Kellan ficou fora por três dias.
Durante esses três dias, recebi vídeos provocativos enviados por Josia.
Nos vídeos, ele balançava brinquedos infantis, tentando fazer a filhota sorrir. Josia estava sempre encostada no ombro dele, sorrindo com doçura enquanto observava os dois juntos.
Engoli a dor e assisti a cada um deles até o fim.
Havia vídeos dele velando o sono dela à beira do leito, no meio da madrugada. Dele dando sopa com as próprias mãos. Dele embalando a filhota no colo.
E, em todos eles, o olhar de Kellan transbordava carinho.
A cada vídeo assistido, eu sentia como se uma agulha estivesse ferindo o meu coração.
Mas, de repente, percebi que estava indiferente.
Talvez meu coração tenha morrido no instante em que me trancaram naquela câmara fria.
Estava prestes a bloquear Josia, quando o celular voltou a vibrar.
Era uma foto.
Na imagem, ela segurava meu bracelete de jade, girando-o com os dedos, brincando.
“Quer o único objeto que sua mãe deixou? Então venha buscar.”
Levantei-me num pulo. A tontura veio como uma maré escura, consequência da perda de sangue. Mas eu não liguei. Peguei o manto e saí correndo.
No quarto do hospital, Josia embalava a filhota nos braços, cantando baixinho:
— O papai ama tanto a nossa princesa, não ama? Um dia, todo o poder de Alfa dele vai ser seu...
Quando me viu, levantou os olhos. O sorriso dela se alargou.
— Você veio? Sabe, nesses dias no hospital, Kellan não saiu um minuto do meu lado. Nem para patrulhar o território. Ficou aqui, usando o feromônio dele para acalmar a mim e ao futuro herdeiro da alcateia.
Ela fez questão de realçar a palavra herdeiro.
— Onde está o bracelete? — Perguntei friamente enquanto fechava as minhas mãos, enterrando as pontas das unhas nas minhas palmas. Josia estendeu a mão com calma, pegou o bracelete antigo na mesa de cabeceira e o girou entre os dedos com lentidão.
— Você está falando disso aqui?
Ela curvou os lábios num sorriso cruel.
— Vamos fazer assim. Se você, com esse corpo de humana, se ajoelhar diante de mim — a futura esposa do Alfa — e me prestar uma reverência completa, talvez, eu considere devolver.
Comecei a tremer de raiva.
— Não seja tão baixa.
— E se for? — Josia riu, os olhos cheios de desprezo. — Iris, você não passa de uma humana frágil e efêmera enquanto eu carrego o sangue mais puro dos Alfas da alcateia! — A arrogância dos lobos escorria em cada palavra. — Você acha mesmo que tem o direito de disputar o amor do Kellan comigo? Se ajoelhar diante de mim é um privilégio!
Ela fingiu soltar o bracelete.
— Vou contar até três. Se não ajoelhar, vou jogar isso pela janela. — Ameaçou. — Um... dois...
Mordi os lábios com tanta força que quase sangraram. Os joelhos pareciam ter sido preenchidos com chumbo, mesmo assim, caíram pesadamente no chão frio.
Inclinei o corpo. Encostei a testa no piso.
Josia riu alto.
— De joelhos. Você parece mesmo uma cadela miserável.
Levantou-se, olhando para mim de cima como quem contempla a lama.
— Já que você quer tanto, então tome.
Ergueu a mão. Eu me preparei para receber, mas, quando estava a meio passo de mim, ela abriu os dedos.
Pá!
O bracelete caiu no chão e se partiu em pedaços. Josia cobriu a boca com a mão, fingindo surpresa.
— Ops... Que descuido, hein? Nem serve pra segurar isso direito...
Meu corpo inteiro tremia quando eu me lancei pra frente, tentando recolher os pedaços. Mas Josia soltou um grito e caiu para trás, escorregando pela parede como se estivesse ferida.
Nesse instante, a porta foi arrombada com força. Kellan e o Ancião Supremo, Lucien, surgiram na entrada. Os rostos estavam sombrios. Atrás deles, vinham outros anciãos da alcateia.
