“E rompe através do silêncio
Tudo o que sobrou é tudo o que eu escondo.”Despertei na cama, estava encharcada de suor, as batidas na porta pararam. “Eu sonhei tudo?”, pensou aturdida, tais pensamentos jamais haviam passado por minha mente. Uma forte dor de cabeça me atingiu assim que me pus de pé, afastei a cortina de bambu, notei que ainda não havia amanhecido. Descalça fui até a cozinha, Laura estava sentada àmesa tomando uma xícara de café com leite.— Bom dia! — cumprimentou-me sorrindo. — Como passou anoite? Desmaiou antes da sobremesa?— Bom dia, me desculpe. A verdade é que nunca havia bebidoantes, então acho que o vinho era mais forte do que aparentava —confessei, juntando-me a professora para o desjejum.Um copo de café preto sem açúcar, e meio pão francês cortadoforam o suficiente para me despertar de minha primeira ressaca.— Devia ter tirado uma foto sua dormindo sentada, enquanto apequena Mimi mexia em seu cabelo.— Não me lembro de nada disso, que sensação estranha. A únicacoisa que lembro é de começar a tirar os pratos do jantar — expliquei envergonhada e, claro, nada mencionei sobre o sonho com Marcos.Laura riu alto, divertindo-se com a situação.— Pois é, se você bebe frequentemente criará certa tolerância, oupode nunca mais beber, isso fica a seu critério — aconselhou, depois debeber o último gole de café. — Agora se arrume que, provavelmente,Barbie já deve estar no centro de pesquisas, ela madruga sempre.***Barbie estava digitando algo quando, Laura e eu entraramos nasala.— Bom dia, gatas! — recepcionou-nos, sorrindo. — Melhorou? Aressaca foi pesada!— Estou melhor, obrigada.Bárbara usava um jaleco branco sobre um vestido justo na alturados joelhos, scarpin pretos aveludados. Seus cabelos soltos, na altura dosombros.— Esse é um dos motivos pelos quais todos aqui a chamam deBarbie — explicou Laura apontando para os trajes da colega.— Eu sei, eu sei, estou maravilhosa, obrigada. Não sou só umrostinho bonito, meu bem, sabe a fila pela qual passou lá fora? Sãopacientes dispostos a utilizar o composto que desenvolvemos, a notícia seespalhou rápido e quando vocês chegaram estava digitando um e-mail para marcar uma reunião diretamente com Robert Pipermen — defendeu- se em tom indignado.Ouvia as boas notícias, mas seus pensamentos ainda giravam emtorno de Marcos, a foto que havia sobre a mesa de Barbie, tornava maisdifícil esquecê-lo. “Concentre-se, o único objetivo aqui é a pesquisa. Deus,por favor, remova esses pensamentos impuros”, pensei.— Você ainda não parece bem, Ana, precisamos de sua atençãototal aqui. Tome isso aqui — disse Barbie tirando dois comprimidos dojaleco e deixou sobre a mesa.— O que é isso? — indagou curiosa.— Metilfenidato, não é nada pesado, pode confiar em mim —assegurou ela. — A partir de hoje, ele fará parte da sua rotina.Laura foi até a lousa de vidro e notou que haviam modificado suasúltimas anotações, apanhei as pequenas cápsulas sobre a mesa e asengoli. O relógio na parede marcava sete e trinta. Após quase uma hora,já me sentia mais disposta, determinada, os estudos e pesquisas meenvolveram durante horas a fio.— Almoça comigo? — Barbie surgiu ao lado de Ana quemanuseava com cuidado dois tubos de ensaio.Éramos as mais jovens de um grupo composto por químicos ebiomédicos. Notou os olhares invejosos assim que a nova colegapendurou seu jaleco, olhares tão óbvios quanto os de desejo, porémBárbara ignorou ambos.— Depois você continua os testes com os ratos, agora você precisacomer — disse convencendo-me.Obedecendo a colega, vedei os tubos e guardei-os.O almoço com Bárbara foi agradável, cada uma comeu uma fatiade pizza, em um quiosque e Barbie decidiu fazer um pequeno desvio, aopassar em frente ao Boticário.— Podemos dar uma paradinha? Preciso de um novo delineador —implorou ela balançando Ana, como uma criança pedindo um brinquedo amãe.— Tudo bem — cedi ao pedido quase infantil.Uma miscelânea de odores adocicados, frascos de diferentestamanhos, cores e formas. Uma consultora com maquiagem perfeitaabordou-as. A jovem negra vestia uma baby look e calças na cor preta,um lenço dourado de cetim, adornava seu pescoço enquanto sombras emum tom azul harmonizavam seu olhar. Observei os detalhes com atenção,admirando a exótica jovem à sua frente.— Isa, querida! Preciso de um delineador a prova d’água, pócompacto tom pêssego, blush, batom “sorrisos” e outro “surpresa” —solicitou de imediato.— Certo, um instante, por favor — pediu licença e saiu.Bárbara virou-se para mim e indagou, curiosa.— Você nunca usa maquiagem?— É... não tenho muito jeito para isso. — respondeu passando umamecha atrás da orelha, não havia motivo para falar sobre oconservadorismo de minha mãe. “Certamente seria motivo de riso”. —Esta não está entre minhas habilidades. Desde que me lembro, meu focoforam números.Ela sorriu, mexeu no celular dentro da bolsa e olhou as horas.