Capítulos 6 | 7

07/2070 – Dias após o acidente.

O dia amanhecia, mas os raios de sol que passavam pela cortina ainda não eram fortes o bastante para fazer com que Diego despertasse. Assim que o relógio marcou cinco e meia, o despertador o acordou.

Saindo de casa sem tomar café da manhã, seguiu pela rua do valão, que àquela hora ainda estava parcialmente escuro e coberto por uma leve neblina, ele percorria o trajeto ainda sonolento sem se dar conta das coisas que passavam à sua volta. Uma curva à esquerda, a grande reta levava ao ponto terminal. Cerca de cinco pessoas estavam em frente ao ônibus que seria o próximo a partir. Assim que Diego entrou na fila o motorista chegou convidando para que todos entrassem.

A primeira cadeira sozinha logo atrás do motorista era a favorita de Diego, que certamente dormiria durante todo o percurso. Após cerca de sessenta paradas, ele acordou no ponto exato em que deveria se levantar e preparar-se para descer. Seus rituais diários, com o tempo, tornaram sua rotina um tanto robotizada. Naquele ponto, o ônibus já estava completamente lotado. Após pequenos empurrões, ele conseguiu chegar à porta traseira e descer rapidamente a escada.

Em meio ao abarrotado ponto de ônibus em que acabara de descer, Diego andava em direção a calçada para atravessar o aglomerado de gente. Aquele era um dos horários de pico em que as pessoas se dirigiam para a escola ou trabalho, haviam pessoas passando por todos os lados em diferentes direções.

Após chegar em um local em que o fluxo de pedestres não era tão grande, Diego avistou na calçada da ponte que cortava o rio, a figura do que parecia ser um único manifestante. A pessoa usava dreads, uma blusa de manga longa cinza um tanto larga, e calças desarrumadas. Ao seu lado, jogados no chão, havia alguns cartazes feitos de papelão, em suas mãos o rapaz segurava um com os dizeres: 

O verdadeiro Líder expurgará o destino

Era comum ver naquele cruzamento pessoas fazendo publicidade, entregando panfletos, ou segurando faixas com palavras de protesto. Diego prosseguiu seu caminho para a escola onde assistiria à aula de geografia.

O primeiro tempo passou rápido o suficiente para Diego não se sentir entediado. O professor da sua nova matéria favorita acabava de entrar em sala.

— Bom dia, bom dia! Bom dia, turma. – O professor Felipe entrava sempre com animação. Talvez fosse uma tentativa de parecer mais descontraído e conseguir a atenção daqueles que não gostavam tanto da matéria.

Durante toda a aula os olhos de Diego iam do professor para o quadro e voltavam para o professor. Atento a cada detalhe, ele estava determinado em captar um pequeno detalhe durante a explicação e quem sabe fazer uma pergunta que fizesse conseguir outro elogio como na aula anterior.

O que para ele foi uma recompensa por entender o assunto da aula, envolvia na verdade uma camada que estava abaixo do entendimento de grande parte da sociedade. Ele parecia ter ficado tão preocupado com a ordem de não contar o ocorrido para ninguém, que ainda não tinha chegado em sua mente os questionamentos sobre o que tinha realmente acontecido. De onde veio aquele dinheiro? Aquilo já havia acontecido com outras pessoas na escola?

Ao final da aula, ele foi até a mesa do professor.

— Então, Diego, como está? – Felipe parecia cansado após a demorada aula.

— Tudo ótimo, eu tenho algumas perguntas. – Diego tentava buscar a melhor forma de chegar à pergunta certa.

— Certo, imagino que sejam sobre a aula de hoje.

— É... Não. Na verdade, eu queria saber... Quem descobriu aquele circuito?

— Ninguém descobriu, nem descobrirá.

— Mas, se todos soubessem daquilo, se você ensinasse para mais gente, isso resolveria muitos problemas.

— Será que resolveria ou criaríamos maiores problemas?

Uma pequena pausa, Diego estava absorvendo a informação.

— Eu não vejo como isso poderia ser um problema, quer dizer, energia de graça para todo mundo, isso seria muito bom.

— Então, eu te darei uma tarefa para a próxima aula. Hoje na sua casa você vai pensar em dois motivos para continuarmos usando nossas fontes padrões de geração de energia.

Diego não ficou satisfeito com a tarefa.

— Quantas pessoas mais sabem disso?

