O relógio marcava pouco mais de sete da noite quando Isabella deixou o quarto de Aurora em silêncio. A menina finalmente adormeceu com a boneca Cacau nos braços, depois de um jantar que ela quase não tocou. Ainda não havia troca de palavras, mas já havia uma mudança sutil no ar, menos resistência, menos medo.
Isabela caminhava pelos corredores com os sapatos nas mãos, respeitando o silêncio da casa e os ecos pesados daquela mansão feita de mármore e ausência.
Foi quando ouviu a voz dele.
— Senhorita Fernandes.
Ela parou.
A primeira coisa que sentiu foi o impacto da presença dele. Alta estatura, ombros largos, a postura de um homem acostumado a dominar qualquer ambiente em que entrasse. Usava camisa branca, mangas dobradas até os cotovelos, e calça social escura. O relógio no pulso brilhava discretamente. Mas o que mais impressionava era o rosto.
Ele tinha a beleza áspera de alguém que havia perdido mais do que podia suportar. Os traços firmes, o queixo levemente marcado pela barba por fazer, e os olhos… meu Deus, os olhos azuis escuros, intensos, cortantes como navalhas. Era o tipo de homem que fazia você esquecer como respirar. E ele sabia disso. Carregava a própria dor como quem veste uma armadura. E usava o silêncio como arma.
— Senhor Vellardi — disse Isabela, recompondo-se com educação, mas sem submissão. — Boa noite.
Ele a observava com atenção. Como quem avalia. Como quem testa.
— Venha comigo, precisamos conversar.
Ela obedeceu.
Os dois entraram no escritório. A sala era ampla, escura e organizada. Nenhum objeto fora do lugar. Nem um porta-retratos, nem uma flor. Apenas estantes, móveis de madeira escura e um sofá de couro que exalava silêncio.
Ele caminhou até a escrivaninha e se sentou. Ela permaneceu em pé, à espera.
— Sente-se. — Ele gesticulou, sem emoção.
Isabela se sentou na beirada da poltrona, com as costas eretas, e o olhar firme.
Lorenzo a observou por longos segundos. Longos demais.
— Você não parece uma babá — foi a primeira coisa que disse.
A frase caiu entre eles como um copo se espatifando no chão. Isabella sentiu o calor subir às bochechas, mas não recuou.
— E o senhor não parece alguém que precise de uma — respondeu, com um sorriso educado, mas afiado.
Lorenzo arqueou uma sobrancelha. Estava acostumado a obediência, submissão, silêncio. Aquela garota… não era nenhuma dessas coisas.
— Você é atrevida — comentou, aproximando-se lentamente. Seus passos ecoavam no chão liso, ameaçadores e elegantes.
— Não, senhor. Sou apenas sincera e prática. Duas coisas úteis quando se trata de crianças.
Ele cruzou os braços e inclinou levemente a cabeça para o lado.
— O que você pretende aqui?
A pergunta o surpreendeu a si mesmo. Não era algo que normalmente perguntava. Costumava delegar entrevistas. Mas havia algo naquela mulher que o deixava desconfiado… e curioso.
— Pretendo oferecer o melhor de mim. — respondeu, com calma. — E ajudar sua filha a reencontrar a luz que a dor apagou.
O olhar dele se estreitou. Algo em suas pupilas tremeu, quase imperceptível.
— A dor dela não te diz respeito.
— Com todo respeito… — Isabela respondeu, com voz firme — ela me diz respeito no momento em que me torno parte do cotidiano dela. Crianças sentem. Absorvem tudo. E o que ela sente… é imenso. Quase sufocante.
Houve um silêncio tenso. Ele a observava como se não soubesse se deveria expulsá-la ou aplaudi-la. Isabella, por sua vez, mantinha a compostura com esforço. O coração estava acelerado, mas ela se recusava a parecer fraca.
— E você acha que tem capacidade de lidar com isso?
— Não acho. Sei.
— Arrogância não é uma qualidade.
— Confiança também não é. Mas em excesso, ambas irritam. E eu estou tentando apenas ser clara, senhor Vellardi. Sei que essa casa já viu o suficiente de dor. Mas talvez esteja na hora de alguém lembrar vocês de que é possível respirar sem medo.
Por um momento, Isabella achou que ele fosse rir. Mas não. Ele a olhava como se quisesse arrancar as palavras dela com as mãos.
— E quem disse que queremos respirar?
A pergunta pegou Isabela de surpresa. Mas foi ali, naquele exato instante, que ela viu. Uma rachadura. Um vislumbre. O homem diante dela era feito de ferro por fora… mas o ferro estava enferrujando por dentro.
— Aurora quer — respondeu suavemente. — E, no fundo… o senhor também quer. Só ainda não sabe como fazer isso sem se sentir traindo a dor que carrega.
O silêncio voltou com peso dobrado. Ele deu dois passos para perto, tão perto que Isabela pôde sentir o calor que emanava do corpo dele. Os olhos estavam fixos nos dela, e por um instante, ambos prenderam a respiração.
