sobrenome de casada, mas respirei fundo e corrigi:
— Juliet Pierce.— Prazer em conhecê-la, Juliet.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que ela retomou:
— Ele sabe onde vocês estão?
Pisquei algumas vezes, tentando controlar o nervosismo.
— Não. Assinei os papéis do divórcio e saí com as crianças no meio da noite.
— E para onde estão indo?
Suspirei. Anne era uma estranha, mas eu estava tão sozinha... Tão exausta. Todos ao meu redor sabiam dos abusos. Mas a família Monroe era influente demais. E, para eles, a violência de George sempre era justificável... sempre perdoada.
— Eu não faço ideia... — respirei fundo. — Minha mãe morreu quando eu era pequena. Meu pai há sete anos. Não tenho irmãos, nem parentes próximos. Muito menos amigos.
— Oh, minha querida... — disse ela, colocando sua mão sobre a minha. Apesar da invasão inicial, não podia negar: o olhar de Anne era acolhedor.
— Quer conversar sobre isso?
— Não tem muito o que falar, Anne... — respondi, já com a voz embargada. — Nos conhecemos na faculdade e nos casamos logo depois. Abandonei minha carreira para ajudar na dele. Um ano depois, meu pai morreu... eu estava grávida do meu menino. Quando ele nasceu, George mudou.
— Eles nunca mostram a verdadeira face no começo — ela disse, indignada.
— Ele dava sinais... Mas eu era apaixonada demais para enxergar. Hoje vejo como fui estúpida.
— Não se culpe. O importante é que agora você viu. E teve coragem. E vai vencer. Sabe como sei disso?
Balancei a cabeça, chorando em silêncio.
Anne olhou para as crianças, sorrindo com ternura.
— Porque você tem um motivo lindo para isso. Quando achar que não vai conseguir... olhe para eles. E lembre-se: por eles, você consegue.
Sorri para ela, foi minha forma de agradecer pelas palavras.
Conversamos por mais alguns minutos. Foi bom desabafar sem ser julgada. Depois, ela nos levou até um quarto. Era estranho como um simples quarto de motel, me trazia a paz e o aconchego que minha casa com George não foi capaz de me proporcionar em anos.
O banheiro tinha um cheiro agradável de lavanda, dei banho nas crianças, e tomei um logo em seguida, por alguns minutos fiquei ali, parada, só deixando a água cair. Era como se aquele banho, aquela água… estivesse levando embora tudo que ainda restava do George em mim.
Saí do banho, as crianças com a atenção voltada na TV. Os deitei na cama comigo, e descansamos um pouco. Anne me ofereceu o notebook da filha para que eu fizesse algumas pesquisas.
Tentei encontrar um lugar para ir. Já estava longe de Charleston, mas George ainda poderia me encontrar.
Estava quase desistindo, quando apareceu uma propaganda, era uma boate, mas não foi o lugar que me chamou atenção e sim onde ela ficava…
— Manhattan… — murmurei para mim mesma.
Fechei o computador, arrumei nossas malas. Ajeitei as crianças no carro. Anne preparou algumas coisas para levarmos.
— Um presente para você — disse ela, entregando um walkman.
Sorri, surpresa.
— Quando tomei a mesma decisão que você, peguei minha filha, entrei na caminhonete... e dirigi. Sem rumo. E no final… eu venci. Por ela. Por mim.
As lágrimas brotaram de novo.
— Então você… — Não consegui terminar.
— Uma sobrevivente reconhece a outra. Trouxe esse walkman comigo. Coloquei na primeira estação de rádio e fui. Agora é sua vez, querida.
Nos abraçamos. Nos despedimos. Entrei no carro, olhei para meus filhos no banco de trás.
— Estão prontos?
— SIIIIM! — gritaram os dois ao mesmo tempo.
Meu telefone vibrou, era mais uma das mensagens de George. Dessa vez decidi responder.
“Acabou cretino!”
Um sorriso surgiu em meus lábios, nunca o respondi, nunca o xinguei, eu nunca agi. Abri a janela, joguei o aparelho nos asfalto. Dei uma última olhada na Anne que sorria para mim com orgulho.
Coloquei os fones, liguei o walkman na primeira estação. Tocava Natasha Bedingfield:
“No one else, no one else
Can speak the words on your lips Live your life with arms wide open Today is where your book begins The rest is still unwritten.”(Tradução…)
“Ninguém mais, ninguém mais
Pode dizer as palavras em seus lábios Viva sua vida de braços abertos Hoje é onde seu livro começa O resto ainda está por ser escrito.”— Vamos lá, Juliet... é hora de escrever uma nova história.