— O que importa, Diego, é que no organismo ao qual você pertence, cada um tem a sua função. Agora você é um guardião, e em breve você vai descobrir a sua. Lembre-se disso.

A tentativa de descobrir algo mais sobre o circuito e os guardiões acabou por gerar outras tantas perguntas. O professor levantou dando dois tapinhas de despedida no ombro de Diego.

— Te espero na próxima semana.

— Até lá, professor.

O que significava aquilo? “Cada um tem a sua função”. A única função que Diego conseguia ver para si mesmo até então era a de guardar um segredo, e não revelar algo que ele não tinha total dimensão dos impactos que poderia gerar ao se tornar um conhecimento da população.

 

 

 

09/2070 – Dois meses após o acidente.

Passadas algumas semanas desde a chegada dos bebês, Brenda e Marcos já haviam se adaptado parcialmente. Se levantar durante a madrugada já fazia parte da rotina. Quase sempre ao chegarem no quarto os pais percebiam que o responsável pelos choros era Arthur.

Após terem alimentado as crianças, o casal então almoçava. Os momentos de encontro entre eles se restringiam basicamente aos fins de semana, já que Marcos trabalhava e chegava em casa cansado apenas para jantar e dormir.

Os dois comiam na sala enquanto assistiam à uma série.

— Eu estou falando sério. — Brenda tentava falar ainda com a comida na boca. — Acho que não aguento mais uma semana sem a empregada.

— Precisamos terminar a arrumação da casa, quando o quarto de visitas estiver pronto chamaremos uma.

— Por enquanto ela poderia dormir no sofá da sala, ou...

Marcos não esperou Brenda terminar e lançou um olhar malicioso.

— Marcos! – Brenda largava o copo sobre a mesa de centro para dar um tapa no ombro de Marcos como resposta.

— Perdão, foi mais forte que eu.

— Foi péssimo.

— Eu levo as louças. – Ele parecia querer se redimir. A folga no meio da semana não o isentava das tarefas domésticas. Marcos gostava de cozinhar, sempre que conseguia uma folga comemorava testando uma receita nova. Nem sempre dava certo, e Brenda não fazia questão de esconder quando o prato saía errado.

Marcos estava lavando as louças quando a campainha tocou.

Brenda foi atender.

— Boa tarde. Aqui mora o senhor Marcos? – O homem uniformizado apresentava no peito direito o nome Rafael.

— Aqui mesmo.

— Certo, vamos trazer os móveis.

O caminhão caçamba estava estacionado ao final da descida que dava acesso a casa. Brenda acompanhou o entregador até lá. O motorista desceu para ajudar. Os dois carregavam as caixas. Passaram pelo carro da família que estava estacionado no terreno levemente inclinado frente à casa e foram montar os móveis no quarto de visitas.

— Boa tarde, boa tarde. — Marcos havia terminado de lavar as louças e passava pelo quarto de visitas cumprimentando os entregadores. Após indicar onde ficaria a cama e o armário que estavam sendo montados, ele foi para a sala junto de Brenda.

O dia de folga não era sinônimo de completa ausência de tarefas. Marcos usava o notebook na poltrona da sala para dar andamento em seus textos de sua coluna do jornal em que trabalhava. Era necessário estar atento aos canais de comunicação e sempre checando suas fontes à procura de novas notícias dos mais variados tipos. Na maior parte das vezes, o trabalho se resumia em checar as notícias mais relevantes dos últimos dias e escolher uma para comentar de forma mais profunda, dando seu ponto de vista. Isso ele fazia de forma ponderada, não era do seu costume ser crítico. Marcos usava a liberdade que tinha para incluir em seus textos uma dose de humor, usava principalmente essa sua habilidade para criar títulos chamativos, que na maior parte das vezes garantia a visualização do leitor.

— Eu não queria ser chato, mas os gatos estão dando um pouco de trabalho. Será que poderiam tirar eles alguns minutos do quarto?  — Rafael era um homem forte.

— Claro, vamos lá. – Brenda viu que Marcos estava ocupado e se adiantou para ir caçar os gatos.

Ao chegar no quarto ela só constatou o que já imaginava, eram os dois gatos mais bagunceiros da casa.

— Toby e Pit! Tinham que ser vocês dois. — Brenda brigava apontando o dedo e só pelo tom de voz os dois gatos espertos já entenderam que era bronca. Saíram correndo em direção a sala.

— Esses dois são terríveis, não faz mais de duas semanas que atacaram o frango assado que deixei esfriando em cima da mesa.