— Temos tempo, só preciso de cinco minutos — anunciou Barbieme colocando em uma cadeira. — A graça do ser humano é a capacidade de mudar e adaptar-se ao seu meio, você é uma graça, querida, mas tem algo em você, uma insegurança, um medo que a cerca, que realmente me intriga. — Enquanto falava, segurou o rosto de Ana e passou uma leve camada de pó... — Nós mulheres sentimo-nos muito mais ambientadas, quando nossa confiança está nas alturas. Agora não pisque. — Passou o rímel com agilidade. — Quero que saiba que pode contar comigo, viu?! Delicada, mas sem cara lavada.Olhei-me no grande espelho à sua frente, e sorri.— É, ficou bom — confessei a ela.A consultora sinalizou, mostrando que o pedido estava pronto.Barbie levou mais alguns itens em uma cesta e foi até o caixa fazer opagamento.— Vamos? — anunciou ela, segurando duas pequenas sacolas.Caminhamos apressadas, à uma hora de intervalo estavachegando ao fim. Antes que entrassem no laboratório, entregou uma dassacolas para mim.— Inteligentes e belas.Lhe abraçei e agradeci o presente sentindo-se mal pelo sonho quetive com Marcos.Uma senhora de cabelos grisalhos se aproximou e abordou-as.— Moças, este é o laboratório que está dando os comprimidos?Nós a acompanhamos até o laboratório para que preenchessem osformulários. Horas mais tarde, Laura e eu ouvimos os gritos de Barbie,que entrou na porta saltitando.— O que aconteceu? — indagou Laura curiosa.— A secretária de Pipermen ligou, informando que ele tem umhorário disponível para hoje, às dezoito horas. Ao que parece, um grupode empresários não conseguiu chegar a tempo, então ela nos encaixou.— E isso é bom? — questionei, sem entender a magnitude daempresa.— Claro, se conseguirmos o apoio deles, teremos uma das maioresempresas farmacêuticas do nosso lado — explicou Barbie entusiasmada.— Venha, tenho um tailleur reserva na minha sala, deve servir em você.Eu a encarei, incrédula.— O quê? Sou uma mulher prevenida. Agora vamos que Pipermentem fama de quem não está acostumado a esperar.Os preparativos foram rápidos, em poucos minutos nós jáestavamos no carro, a caminho do edifício La Cerda, o trajeto demorariamenos de vinte minutos, mas deslocar-se no centro de Porto Alegre,naquele horário, prolongou o percurso. Laura olhava o relógioconstantemente, enquanto agitava o braço esquerdo, com gestoobscenos, amaldiçoando o engarrafamento infernal. Barbie lia algunspapéis em voz baixa ensaiando um discurso, quase improvisado. Dênisestava sentado ao lado de Ana, distraído em seu smartphone jogandoSudoku. Passei as mãos pelas coxas. “M*****a meia-calça”, penseisentindo-se desconfortável com a coceira. “Não passe as unhas na meia-calça, isso puxa fio que é uma maravilha e você não vai querer pareceruma puta pobre, não é mesmo?”, Barbie aconselhou enquanto searrumavam. Notei que a atenção de Dênis estava voltada para minhaspernas, então pigarreou:— Então, Dênis, vi a foto de sua esposa e filha em sua mesa. Sãorealmente lindas, parabéns pela família.Dênis engoliu em seco, passando a mão pela careca deslizando ospoucos fios que resistiram para o lado e respondeu:— Obrigado. — Voltou a olhar para o jogo.***— Boa tarde, viemos para a reunião com o Sr. Pipermen, ficamospresas no trânsito — explicou Laura, justificando o atraso de quinzeminutos.— Boa tarde, senhora Laura Campos, um instante por favor,informarei ao Sr. Pipermen sobre a sua chegada.Eu e Barbie trocamos olhares, nossos pensamentos em sintonia,impressionadas com a exótica beleza da jovem ruiva.— Sr. Pipermen, Sra. Laura Campos e as representantes doConselho chegaram. — A ruiva de olhos azuis intensos parecia ter saídodiretamente do catálogo da Victoria Secrets, usava um vestido cinzaescuro, contrastando com sua pele alva. — Sim, o horário da reunião erameia hora atrás, mas... — A ruiva fez uma pausa, e acatou as ordens deseu chefe. — entendo perfeitamente. Certo, Sr. Pipermen, como desejar.A ruiva colocou o telefone no gancho, escolheu as palavras comcuidado ao notar o nervosismo da professora Laura.— Infelizmente o senhor Robert não poderá atendê-los, massolicitou que reagendasse sua reunião para fevereiro.“Nós estamos em novembro, três meses de protelação por algunsminutos de atraso”, pensou Ana, indignada.— A apresentação será rápida, por favor, precisamos de algunsminutos apenas, entendemos como a agenda do Sr. Pipermen é, mas issoenvolve vidas, 12,7 milhões de pessoas são diagnosticadas com câncerpor ano e 7,6 milhões não sobrevivem, conseguimos desenvolver ummedicamento único que...A ruiva a interrompeu:— Por favor, senhora Laura, o Sr. Pipermen já tomou sua decisão.A agenda para fevereiro inicia a partir do dia 25.Eu não podia acreditar no que acabara de ouvir, senti uma estranhafebre se apoderar de meu corpo, não podia ouvir mais nada daquilo, sabiao quanto Laura havia se dedicado para essa pesquisa. “Sete milhões eseiscentas mil pessoas” a imagem desse número descomunal, corposenfileirados de crianças e adultos a perder de vista lhe vieram à mente. Euprecisava fazer algo! Caminhei em direção à porta, ignorando as súplicasda secretária:— Por favor, senho...Não dei ouvidos, empurrei as pesadas portas com as duas mãos,precisava conseguir “alguns minutos”.Robert Pipermen estava ao celular, olhando pela janela quandosurgi, invadindo sua sala como um vendaval.