Peter
Talvez eu tenha subestimado os colégios da Califórnia. Ou melhor, esse em específico. Apesar de ser um lugar cheio de gente rica e metida, de alguma forma eles realmente tentavam fazer os alunos se sentirem parte de alguma coisa. Até agora não tinha encontrado nenhum valentão querendo acabar com meu dia, e isso já era um milagre. Eu até estava começando a gostar das aulas por causa da Lina, minha colega nova, já que sentia muita falta do Liam. Era estranho, porque no meu colégio antigo qualquer opinião que eu desse era tratada como piada sem graça. Aqui parecia diferente. A Lina deixava tudo mais leve também. Ela era aquele tipo de amiga que transforma tudo em brincadeira. Faz piada com o bigode enorme do professor de matemática, com o sapato gigante do menino da história, mas nunca de um jeito maldoso ou desrespeitoso. Nunca me fez uma pergunta inconveniente, e isso era um alívio. O problema mesmo era o Logan. Os encontros com ele no colégio eram um pesadelo. Ele fingia que eu não existia, me obrigou a prometer que não ia contar pra ninguém que morávamos juntos, e parecia ter prazer em me tratar mal. Viver com ele era sufocante. Aquele dia, eu tinha chegado mais cedo. A aula de História foi cancelada, a Lina estava ocupada no laboratório mexendo com um sapo morto, e eu precisava respirar. Precisava de um lugar onde ninguém me olhasse como se eu fosse um ET. A sala de música parecia perfeita pra isso. Eu sempre tive uma ligação forte com música. Desde criança, era o que me ajudava a ficar bem. Meu pai me apresentou a maioria das bandas que eu gosto e sempre me incentivou, e é por isso que pensar nele ainda dói. Mesmo assim, eu continuei. O piano era meu instrumento principal, meu jeito de manter um pouco de sanidade. A sala estava vazia e silenciosa, e parecia até que não fazia parte do colégio. Eu me sentei, tirei um livro de partituras da mochila, coloquei no piano e comecei a tocar devagar. Umas notas de Debussy misturadas com coisas minhas, sons que pareciam estar guardados em mim há muito tempo. Por alguns minutos, foi como se o peso tivesse sumido. Eu estava leve. Mas, claro, não podia durar. A porta abriu com um rangido e ele entrou. Logan. Ele ficou parado me olhando, com aquela cara de dono do lugar. "O que você está fazendo aqui?" Parei de tocar e virei devagar. "O mesmo que você. Usando a sala." "Eu sempre venho aqui nesse horário." "E eu cheguei primeiro." Ele andou até o meio da sala, mãos nos bolsos, cara entediada. "Esse é o meu horário. Sempre foi." "Não tem seu nome na porta." "Você vai brigar por causa de uma sala?" "Não. Só quero cinco minutos de paz." Ele me olhou por um tempo. Longo o bastante pra me deixar desconfortável. "O que você estava tocando?" "Por quê?" "Porque não parecia música." Revirei os olhos. "Engraçado ouvir isso de alguém que toca guitarra como se estivesse brigando com ela." Ele deu mais um passo. Agora estávamos frente a frente, separados só pelo piano. A tensão parecia encher o ar. "Então vamos resolver logo. Você sai, eu fico." "E por que você acha que merece ficar?" "Porque eu sou eu." Eu ri sem humor. "Nossa. Argumento incrível. Palmas pra você." "Peter", ele disse, se inclinando um pouco, os olhos nos meus. "Vai criar caso comigo por causa de um piano velho?" "Se você continuar me tratando como se eu fosse invisível num dia e como se eu fosse um estorvo no outro, eu posso criar caso por muito menos." Ele pareceu surpreso. Os olhos dele vacilaram por um instante. "Quem disse que você é invisível?" "Você nunca fala comigo. Só aparece pra me lembrar que me odeia." "Se eu realmente te odiasse, já teria dado um jeito de te arrancar daqui. Nem estaria conversando." "E o que está esperando?" "Você." O silêncio que ficou depois disso não era pesado nem leve. Era denso, quase sufocante. Minha pele arrepiou e eu precisei respirar fundo. Logan deu a volta no piano, puxou um banquinho, ajeitou os pedais da guitarra no chão e pegou o instrumento. Eu fiquei quieto, observando. "Você vai tocar enquanto eu toco?" "Posso. Se conseguir te ignorar por tempo suficiente." "Vai ser difícil. Você chama atenção sem esforço." Ele ergueu os olhos e me encarou. Só um segundo, mas foi o bastante pra minha garganta fechar. E então ele começou a tocar. Não era delicado, mas era bom. Ele tinha técnica, controle, força. Tocava como quem segura um vulcão prestes a explodir. E isso, contra minha vontade, me prendeu. Tentei acompanhar no piano, mas nossos ritmos não combinavam. Ele acelerava, eu suavizava. Ele subia, eu descia. Era como tentar juntar peças que nunca foram feitas pra se encaixar. "Isso não vai funcionar", falamos juntos. O silêncio seguinte foi quebrado pelo sorriso dele. Um sorriso de verdade, pela primeira vez. E aquilo me abalou mais do que qualquer olhar hostil. "Pelo menos nisso a gente concorda", disse ele. Me levantei. O banco rangeu. "Essa sala não é grande o bastante pros dois." "Concordamos de novo. Isso tá começando a ficar estranho." "Ótimo. Então cede." Ele se aproximou. Ficamos cara a cara, perto demais outra vez. "Você não vai facilitar, né?" "Nunca." Ele abaixou a cabeça, riu pelo nariz e voltou a me encarar. O olhar quente, intenso. "Você provoca." "É só reflexo da sua arrogância." "Talvez." Ele se afastou um pouco. "Essa sala parece pequena hoje." "Você ocupa espaço demais." Ele pegou a guitarra, enrolou o cabo e foi em direção à porta. "Fica com a sala. Toca o que quiser. Mas tenta ouvir, Peter. Você toca bem, mas não escuta nada." A porta bateu atrás dele. Fiquei parado, o coração disparado, as mãos suando. Me sentei de novo e voltei a tocar como se fosse a última vez. E, no fundo, eu não sabia se queria que ele tivesse ido embora… ou que voltasse pra me olhar daquele jeito mais uma vez.