Ascensão
Ascensão
Por: Pricila Elspeth
Capítulo 1 – A essência das estrelas

“Feche os olhos e sinta o vento de minhas asas tocar a sua face.”

É noite. Sinto o ar gélido arrepiar minha pele. A chuva cai molhando meu corpo deitado ao chão. Sinto as gotas tocarem minha pele e escorrerem por ela, procurando seu inexorável destino cíclico. Minha visão está turva, manchada de vermelho, mas ainda posso ver as luzes artificiais brilhando acima dos homens tentando enganá-los, dizendo que são estrelas, não caio mais nessa. Vejo além delas, as nuvens carregadas e escuras despejando sobre a Terra seu pranto desesperado, por todos os filhos perdidos e todo o mau recebido, por nossa culpa. Elas se afastam e então vejo luzes piscando de maneira lenta e fraca, são poucas, mas elas estão lá, estrelas vivas de verdade.

As estrelas parecem estar ao alcance de minha mão erguida ao céu, mas quando fecho os dedos, nada posso sentir entre eles. Não, não estou decepcionada, elas existem para serem contempladas e não para serem possuídas. Essa é maravilhosa essência das estrelas.

Meu corpo está arrepiado por conta da chuva e do sopro álgido da noite. Tento me recordar de como tudo aconteceu, de como cheguei aqui, de quem sou, e tudo o que me vem à mente é… Estrelas.

Sinto que às vezes posso chegar até lá. Pertinho delas, olhá-las de igual para igual, sentir o calor de seus corpos e contemplar a beleza incomparável de uma obra de arte criada a partir de poeira universal. Ou será que realmente foi uma divindade que construiu tudo isso? Bem, isso não importa mesmo, não mais. Estou livre desse padrão reflexivo.

As luzes azuis e vermelhas estão piscando rapidamente fazendo com que meus olhos doam, mas não quero fechá-los. Estou recebendo flashes de memórias, e eles são tão claros, tão fortes. Sim. Agora me lembro de como tudo começou, foi na infância.

Eu era apenas uma criança, mas tinha a certeza de que tudo podia ser contestado. Tinha a certeza de que o mundo era mais estranho do que parecia ser. Eu tinha dúvidas as quais os adultos não podiam sanar. Na maioria das vezes, eles nem sequer faziam questão de realmente ouvirem o que eu estava perguntando. Logo cedo aprendi que se você quer uma resposta, precisa criá-la com base nas informações que colhe. Foi o que fiz ainda criança.

Usando minha imaginação e informações fragmentadas que obtive, passei a imaginar minha vida em dois universos paralelos. Em um deles eu vivia minha fatídica e imposta vida comum, no outro assistia à fantasia do que eu queria ser, do que julgava que deveria ser.

E assim, iniciou-se a grande saga de uma jornada dupla rumo a um destino desconhecido e presumivelmente cruel.

Hélio faz parte do meu passado. Mas é tão parte minha quanto sou dele. Experiências divididas são para vida toda. E graças a elas, pude chegar aonde cheguei e conquistar tudo o que conquistei.

Ainda criança, Hélio queria saber de onde vinham os bebês. Quando soube que as mães davam à luz a seus filhos, queria entender o processo, mas como sempre fazem, os adultos o enganaram dizendo que a cegonha trazia os bebês para suas progenitoras, ou que ela comia algum vegetal qualquer e os rebentos iam parar em suas barrigas. Essa segunda explicação sempre vinha acompanhada da pergunta de pôr onde elas saiam. E nunca era respondida.

Hélio resolveu criar uma explicação para si mesmo. Um dia enquanto estava no banho, começou a observar seu corpo e notou que o umbigo era um pouco fundo. Estava tudo muito claro para ele, os bebês saiam das barrigas das mães pelo umbigo.

Aquilo foi realmente genial e reconfortante. Por muito tempo não precisou mais pensar sobre o assunto. Mas aí vieram outras dúvidas. Por que homens tinham barbas e mulheres não, porque as moças usavam batom e os rapazes não, e outras questões a respeito do figurino dos adultos.

A lembrança da sua primeira bronca é muito forte. Ele queria saber como era estar de batom e pó no rosto. Via sua mãe fazer isso o tempo todo quando ia sair, então, no dia em que iria visitar seus primos, nada mais justo do que usar maquiagem para estar bem apresentável. Pois bem! Acontece que, a cabeça dos adultos não funciona dessa forma. Sua mãe entrou no quarto e viu Hélio com a cara toda pálida de tanto pó e a boca borrada com batom vermelho, de início ela se assustou pensando que ele havia se machucado, mas quando entendeu o que estava acontecendo, agarrou-o pelo braço e sacudiu-o com violência gritando com ele, perguntando o que ele estava fazendo com suas coisas.

Hélio não tinha uma resposta agradável para aquela situação. Calou-se e limitou-se a chorar. Sua mãe lhe bateu com um chinelo e o proibiu de tocar novamente naqueles itens. Ele não entendia o porquê. Pensava a respeito, mas não tinha coragem de perguntar, pois, ainda sentia as dores das chineladas. Ficou imaginando que a raiva expressada por sua mãe vinha do fato de aquelas coisas pertencerem a ela e somente a ela. Então Hélio criou mais uma explicação para suas dúvidas. Se quisesse se maquiar para sair, deveria ter suas próprias maquiagens.

Lembranças de duas vidas colidem numa só mente, num momento delicado. Não é tão fácil saber de onde vieram. Mas até que estou indo bem.

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