Quando Kellan saiu correndo com Josia nos braços, eu ainda estava caída no chão. O sangue escorria morno pela minha nuca, descendo pela espinha.
Observei suas costas se afastando tão apressadas desesperadas e não se virou nem uma única vez.
De repente, eu lembrei que um dia, ele já tinha se desesperado assim por mim.
Naquele tempo, eu tinha acabado de chegar ao território da alcateia do Norte, trabalhando como aprendiz numa pequena loja de ervas. Dividia os dias entre o balcão e os livros, tentando aprender tudo sobre as propriedades das plantas medicinais.
A primeira vez que Kellan me viu, eu estava sendo assediada por uns marginais que vagavam pela rua. Foi ele quem interveio e me salvou.
Mas, no processo, acabou com o braço cortado por uma adaga de prata, o veneno se espalhou rapidamente pela corrente sanguínea.
Por sorte, eu já sabia quais eram os antídotos para esse tipo de toxina. Passei três dias e três noites ao lado dele, sem dormir, cuidando de cada ferida até eliminar completamente o veneno da prata.
Depois disso, Kellan começou a aparecer com frequência em frente à loja.
Lembrei de uma noite em que fiquei até tarde trabalhando. Ele entrou silenciosamente e me estendeu um cartão preto.
— Vem comigo. — Disse ele, com a voz baixa e firme. — Você não precisa mais se matar de trabalhar assim.
Fiquei surpresa por um instante, e empurrei o cartão de volta para ele.
— Não é necessário, senhor. Trabalho duro para viver, e não vejo isso como um sofrimento.
Ele me encarou em silêncio por longos segundos. Depois, tirou um cartão de visita do bolso e o colocou sobre o balcão.
— Me chamo Kellan Wolf. Amanhã, eu volto.
No dia seguinte, ele realmente apareceu. Chegou em um Maybach preto. Quando me viu ocupada, fez um gesto largo com a mão e comprou todas as ervas da loja só para poder jantar comigo.
Nos três meses que se seguiram, o Alfa Kellan cometeu uma série de excessos para me conquistar...
Recusei suas rosas? Diariamente, ele mandava entregar os buquês mais frescos por transporte aéreo, enchendo cada canto da loja onde eu trabalhava.
Falei que não queria andar no carro de luxo dele? Então ele me acompanhou a pé, atravessando comigo as ruas sujas e lamacentas da periferia, só para me levar para casa.
Disse que éramos de mundos diferentes? Ele se agachou ao lado das caixas de ervas cobertas de terra e me ajudou a limpar folhas secas e galhos podres com as próprias mãos.
Durante três meses, ele ficou na loja. Toda vez que eu dizia não, ele voltava uma segunda, uma terceira, uma quarta vez...
Não é que o meu coração não tenha batido mais forte. Na verdade, eu sabia demais. Sabia do abismo entre nós dois e, no fundo, eu não podia e nem me permitia sentir algo por ele.
Até que um dia, Kellan se jogou na minha frente para me proteger do ácido que um comerciante rival jogou em mim. As costas dele ficaram marcadas por uma cicatriz horrível após queimadura.
Ele tremia de dor, suando frio e mesmo assim, virou o rosto para mim e sorriu.
— Iris, agora que fiquei deformado, você vai ter que se responsabilizar por mim.
Toquei a cicatriz com cuidado, o coração em pedaços. Minhas lágrimas caíram sobre as costas quentes dele.
Depois que aceitei ficar com ele, Kellan passou a me mimar como se o mundo fosse pequeno demais para o amor que sentia.
Quando me cortei colhendo ervas, ele chamou um médico particular no meio da madrugada.
Comentei, sem pensar, que gostava de um certo bolinho Ele comprou a confeitaria inteira e me deu de presente.
Quando tive cólicas menstruais, ele ficou acordado a noite inteira massageando minha barriga, cheio de preocupação.
Teve um dia em que caí no chão e ralei o joelho. Foi só um arranhão, mas os olhos dele se encheram de lágrimas.
No caminho até o hospital, as mãos dele não paravam de tremer enquanto ele me carregava no colo. Sorri em meio às lágrimas e perguntei:
— Por que está me levando para o hospital se sou curandeira?
Kellan respondeu:
— Você pode ser curandeira, mas não deve cuidar de seus ferimentos sozinha. Parece só um ferimento externo, mas ninguém sabe se há infecção ou se atingiu o osso.
Ele até insistiu em realizar uma tomografia e chamar o melhor médico para cuidar de mim.
E agora...
Olhei para o chão coberto de sangue e sorri fracamente.
Peguei um táxi e fui sozinha para o hospital.
O médico se assustou com a gravidade dos ferimentos. Correu para me costurar e enfaixar.
Assim que o doutor terminou de fazer o curativo, senti minha cabeça girar e não consegui ficar em pé..
Tropecei ao sair do consultório. Logo em seguida, uma mão agarrou meu pulso com força.
— Iris! — A voz de Kellan saiu carregada de raiva contida. — Josia quase perdeu a filhota e você ainda vem até o hospital arrumar mais confusão?
A testa dele estava franzida quando os seus olhos se estreitaram.
O perfume sufocante da Josia ainda estava grudado em sua roupa.
— Não vim por ela. — Apontei para a faixa na testa.
— Também me machuquei. Não consegui cuidar sozinha.
Kellan ficou imóvel por um segundo. Só então pareceu perceber o cheiro forte de sangue, abafado pelo álcool. A gaze grossa ainda estava úmida.
— Kellan, você prometeu que me levaria com você quando ela desse à luz a filhota. — Olhei para ele, sentindo o nariz arder. — Mas agora, você ainda consegue me enxergar?
Ele franziu ainda mais a testa. O olhar mudou.
Estendeu a mão, querendo tocar meu ferimento.
— O que aconteceu com você?
— Foi você quem me empurrou. — Respondi, com calma, desviando do toque. — Bati na estante. Pra você foi só um movimento. Nada demais, né?
As pupilas de Kellan se contraíram. Só então ele pareceu lembrar da força que tinha usado.
Para um humano, aquilo quase podia matar.
Ele me puxou para os braços, tomado pela culpa.
— Iris, me desculpe. Eu não quis fazer isso. Só fiquei com medo de acontecer alguma coisa com a Josia. Ela está carregando o futuro da alcateia... Se algo desse errado, os anciãos jamais nos poupariam. E teríamos que adiar nossa partida.
Fiquei ali, imóvel no abraço dele, encarando o teto branco acima de nós.
Eu já tinha ouvido aquelas palavras muitas vezes.
— Eu entendi. — Afastei suas mãos. — Vai cuidar dela.
Tentei ir embora, mas ele segurou meu pulso mais uma vez.
— Iris. Acredite. Eu só amo você. Tudo o que fiz foi para que a gente pudesse sair logo dessa prisão.
Ele tocou a gaze na minha testa com extremo cuidado.
— Vou pedir para o mordomo levar você para casa. Evite molhar o curativo.
Soltou minha mão e deu alguns passos. Antes de desaparecer no corredor, completou:
— Vou levar o seu bolo de cranberry preferido quando eu voltar.
Virou-se então para o fim do corredor, rumo ao quarto VIP onde Josia estava sendo tratada pelos melhores médicos dos lobisomens.
Fiquei parada, vendo a silhueta dele se afastar.
De repente, sorri. E as lágrimas caíram.
— Eu não acredito mais... — murmurei para o vazio, e para o meu coração profundamente decepcionado. — Kellan, não acredito em suas promessas.