Esther Mendonça
Quando percebi quem estava em minha frente, fiquei simplesmente paralisada. Apesar do meu objetivo o tempo todo ter sido encontrá-lo, vê-lo agora diante de mim era completamente diferente. Ele também permanecia em silêncio me encarando, ainda sem entender o que tinha acontecido. Quando notei as suas mãos em minha cintura me segurando, o pânico tomou conta de mim.
- Tire suas mãos de mim.- Ordenei, a ideia de pensar naquele homem me tocando sabendo que essas mesmas mãos foram usadas para matar a minha irmã me enlouquecia. Ele me olhou confuso, sem entender a minha reação e eu me apressei para me livrar do seu aperto, agarrando suas mãos e as afastando de meu corpo com brutalidade.
- Olha só o que você fez.- Reclamei me ajoelhando e começando a juntar tudo o que tinha caído no chão quando nos esbarramos
- O que eu fiz?- Ele riu com escárnio, desacreditado - Você entra como uma louca na sala, eu te seguro pra você não cair no chão e eu que sou o culpado?-
- Eu não pedi a sua ajuda, e nada disso teria acontecido se o senhor não estivesse aí no meio da porta.-
- Também não teria acontecido se você olhasse antes de entrar daquela forma.- Ele se agacha em minha frente, me ajudando a coletar as caixas do chão
- Eu faço isso sozinha.- Digo dispensando a sua ajuda
- Você é sempre desse jeito?-
- Desse jeito como?-
- Ei, vamos nos acalmar.- Uma segunda voz masculina surgiu e só então eu fui perceber que havia mais alguém ali na sala, um rosto conhecido - Ah, é você.- Ele também parece me reconhecer quando se aproxima e tem uma visão melhor. Era o homem que havia ido até a lanchonete mais cedo e feito os pedido
- Vocês se conhecem?- Victor Hugo perguntou com o cenho franzido
- É a garota nova da lanchonete.-
- Merda.- Deixo escapar o xingamento quando vejo a quantidade de comida perdida - Como vou explicar isso a Ana?-
- Não se preocupe com isso, foi apenas um acidente.- Diego disse compreensivo e ouvi o resmungo de deboche de Victor Hugo
- Algum problema?- Eu o perguntei, o encarando. Sim, haviam milhares de problemas e eu sabia bem disso.
- Apenas volte para a lanchonete, vou pedir pra alguém da limpeza cuidar disso.- Ele disse massageando a sua têmpora, como se toda aquela situação tivesse lhe causado uma grande dor de cabeça
- Como quiser, senhor Ferraz.- Citei o seu nome em tom irônico antes de lhe dar as costas e deixar a sala
Eu tinha estado frente a frente com ele, eu tinha falado com ele, eu tive as mãos dele em mim. O vendo pessoalmente eu só pude ter a certeza de todo o ódio que eu sentia por aquele homem, ódio pelo o que ele fez com a minha irmã e a dor que causou a toda a mimha família. E ali estava ele, vivendo a sua vida normal e de luxo como se nada tivesse acontecido, como se ele não fosse um maldito asssassino. Eu não pude ter outra reação além da que eu tive, não podia simplesmente sorrir gentilmente e fingir que eu não sabia tudo o que ele tinha feito. Eu estava nervosa demais pra enfrentar aquele maldito elevador de novo, então decidi que seria louca o suficiente de ir pelas escadas. Isso me daria mais tempo para pensar no que eu falaria para Ana, e me preparar para ouvir todos os sermões que eu imaginava que ela me daria, e até mesmo perder o meu emprego por isso, era uma possibilidade.
- Que demora foi essa? Você só tinha que levar as comidas.- Ana questionou quando me viu voltar para a lanchonte
Eu não conseguiria responder ela agora no entanto e coloquei as mãos sobre os joelhos, tentando recuperar o meu fôlego perdido após descer tantos andares de escada. Tinha sido uma péssima ideia eu sabia, mais uma de minhas péssimas escolhas e eu não tinha ideia de quanto tempo havia demorado com isso, mas sabia que tinha sido muito, a julgar pela reação de Ana.
