Decidida

O velório de minha mãe foi a caixão lacrado. O desgraçado havia desfigurado seu rosto, tanta pancada havia lhe desferido. Eu encontraria o responsável. E ele pagaria pelo que havia feito.

Não levaram nada. Apenas uma caixinha que minha mãe guardava no guarda roupas, eu nunca soube o que havia lá dentro...e nunca saberia.

Gabo ficou comigo o tempo inteiro, sempre prestativo, mas cada vez que Luigi se aproximava ele surtava. 

Desde o dia da morte da minha mãe em que havíamos discutido, estávamos distantes. Ele havia falado coisas horríveis para mim, mas eu não estava com cabeça para mais discussões. Mas na verdade estava bem desanimada com ele. No pior momento da minha vida, ao mesmo tempo que se mostrava prestativo, se mostrava paranóico e agressivo. 

O enterro foi marcado pelo meu desespero e o de Camilla. Mais uma vez, quando Luigi me abraçou para prestar condolências notei Gabo rígido. Ele não disse nada apenas pelo momento. Me abraçou também, marcando território. Eu o amava, mas estava quase impossível aturar suas crises constantes de ciúmes.

Após o velório tivemos uma nova discussão e ele repetiu as palavras que havia dito antes, então eu tomei a minha decisão. Não o queria mais. Não era capaz de suportar a dor da perda de minha mãe e a responsabilidade de cuidar da minha irmã, conciliada com os ataques dele.

Mal pude acreditar que ele havia me dito aquilo, e quando soube do desaparecimento de Gael, soube que ele havia feito algo. Porque o amor precisava ser tão injusto e nos fazer sofrer tanto?

Deixei o balé e me dediquei a tentar descobrir quem matou a minha mãe. Não consegui muita coisa e por isso prestei concurso para a Polícia Federal. Foi quase impossível entrar, mas eu consegui. E por conta disso tive que me mudar do morro para outra cidade. Belfort Roxo, foi o lugar escolhido. Eu me instalei em uma pequena casa de dois cômodos, Luigi me ajudou com a mudança e passou alguns dias, até eu me adaptar e começar no novo trabalho. Ele não se conformava por eu ter abandonado o balé.

- Ah Malu, você é como um Cisne Negro, você brilha no palco quando dança. No palco é o seu lugar.

- Meu lugar é tentando prender o desgraçado que matou a minha mãe!

- Você é quem sabe linda. Eu já vou porque tenho apresentação. 

- Até mais meu amigo. E olha, vê se presta mais atenção na Luana...

- A Lu? O que tem ela? 

- Está apaixonada por você bobinho.

- Ué, ela nunca demonstrou nada.

- Ela é tímida, você sabe.

- Ah isso eu sei. E sabe, ela me atrai muito. Meu número de mulher. E seu namoradinho achando que era você...

- Não quero que fale dele. Gabo é um mentiroso. Eu só quero uma coisa dele. Distância.

- Tá bom, não tá mais aqui quem falou. 

Luigi foi embora me deixando sozinha com a minha irmã de dez anos. Eu mal sabia como agir com ela, Mas os dias foram se passando e eu aprendi que era simples. Camila era calma e não dava trabalho. A única dificuldade que enfrentei com relação a ela foram as crises de choro pela falta da mamãe. Ela também sentia falta do pai. Gael era um maldito monstro, mas era o pai dela e ela sentia falta.

Dias atuais...

Me tornei uma grande investigadora da Polícia Federal, havia resolvido casos grandes e era reconhecida em meu trabalho. 

Cheguei no escritório da corporação por volta das nove, horário que costumava chegar sempre. Trazia meu café e me sentei na minha cadeira, colocando a bolsa sobre a mesa, mal levei o copo de café a boca e Demétrio bateu na porta, entrando antes que eu pudesse responder.

- Maria Luiza, surgiu uma nova missão e precisamos de você nela.

Eu sorri. Eu mal descansava de uma missão e já era escalada para outra. A única que não consegui concluir foi o assassinato da minha mãe, mas ainda hoje investigava qualquer pista que encontrasse.

- Qual é a missão dessa vez?

- Acho que se trata da investigação de pedofilia, mas eles acham que tem algo grande por trás. O chefe tá te esperando.

Me levantei e fui com ele até a sala do chefe.

- Bom dia Malu.

Meu chefe era o único além da minha irmã que me chamava pelo apelido de infância, com nada além de profissionalismo ele disse que era mais fácil do que Maria Luiza.

- Bom dia doutor Santori 

- Temos uma missão para você, doutora Marchesi.

- Demétrio me disse. Do que se trata?

- É uma investigação em uma grande escola em São João do Meriti.

- Escola de que?

- De balé.

- Me desculpe chefe, mas eu não vou.

- Por que?

- Coisas pessoais.

- Você abriu mão da sua vida pessoal quando entrou para a PF. Você é a nossa melhor opção, porque foi bailarina. 

- Chefe eu...

- Chega! Não tem discussão.

- Sim senhor...

- Você vai entrar como professora.

- Nem sei se me lembro de tudo.-menti.

Eu deixei de dançar profissionalmente, Mas ainda fazia as performances em casa.

- Eu sei que você lembra.

-Tudo bem chefe...mas é seguro levar a minha irmã?

- Desde que mantenham segredo de suas identidades, sim. E a qualquer sinal de perigo avisem. Sua irmã é uma boa PM, pode ajudar.