— Eu só tenho cachorro, são mais carinhosos. — Falava Antônio, o motorista do caminhão que ajudava na montagem.

— Nós tínhamos um cachorro bem velho na casa antiga, depois que ele morreu e nos mudamos para cá, resolvemos ficar com esses três. — Brenda olhava para o corredor a procura do terceiro gato. — Não tivemos coragem de separá-los. – Ela falava com um olhar triste lembrando de quando receberam o trio. — Hope é o mais dócil, um amor. Sempre se esconde quando tem visita em casa.

Ao voltar para a sala ela se deparou com Toby e Pit novamente fazendo arte, agora um em cada braço da poltrona onde Marcos trabalhava.

— Vamos parar com a bagunça, ou hoje vai virar dia de banho para vocês dois. — Marcos expulsava carinhosamente os dois gatos empurrando-os de cima da poltrona.

— Está tudo pronto. — Antônio chegava na sala convidando o casal para ver o resultado. Ambos se adiantaram em direção ao quarto.

— Ficou... bom. — Brenda não conseguia disfarçar a insatisfação de ter sido Marcos quem escolheu a cor dos móveis. Ela queria o armário de madeira envernizada. Marcos deu a palavra final no momento da compra, escolhendo o armário e a cama combinados na cor branca.

— Ficou ótimo, muito obrigado. — Marcos estava realmente satisfeito. — Eu levo vocês até a rua.

— Vamos juntos, querido. — Mesmo insatisfeita, ela tentava ser gentil. 

O motorista já havia entrado, o outro entregador subiu no caminhão dizendo um “Obrigado!”.

O caminhão era ligado soltando um jato de fumaça preta pelo escapamento e fazendo um barulho consideravelmente alto. Provavelmente era um daqueles últimos restantes que ainda não foram adaptados para funcionarem a base de energia elétrica. Além de não poluírem, as frotas mais modernas de veículos eram obrigadas a terem seu funcionamento cem por cento à base de eletricidade. As normas eram rígidas com poluentes e na fiscalização taxavam aqueles que ainda não haviam sido modificados.

Os últimos raios da luz do dia cintilavam em meio às nuvens em um tom alaranjado no horizonte, se misturando a um lilás que trazia junto a si a escuridão no lado oposto do céu.

Eles começaram a partir. Ao avistar a parte traseira, Brenda lia uma placa na parte inferior do caminhão com os dizeres: 

“O verdadeiro Deus prevalecerá”

O caminhão ia ao longe e virava ao final da rua à esquerda. O casal voltou para dentro da casa. Ao pegar seu computador, Marcos verificou que recebeu uma mensagem. Ele anunciou entusiasmado para Brenda que haviam sido convidados para uma entrevista no Diário Terráqueo.

— O que?! Mas... quando? — Ela reagiu surpresa.

— Estão pedindo para a gente confirmar. Eles querem conversar sobre o acidente na maternidade.

— Claro que vamos! — Brenda parecia não acreditar. O Diário Terráqueo era o programa de entrevistas com a maior audiência.

Brenda e Marcos passaram o resto do dia procurando babás disponíveis na região. Havia algumas candidatas que já eram conhecidas de um casal de amigos próximo. Eles precisavam de alguém que cuidasse dos bebês de segunda a sexta. Brenda, que trabalhava em uma imobiliária, ficaria em casa aos fins de semana.

Ambos sabiam que a rotina deles sem uma babá ficaria realmente conturbada. Durante a noite era Marcos quem cuidava dos bebês. Isso, por sua vez, fazia com que ele se levantasse já exausto, pois Arthur acordava sempre durante a noite, era necessário retirá-lo do berço e segurar no colo alguns minutos até que parasse. Sempre o mesmo ritual.

Os choros noturnos de Arthur não eram um incômodo apenas para Marcos. Brenda sempre acordava, pois a casa era relativamente pequena. Do quarto do casal, ouvia-se facilmente qualquer barulho vindo dos outros cômodos. Lino, por sua vez, estava sempre acordado nas visitas do pai enquanto seu irmão chorava. Quem sabe o choro do seu irmão também o acordasse. Talvez os gatos incomodassem Arthur durante a noite. O fato é que Lino, mesmo quando acordava, permanecia em silêncio, como se esperasse alguém chegar para silenciar o choro do irmão.

Se pudesse, Lino mesmo levantaria e daria fim ao barulho que todas as noites o incomodava.

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