- O que você fez, garota?- Ela continuou com o seu interrogatório ao ver a minha situação
- Eu desci de escada.- Expliquei quando finalmente consegui falar
- Você desceu trinta e dois andares de escada?- Perguntou e apenas concordei com a cabeça - Eu não sei de onde você veio, mas aqui temos uma coisinha chamada elevadores. É como uma caixa que leva você para outros andares em questão de minutos.- Ela disse com ironia
- Eu sei o que é um elevador, Ana. Acontece que eu tenho fobia a isso.-
- E como é que você pretende trabalhar em um prédio tendo medo de elevadores?-
- Você mesma disse que eu não deveria frequentar os outros andares, não é?- A questionei relembrando a ordem que ela mesmo havia me dado, ela pareceu refutada quando ficou em silêncio e me olhou com raiva, sabia que eu tinha razão.
Eu estava satisfeita em saber isso também, mas não queria comprar briga alguma com Ana, ela ainda detinha o poder de me manter nesse emprego. Ainda que as minhas primeiras impressões sobre ela não tivessem sido das melhores, eu precisaria me esforçar pra tornar um clima mais amigável, definitivamente eu sabia que ter Ana como inimiga seria uma péssima escolha, então decidi tentar consertar as coisas. Percebi que contar a Ana o que tinha acontecido lá em cima seria uma ideia ruim, eu não conhecia a mulher bem ainda mas já podia ter certeza de qual seria a sua reação. Uma escolha perigosa, pois Diego e Victor Hugo poderiam revelar a verdade a ela a qualquer momento, mas eu preferi confiar que devido a alta ocupação dos dois, eles não trombariam facilmente com Ana, e se isso acontecesse certamente eu era uma pessoa irrelevante demais para eles, para que se lembrassem.
- Não se preocupe, quando for necessário que eu leve mais coisas pros andares de cima eu dou um jeito e levo. Enfrento os elevadores se for necessário, eu fiz isso na ida.-
- Eles gostaram da comida?-
- Adoraram.- Menti na cara dura esboçando um sorriso
- Ótimo, então volte ao trabalho.-
A lanchonete da empresa era bem movimentada, sempre havia algum empresário que exigia ser atendido na mesma hora. Eu além de ser garçonete deveria fazer outros trabalhos, como ajudar na limpeza e na cozinha. As horas se passavam rápidas conforme eu tinha um amontoado de coisas para fazer, coisas que não pareciam ter fim. O trabalho era pesado, mas eu estava feliz e satisfeita de estar aqui, de estar a um passo de conseguir iniciar a vingança que eu tanto esperei que acontecesse. Quando finalmente chegou o final do meu expediente, Ana passou analisando parte por parte da lanchonete, verificando se todos os afazeres tinham sido feitos de maneira correta por mim. Seu olhar era cuidadoso e exigente conforme ela verificava cada pequena parte de detalhe, como se estivesse se esforçando para encontrar algum defeiro, alguma falha. A mulher no entanto pareceu não ter encontrado nada de errado com os trabalhos feitos.
- Está tudo em ordem, espero que consiga manter assim todos os dias.-
- Eu vou.- Garanti
- Bom, então já posso ir.- Ela agarrou a sua bolsa no ombro e retirou dela um molho de chaves, o lançando no ar, em minha direção. Sou rápida em juntar as mão e o agarrar, impedindo que caísse no chão
- O que é isso?-
- Chaves.- Respondeu de forma óbvia e tive que conter a minha vontade de revirar os olhos - Faz parte do seu trabalho fechar a lanchonete todos os dias.- Ela explicou
- Mas...-
- Ah.- Ela me cortou antes que eu pudesse ter a chance de fazer qualquer contestação - Verifique de que tudo está seguro e fechado direito, se algo acontecer a responsabilidade será toda sua.- É tudo o que diz antes de me dar as costas e ir embora, me deixando com todo o trabalho.
Eu tinha passado o dia inteiro atendendo mesas, ajudando na limpeza e na preparação de comidas, fui obrigada a enfrentar o meu medo de elevador, desci trinta e dois andares de escada, fiquei frente a frente com o meu pior inimigo. Tudo isso tinha acontecido apenas no meu primeiro dia de trabalho, e eu tinha conseguido, não ia ser fechar a porcaria de uma lanchonete que iria me parar agora. Usei de minha motivação e determinação para cumprir o que Ana havia determinado, certifiquei cada parte mínina da lanchonete antes de fechá-la e só então voltar para casa. Agradeci aos céus quando finalmente pude chegar em casa e descansar em meu pequeno sofá. Minha tia parecia ter advinhado o momento em que cheguei e vi a tela de meu celular piscar com sua chamada.
