Capítulo 02

Bernardo Fonseca

Acreditei que fugindo de todos esqueceria o que me fez querer desaparecer, entretanto, isso não aconteceu. Retornar para o cargo de presidente de uma das maiores empresas de cosméticos do país era inevitável, prolonguei tempo de mais minhas supostas férias. Meu irmão caçula Caleb não conseguia mais dar conta de tudo sozinho. Nunca quis ser o pai do meu irmão, mas precisei assumir esse papel quando nosso pai foi assassinado. Enganei-me ao pensar que tudo pudesse voltar à normalidade porque após o velório do nosso pai, a nossa mãe nunca mais foi a mesma de antes, enlouquecerá, sequer se importava com os filhos.

Lembro-me de um sábado aparentemente igual aos outros, mas que mudaria tudo. Não era o final de semana que pensei que teria em família, porque o que tinha reservado pra mim era uma cena com a qual nenhum filho gostaria de ver. Empurrei a porta do quarto da nossa mãe e senti o cheiro forte de bebida alcoólica, indicando que ela outra vez tinha se entregado ao vício.

Meu coração quase parou quando ouvi gemidos de dor vindo do banheiro. Entrei desesperado no quarto, indo depressa até o banheiro. Acabei me deparando com uma ocorrência que se tornaria meu pesadelo durante anos. O barulho d'água do chuveiro caindo foi o jeito que ela havia encontrado de tentar abafar qualquer grito seu, mas isso não adiantou, pois eu a encontrei. No momento em que olhei para os meus pés, contraí o estômago, porque debaixo dos meus pés tinha uma poça de sangue, o sangue da nossa mãe. Foi como estar na lua e cair na terra em um baque fatal. Minha boca secou e meu corpo inteiro reagiu, senti minha pressão cair. Ela tinha feito uma loucura. Aproximei-me atordoado dela, ela tinha cortado os pulsos com uma tesoura ao lado da banheira,

O quase suicídio dela me obrigou a fazer algo que nunca quis, interná-la, não vi outra saída. Mantê-la sob cuidados em uma clínica foi a única solução que encontrei, mas o tratamento não teve efeito algum no seu psicológico. Todas as visitas eram desgastantes, apesar dela estar em uma das melhores clínicas, não vi melhora alguma. Ela continuava com uma obsessão pelo assassinato do nosso pai, e sua depressão parecia não ter fim.

Eu queria que ela esquecesse as lembranças daquela trágica madrugada, em que nossa casa foi invadida e ele levado. Dois dias depois encontraram seu corpo em um córrego, ficamos sabendo da notícia por uma emissora de televisão. Desde aquele dia nunca mais vi canais de tv aberta. Foi uma exposição escandalosa para nossa família, não importaram-se com a dor que sentíamos. Todas as investigações apontavam apenas para uma pessoa, um dos sócios da nossa empresa de cosméticos. Ele não confessou ser o mandante da execução, no entanto, isso não impediu sua condenação. Pagamos um alto valor em dinheiro para garantir que a justiça fosse feita.

— Em casa novamente. — suspirei, caminhando até à vista mais privilegiada do quarto, uma grande vidraça com vista para o jardim.

Senti saudades da minha inocência de garoto que acreditava em um futuro incrível ao lado dos seus pais. Aquele tempo bom não voltaria nunca mais, tudo que acreditei ser quando crescesse foi um fracasso. Enfiei as mãos nos bolsos da calça social de cor preta.

Minha árvore favorita continuava de pé, mas quem ajudou plantá-la não estava mais entre nós.

Foram os melhores anos da minha vida...

Papai disse que tinha uma surpresa e que esperássemos no jardim, Caleb corria descalço pela grama, brincando com seu carrinho vermelho enquanto eu pensava o quanto era absurdo um carro voar.

— Idiota, carro não tem asa! — resmunguei, indignado com a burrice do meu irmão.

— Bernardo, não fale assim com o seu irmão!

— Carro não voa, papai! — expliquei.

O sorriso do nosso pai era seu cartão de visitas, ele quase nunca ficava bravo, até mesmo nos momentos de dar bronca ele não conseguia ficar sério muito tempo.

— Foguete também não tem asa filho, ainda assim, ele voa lá pra cima. — sua explicação fez todo o sentido naquela época.

— Eca... — resmunguei, vendo meu irmão passando a língua nos pneus do carrinho.

— Caleb, não faça isso, é feio! — papai disse, indo em sua direção. Meu irmão continuou com a língua em um dos pneus do carrinho até que nosso pai tomasse de suas mãos o brinquedo.

Ele saiu correndo, com certeza, estava indo chorar no colo da nossa mãe.

