Mundo de ficçãoIniciar sessão
Eu sempre acreditei que teria mais tempo para me preparar.
Mas o tempo tem pouca paciência com promessas. Ele chega, estoura a porta da rotina e muda tudo num único som.
Aquele som foi o portão eletrônico. Aquele rangido metálico que, durante toda a minha vida, significou chegadas cotidianas — entregas, visitas, o motorista voltando do mercado. Hoje, porém, ele trouxe algo diferente: uma presença que eu conhecia desde que aprendi a caminhar entre corredores de luxo e cheiros de limpeza.
Estava na cozinha, ajudando a minha mãe a colocar os pratos na mesa da família Alvarenga, quando ouvi. O suco entornou da jarra que eu segurava por causa do aperto que cresceu no meu peito. Minha mãe levantou o rosto, percebendo meu congelamento antes que eu percebesse o meu próprio rosto pálido à frente do espelho do mundo.
— Ella? — ela perguntou, a voz baixa, cautelosa. — Está tudo bem?
Eu forcei um sorriso que não chegou aos olhos. — Sim, mãe. Só… suco quente, nada demais.
A verdade era outra: algo como um alarme antigo despertou dentro de mim. Uma memória de vozes, de passos largos, de um riso que me pertencia apenas como rumor distante. Noah. O nome bateu como uma onda e arrastou consigo anos inteiros de silêncio.
Ouvi os passos na entrada principal. A voz dele — mais grave, com um sotaque discreto que os anos fora do país tinham moldado — chamou por “mãe” e “pai” com a mesma naturalidade de sempre. Mas naquela naturalidade havia um timbre novo, seguro, de quem volta afirmando direitos.
As mãos me traíram. A faca tilintou na bancada quando caiu. Mamãe estalou os dedos, como quem chama a atenção, e ofereceu um olhar que dizia claramente: controla-se.
Respirei fundo, enxuguei as mãos no avental, e fui levar a jarra até a sala de jantar. Cada passo que eu dava era um esforço para não me desmanchar diante dele — aquele que, durante tantos anos, eu amei em segredo, sem jurar por palavras, apenas por pensamentos e suspiros escondidos.
Noah estava encostado no batente da sala, a mão no bolso do paletó, olhando ao redor como um homem que retorna para reclamar um pedaço do mundo que sempre foi seu. Cristina Alvarenga estava ao lado dele, elegante, impecável; Henrique deixou escapar um “filho” quase envergonhado de emoção. Olívia, minha amiga — a única que sabia do que eu sentia por ele — estava a alguns metros, fingindo desenhar no guardanapo enquanto observava cada reação.
E então nossos olhos se encontraram.
O choque foi imediato, quase físico. Noah parecia maior do que nas lembranças: mais alto, a estrutura do rosto marcada pelo tempo e pela experiência, o cabelo penteado para trás com elegância natural. Os olhos — os mesmos olhos que viam através de mim quando eu tinha treze anos — atravessaram-me como uma lâmina morna. Havia curiosidade ali, surpresa e, se eu não me enganava, uma pontada de reconhecimento que me deixou mole por dentro.
— Ella? — A voz dele soou como se tentasse alcançar algo que estava escondido entre nós.
Meu nome na boca dele foi ao mesmo tempo o maior elogio e a maior condenação. Senti as palavras que nunca disse revolverem as entranhas.
— Oi — respondi, a voz baixa, tentando recuperar um pouco de compostura. — Bem-vindo de volta, Noah.
Ele deu três passos em minha direção, e cada passo aproximava o perfume amadeirado que eu lembrava de lembranças: couro, lençóis de hotel, e um cheiro indefinível que sempre achei provido de distinção. Ele parou tão perto que pude ver cada nuance do rosto dele — as linhas mais firmes, o olhar firme, a barba por fazer que o deixava perigoso e mais homem do que o menino que partira.
— Você cresceu — disse ele, e não foi elogio superficial; foi declaração de surpresa. — Cresceu muito.
— Eu não tive escolha — respondi, tentando rir, mas o som saiu como um suspiro que quase me traiu.
Olívia aproximou-se, sorrindo e já pronta para suavizar o momento. Ela sempre fora a ponte entre nossa vida e a família Alvarenga. Era dela o privilégio de conhecer-me bem o bastante para proteger meu segredo, e dessa vez eu precisava mais do que nunca do seu arume.
— Noah — lançou ela, como se fosse a dona da cena — a Ella ajudou a mãe dela com o café. Está tudo pronto. Você quer que eu traga um chá para você?
Noah virou a face para a irmã e sorriu, mas seus olhos nunca deixaram os meus. O calor que senti foi estranho; ao mesmo tempo doce e ameaçador. Eu devia recuar, desaparecer entre as serventes, fingir que não havia nada além de um dever de casa e noites costurando memórias.
Mas não recuei.
— Não precisa — disse Noah, a voz mais baixa. — Mas obrigado.
Henrique Alvarenga, patriarca, fez um aceno diplomático e arrumou a gravata como se o reencontro fosse apenas mais um protocolo. Cristina olhou para nós — mãe e filha no quadro amplo — como quem pesa destinos. Havia uma tensão entre os pais e a presença dele que eu não soube decifrar ainda. O que eu sabia era simples e brutal: tudo que eu havia guardado por cinco anos, cada suspiro que eu fizera quando ele era apenas um som distante, estava de novo frente a mim, vivo e olhos brilhando.
Ao me virar para servir o suco, senti a mão dele pousar por um segundo no meu ombro. Um toque leve, quase casual, mas suficiente para incendiar o que restava do meu autocontrole.
— É bom te ver — ele murmurou, apenas para mim.
Olhei para a mão dele, depois para seus olhos. Ele sorriu de novo, e naquela curva dos lábios havia promessa e perigo em igual medida.
— É bom te ver também, Noah — respondi, e pela primeira vez em muito tempo não consegui esconder a verdade inteira. Menos por palavras do que por algo que ficou preso entre meu peito e a mão que eu segurava na jarra.
Quando me afastei, senti o mundo inteiro olhando. E, num movimento que eu ainda não conseguia explicar, percebi que nada seria mais simples do que antes. Não com ele de volta. Não com Olívia observando com um brilho cúmplice. Não com Cristina e Henrique costurando expectativas e alianças em cada gesto.
E no fundo, enquanto colocava o suco na mesa e fingia que nada havia acontecido, eu soube que o perigo real nem vinha da família Alvarenga. O perigo real vinha do fato de que, pela primeira vez, alguém que eu amara em segredo olhou para mim e — talvez — me tivesse visto de volta.