— Me desculpe… eu não quis ser desrespeitosa.
Lorenzo virou o rosto por um segundo.
— Você não entende. — ele murmurou, mais para si do que para ela. — Você não sabe o que é perder tudo de uma vez só.
Isabella engoliu em seco.
— Não. Eu não sei o que é perder uma esposa. Mas sei o que é perder a mãe aos nove anos e ver o pai se afundar em silêncio porque não sabia como amar sem ela. Sei como é crescer sendo invisível para a única pessoa que deveria enxergar você.
Ele a encarou de novo, e dessa vez… havia algo ali. Um traço de humanidade, de dor partilhada.
— Eu não quero que Aurora cresça como eu cresci, senhor Vellardi. — completou ela, com os olhos úmidos. — É só isso.
— Preciso deixar algumas coisas claras — começou ele, finalmente. — Primeiro: não confunda bondade com permissão. Esta casa tem regras, e eu espero que você as siga.
— Claro — respondeu ela, séria. — Eu compreendo.
— Aurora é minha filha. E será tratada com respeito, paciência… e discrição. Eu não quero drama, nem intimidade forçada, nem excessos emocionais.
— Ela é uma criança, senhor Vellardi. E está ferida. Não se trata de excesso… se trata de empatia.
Ele a encarou com mais força.
— Não me desafie, senhorita Fernandes.
— Não estou desafiando. Estou apenas dizendo que compreendo o que ela sente, porque já vi aquilo antes. E porque me importo.
Lorenzo recostou-se na cadeira e passou a mão pela mandíbula, analisando cada palavra, cada gesto dela.
— Suas funções estão claras. Você cuida dela, organiza sua rotina, suas refeições, seus horários. Mas há limites. Você não é da família. Você não opina em decisões. E não entra nos espaços privados sem ser convidada.
Isabella respirou fundo, mantendo o controle.
— Eu sei meu lugar. Não estou aqui para invadir nada.
— Ótimo. Mantenha isso.
Ele se levantou devagar, caminhou até ela, parando a menos de um metro de distância. Isabella se manteve firme, mesmo com a tensão elétrica no ar.
— Aurora não é fácil. Nem eu. — Ele murmurou. — As outras babás foram embora em semanas. Uma delas chorou no primeiro dia.
— Eu não costumo chorar por pressão. — Ela sustentou o olhar dele.
Lorenzo se inclinou levemente. Seus olhos, de um azul cortante, percorriam o rosto dela como lâminas silenciosas.
— Por que aceitou este emprego?
— Porque eu acredito que posso ajudar. Porque sei que há uma menina pedindo socorro sem usar palavras e porque preciso de dinheiro para ajudar nas despesas médicas de minha avó.
— Eu vou observá-la de perto, senhorita Fernandes. — disse, voltando ao tom frio. — Aceitei a senhorita porque uma amiga me pediu um favor, mas fique ciente, um erro, um deslize… e você estará fora desta casa.
Isabella assentiu, com dignidade e disse:
— Eu não espero confiança cega, senhor. Só a oportunidade de mostrar que mereço estar aqui.
— Fique — ele disse, enfim. A voz baixa, quase um sussurro. — Mas saiba que… minha filha é tudo que me resta.
Isabella assentiu.
— Justamente por isso… eu jamais faria nada que pudesse machucá-la.
Ele a estudou mais um pouco, e então assentiu. Virou-se para ir embora, mas parou à porta e disse, sem olhar para trás:
— O quarto dela é no segundo andar. Marta mostrará onde você vai ficar. Espero que saiba separar sua sensibilidade da sua função. Isso aqui não é um conto de fadas, senhorita Fernandes.
— Eu sei. — Isabela respondeu, com um sorriso breve e dolorido. — Contos de fadas têm finais felizes. E essa casa parece ter esquecido como é isso.
Lorenzo travou o maxilar e por um segundo, o seu olhar vacilou. Mas susirou fundo e encarou novamente Isabella.
— Você não sabe nada sobre mim, nem sobre esta casa.
— Eu sei o suficiente para entender que há dor aqui. E que você a disfarça com silêncio e autoridade.
Ele deu um passo para trás. Afastou-se como se ela tivesse tocado em algo proibido.
— As instruções estão dadas. Você pode sair.
Isabella se levantou com calma. Mas antes de cruzar a porta, virou-se.
— Eu não sou como as outras. Não vim aqui por comodidade e não vou embora no primeiro empurrão. Pode me testar, senhor Vellardi. Pode me analisar de longe, mas uma coisa o senhor precisa saber…
Ela o encarou, firme.
— Eu não tenho medo de gente quebrada. Eu só desisto quando vejo que ninguém mais quer ser consertado.
E então saiu. Sem se curvar, sem recuar.
Lorenzo permaneceu ali, imóvel. Com a respiração um pouco mais pesada. E o nome dela ecoando em silêncio dentro do peito.