— Somos só nós dois agora. — assenti, dando meu melhor sorriso de garoto de dez anos.

— O que são? — perguntei, aproximando-me para ver melhor a palma de sua mão, que estava com umas bolinhas marrom que mais pareciam fezes de ovelha.

— Um presente. — respondeu, pegando minha mão e colocando as bolinhas estranhas.

— Que presente sem graça, pai! — reclamei com desgosto.

— São sementes de Jacarandá Mimoso.

Naquela época não entendia o sentido de plantar uma árvore, contudo, ela havia tornado-se uma das melhores lembranças com meu pai.

Ficar um ano e três meses longe de tudo, não amenizou meu martírio de ter passado por algo tão traumático. Nunca trouxe problemas para casa, muito menos falei com alguém sobre o ocorrido. Simplesmente de uma hora pra outra decidi ir embora sem aviso prévio, apenas quis fugir de tudo e todos. Joguei todas as responsabilidades da empresa em Caleb, sem sequer consultar sua opinião. Irresponsabilidade? Sim, com certeza! Quando a bomba caiu nos ouvidos de todos, passei a ser incomodado com ligações persistentes, precisei mudar de número, porque não queria falar com ninguém que não fosse meu irmão. Ele nunca soube a verdade e era melhor assim, não queria que ele me enxergasse diferente por causa de um erro meu.

Retornar para o Brasil deixou claro que certas coisas eram impossíveis de não ser revividas. Eu não era o mesmo Bernardo que saiu do país para tentar suportar a dor. O novo Bernardo voltou tão cheio de culpa e arrependimento.

— Você voltou mesmo. — Caleb disse, batendo a porta com força. Discrição era tudo que meu irmão não tinha, talvez fosse um caso perdido.

— Caleb, tem ido trabalhar desse jeito? — questionei. Ele não desistia de usar seus ternos cafonas. Ele era um tanto quanto ingênuo demais, não percebia que os mesmos que elogiavam seu estilo esquisito na empresa, riam dele pelas costas.

— Bom te ver também, Bernardo. — respondeu, dando seu sorriso metálico por conta do aparelho dentário.

— Tira esse terno cafona da minha frente. — resmunguei de cara feia. Ele era meu irmãozinho, não queria que ninguém ofendesse ele. Apesar dele ter barba no rosto e vinte e sete anos, continuava sendo aquele menino bobo que costumava mastigar os lápis da escola, pelo menos pra mim era assim que enxergava-o.

— Pensei que voltaria menos mal-humorado. — Caleb, me abraçou forte dando um tapinha nas minhas costas antes de afastar-se.

— E eu pensei encontrar um irmão, bem, menos escandaloso. — falei, gesticulando com as mãos.

— Bem-vindo de volta ao lar! — revirei os olhos com a dancinha desarticulada que ele fez.

— Não faça mais isso! — reprovei lhe dando um tapa de leve no rosto. — Você pode evitar fazer esse tipo de coisa na minha frente? Caleb, dança nunca foi seu ponto forte.

— Qual é? No fundo você sente inveja desse meu jeito espontâneo. — disse ele, arqueando a sobrancelha esquerda.

— Inveja? Quem sempre cuidou de você? — perguntei, pressionando seu ombro com meu dedo indicador e continuei. — Eu ajudei trocar suas fraldas e apanhei por sua causa na escola enquanto defendia você dos valentões!

— Droga! Não posso argumentar contra fatos. — resmungou, franzindo a testa.

— Você nunca foi o mais inteligente da família. — debochei.

— É, assim então? Quem foi que fugiu para Portugal pra curtir férias?

— Não foram férias... — rosnei, rangendo os dentes.

— Eu sei que não. — disse recuando ao perceber que me deixou alterado. — Talvez nunca me conte a razão de ter fugido daquele jeito, mas saiba que independente do que seja, somos irmãos e estarei sempre do seu lado.

Odiava aquele sentimentalismo dele, me sentia tão pequeno.

— Melhor você ir embora, estou cansado. — menti descaradamente, coçando a sobrancelha direita por conta do nervosismo.

— Cara, não precisa fingir ser forte o tempo inteiro. — desviei meu olhar do seu. — Não vou mais insistir, você acabou de chegar ao país. Bom descanso, Bernardo.

Quando meu irmão saiu pela porta comecei a chorar. Por mais que eu quisesse falar com alguém do que tanto me machucava, optei pelo silêncio. Talvez o trabalho tirasse um pouco da minha cabeça tudo que tanto tirava meu sono. Logo todos notariam que não era o mesmo de antes, aquele outro não existia mais.

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