— O que está acontecendo aqui?! — A voz do Ancião Supremo, Lucien, soou como um rugido. A autoridade de Alfa embutida em seu tom fez meu peito apertar, fazendo-me perder o fôlego.
Josia correu para os braços de Kellan, chorando.
— Kellan, a minha barriga está doendo... Ah, e a filhota! Eu vi a Iris... Ela estava machucando nossa filhota, apertando, batendo...
Kellan imediatamente pegou a bebê nos braços e levantou a roupinha. A pele delicada da filhota estava coberta por marcas roxas e machucados.
— Não... — Sussurrei, em choque. — Eu não fiz isso! Eu nem toquei nela!
Sacudi a cabeça com força. O Ancião Supremo avançou em minha direção, com o olhar cheio de fúria.
Slapt!
Um tapa violentíssimo, carregado com a força de um lobisomem, fez tudo escurecer por um segundo. O zumbido nos meus ouvidos era ensurdecedor, e o sangue escorreu pelo canto da boca.
— Maldita! — A voz dele soava distante, como um trovão abafado. — Foi capaz de agredir uma grávida e até a filhota!
Outro ancião falou, em tom gelado:
— Da última vez, a punição foi leve demais. Guardas! Levem ela à sala de interrogatórios. Vinte chicotadas!
Kellan fechou os punhos com força. Avançou um passo.
— Ancião Supremo!
— Ainda quer defender essa mulher?! — A voz do ancião interveio.
— Ela atacou o seu sangue! Mesmo que você queira fugir com essa humana, isso não muda o fato de que a filhota é sua. Sua herdeira carrega o seu sangue!
Meu corpo tremia. Olhei para Kellan.
Ele continuava parado, com as mãos fechadas ao lado do corpo.
No segundo em que os nossos olhos se cruzaram, eu pude ver a dor, o conflito e o desespero.
Mas quando encarou o olhar implacável do Ancião Supremo, sua expressão lentamente se apagou.
Ele desviou o rosto. Silenciosamente, aceitou a sentença.
Fiquei ali, olhando para o rosto que ele virou para o outro lado. E senti como se meu coração tivesse sido rasgado pelas garras de um lobo.
De repente, o canto da minha boca se ergueu conforme eu ria.
Ri da minha própria ingenuidade por acreditar que ele me levaria embora.
Ri da minha estupidez por achar que promessas podiam pesar mais do que um herdeiro de sangue puro.
Ri da minha ilusão por esperar... que, no fim, ele me escolheria.
Enquanto isso, na sala de interrogatórios…
Os guardas lobisomens me seguraram pelos ombros, forçando-me a ajoelhar no centro da laje de pedra.
Logo, senti a primeira chicotada e então, a minha visão ficou escura por um instante.
Naquele borrão de dor, lembrei do dia em que ele decidiu enfrentar a família para ficar comigo, pedi para terminarmos.
Chovia muito naquela noite. Kellan ficou do lado de fora da minha janela a noite inteira, encharcado, tremendo, sem sair do lugar.
No dia seguinte, ardia em febre, quarenta graus.
Quando saí para vê-lo, notei que ele estava confuso por causa da febre. Agarrou minha mão e murmurou:
— Iris, lembre. Mesmo que eu enfrente o mundo inteiro, você será minha única companheira.
A segunda chicotada me fez morder os lábios com tanta força que senti o sangue preencher minha boca. Recordei dele atravessando meio país em um voo de madrugada só porque, por meio do vínculo de companheiros, senti medo por um segundo...
Então, veio a terceira, a quarta chicotada… até que eu senti cada golpe açoitando a minha alma enquanto suportava a dor da minha pele sendo castigada.
Na décima quinta, ouvi a voz dele do passado:
— Se machucou de novo? Deixa eu lamber que vai passar rapidinho.
Na décima nona, o zumbido nos meus ouvidos ficou mais intenso. Alguém gritava meu nome. Mas eu já não sabia se era real ou se era apenas minha mente se desfazendo...
Perdi a pouca força que me restava na vigésima chicotada e, de repente, minha visão escurecia e o meu mundo silenciava aos poucos.
Antes que a escuridão me tomasse por completo, vi Kellan correndo e me acolhendo nos braços.