- Minha querida, como você está? Como foi o seu primeiro dia? Você está se alimentando direito?- Ela disparava perguntas atrás de perguntas e me senti feliz por ter alguém que se preocupasse tanto comigo
- Eu estou bem, tia. Não se preocupe comigo, eu sei me cuidar e tudo está se saindo muito bem.-
- Ainda não consigo entender o que te deu na cabeça pra simplesmente resolver se mudar pra São Paulo, você deveria estar aqui, Esther, com a sua família.-
- Você sabe porque eu vim, tia Lu. Eu preciso estar aqui.-
- É, sempre a mesma história de precisar.- Ela reclamou e mesmo longe eu podia imaginar exatamente a cara que ela estava fazendo enquanto me dava o seu sermão, o que me dava vontade de rir - Espero que Deus te dê muito juízo, porque parece que está lhe faltando.-
- Estou em meu perfeito juízo, tia.- Ri com os seus comentários - Mas me conte, como estão as coisas por aí?-
- Tudo está bem, acho que tem algo que você deva saber.- Ela parece um pouco hesitante em dizer
- O que é, tia?-
- O Nicolas.- A citação do nome traz um aperto em meu peito, o dia tinha sido tão cheio que por alguns minutos eu acabei me esquecendo de tudo. Mas ouvir alguém falar dele novamente trazia tudo de volta, a dor de ter perdido ele, de ter aberto mão dele.
- Ele está bem?-
- Está sim, mas ele esteve aqui em casa. Veio buscar algumas coisas dele que estavam aqui.-
- Ah, tudo bem.-
- Ele não está bem, Esther. Ficou um bom tempo no seu quarto e de repente começou a gritar, quebrou alguns pertences seus que você não tinha levado.- Relatou e senti o meu coração se apertar ainda mais dentro do peito, eu não queria imaginá-lo naquele estado, não podia
- Ele vai precisar de um tempo pra ficar bem, tia. O melhor que podemos fazer é dar esse tempo a ele.-
- Eu não sei, Esther...-
- Eu estou muito cansada, tia e devo acordar cedo amanhã, me ligue se precisar de algo, ok?-
A dor de ter terminado o meu relacionamento e de ter magoado Nicolas ainda era grande, ele tinha sido o meu primeiro amor e doía saber que não estaríamos mais juntos. As lágrimas tomaram conta de mim por toda a noite, até que o sono e cansaço me venceram e eu acabei adormecendo. Eu estava pronta para mais uma jornada de trabalho, e já estava de volta na empresa logo cedo. Não queria dar abertura para qualquer reclamação de Ana, e decidi que faria tudo perfeitamente. Não esperei que ela me desse uma ordem sequer e tratei de me adiantar para fazer as coisas antes que ela pedisse. Tudo estava na mais perfeita ordem e eu estava satisfeita por isso, apesar desse trabalho ter um objetivo maior, eu tinha um grande apreço pela cozinha e estava feliz que estava aqui. Eu estava focada na limpeza dos balcões e nem dei atenção a quem se aproximava.
- Senhor Ferraz.- O tom de voz entusiasmado de Ana ao cumprimentar fez com que eu erguesse a cabeça na mesma hora quando ouvi o nome citado. Ali estava ele novamente, Victor Hugo Ferraz - Posso ajudar com alguma coisa?-
- Um café expresso está ótimo.-
- Agora mesmo.- Ela sorri para ela se virando para mim em seguida, o aviso silencioso claro para que eu me movesse e assim eu fiz
As minhas mãos tremiam enquanto eu segurava o copo na máquina e preparava o café, eu não imaginava vê-lo de novo tão cedo, muito menos com Ana presente. Se ele dissesse algo, se contasse a ela o que tinha acontecido seria o meu fim.
- Esther disse que os senhores adoraram as comidas enviadas por mim ontem, eu realmente fico muito feliz por isso. Eu mesma fiz questão de selecionar uma por uma.- A mulher se gaba e é nesse momento que o meu corpo se estremece mais ainda, se é que isso era possível.
- Ah, ela disse isso?- Ele me encarou com um sorrisinho e ali eu percebi que estava em suas mãos.