Camilla havia ingressado na polícia também. Seu intuito era entrar para o  BOPE, mas ainda era muito jovem para isso. Estava na polícia havia menos de dois anos. Ela também queria desvendar a morte de nossa mãe e achava que o Batalhão seria a chave para isso. 

- Quando partimos?

- Amanhã cedo. 

- Tão rápido?

- Já está tudo pronto, apenas arrume sua mala e de sua irmã. Ela será uma aluna e vocês se conhecerão lá.

- Mais alguma coisa?

- Amanhã receberão os documentos e seus novos nomes. Usem apenas eles, mesmo quando sozinhas. O único que sabe que vocês são policiais é o dono da escola. Mas ele tem pouca ou nenhuma informação sobre vocês, mantenham-no assim.

- Achei que ele fosse suspeito.

- Na verdade foi ele quem denunciou a suspeita. Acha que a escola dele está sendo usada por um administrador. Ele nunca vai lá.

- Entendi. 

- Boa sorte Malu.

- Obrigada chefe.

Desci do carro em frente a minha casa, era uma casa grande e iluminada, havia comprado depois de dois anos na PF. Eu amava viver ali. Era aconchegante e arejado. 

Uma nostalgia me invadiu, sabendo que iria passar tanto tempo fora. Nunca havia me ausentado tanto tempo da minha casa. Desde que nos mudamos não precisei ficar longe. Mas era apenas mais uma missão. Então por que essa sensação de nostalgia?

Por que de repente eu estava lembrando do fatídico dia que me trouxe para cá? A morte da minha mãe, a briga feia com Gabo...coisas que me tornaram quem sou hoje. Não namorei mais ninguém sério depois dele. Meu único relacionamento sério era com a PF. Saia casualmente com alguns caras, mas nenhum me fazia sentir o que Gabo fez. Ele era intenso, romântico e carinhoso. Coisas que nunca encontrei em homem nenhum.

Mas suas grosserias e o seu ciúme destruíram o que tínhamos. Sofri muito por ter que ir, mas ele não me deixou escolha.

Chegamos a São João do Meriti, cerca de sete da manhã. Não era longe. Ficaríamos nos alojamentos da escola, mas não poderíamos chegar juntas, então Camilla se apresentaria três dias depois.

- Daqui você segue sozinha. Aqui estão os documentos.

Ele deu uma pasta para mim e outra para a minha irmã. Abrimos juntas e encontramos certidão, CPF, passaporte, rg...tudo com nomes diferentes. Eu seria Mirella Garcia e minha irmã Deborah Soares. Seus cabelos, que outrora eram lisos e negros, agora se encontravam loiros. Bem mais curtos do que ela costumava usar. Sua pele era morena clara e o novo tom lhe caiu bem.

Já a minha mudança não incluiu um corte de cabelo. Meu cabelo continuava longo, mas meus cachos crespos herdados do meu pai, que eram negros como os da minha mãe, agora exibiam uma cor caramelo. Mudei também meu estilo de roupa. Desde que entrei para a PF, sempre usei roupas formais. Agora usava algo mais esportivo. Algo que nunca foi meu estilo. Nem quando menina. Leaaggins e tops, nunca foram a minha praia. Marcavam demais o meu corpo, me fazendo sentir exposta. Teria que conviver com isso. Pelo menos por enquanto.

Meu chefe passou a nos dar instruções sobre nossa história.

- Mirella dança desde menina, veio de Paris diretamente para a escola. Como você fala francês isso não vai ser um problema. Não que vá ser necessário. Mas nunca se sabe. A história toda está aí na pasta. Já Deborah, está aqui porque seus pais querem assim. Ela gosta de balé mas não acha que a profissão seja uma boa, ela prefere jornalismo. Por isso vai entrar para o jornal da escola. Isso vai facilitar caso precise perguntar por aqui e por ali. Uma jornalista não levantaria suspeitas.

Desci do táxi na frente da escola. Era uma construção imponente com ares de século XIX. Se parecia muito com uma casa de campo da época. O muro e algumas partes da fachada eram cobertos por trepadeiras. O portão simples destoava da grande mansão que guardava. A casa tinha três andares e ainda uma sacada no telhado, que provavelmente era usada para atividades externas. 

O portão estava aberto e eu entrei. Fui diretamente a entrada principal. Havia uma recepcionista e eu me dirigi a ela.

- Olá?

- Bom dia, sou a nova professora...

- Ah senhorita Garcia, o senhor Barreira pessoalmente vai recebe-la.

Aquele nome me deixou apreensiva. Não era possível. Ou era?

- Senhorita?

Pesquei algumas vezes e olhei para a garota a minha frente.

- Sim?

-Me acompanhe, por gentileza.

A garota usava um vestido simples de balé. Poderia ser uma aluna. Não fosse o comprimento da saia. Atrapalharia qualquer movimento de balé clássico. Era muito longa. 

No caminho notei que todos os funcionários se vestiam igual ou semelhante a ela. Ela parou na porta do que imaginei ser o escritório e deu duas batidas. Não esperou ser autorizada e entrou.

- Senhor Barreira, a nova professora chegou.

- Mande-a entrar e pode sair.

Ela deu passagem para mim e saiu. O homem estava sentado na cadeira, de costas, observando as aulas que aconteciam no jardim dos fundos. Então ele se virou. E nos dois arregalamos os olhos e falamos em uníssono.

- Gabo?

- Malu?

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