Capítulo 4 – De Volta ao Cativeiro

Um vento forte passou a soprar naquela escuridão que era iluminada apenas pela fraca luz de algumas fogueiras propositalmente preparadas e acesas para aquela ocasião, parecia que Deus ou alguma outra força da natureza se entristecia ao ver o sofrimento daqueles inocentes. Os mais supersticiosos comentavam que os espíritos cavalgavam de um lado para o outro em seus animais de sete cabeças prometendo castigo aos carrascos. De suas narinas saiam fogo, enxofre e fumaça, testemunhando a crueldade que ali se fazia e no momento certo iriam punir com a morte os responsáveis pelas injustiças cometidas.

 Os negros africanos acreditavam e adoravam diversos tipos de deuses, espíritos que viviam noutro plano e que chamavam de Orixás. Totalmente supersticiosos, eles viam mistério em tudo e atribuíam ao desconhecido suas sortes e destinos. Estavam certos de que a vingança cairia sobre os Dantas em breve. O frio do sereno castigava ainda mais seus corpos expostos debaixo do luar e a escuridão insistia em demorar a passar, foram horas de humilhações, dores e sofrimentos diante dos olhares impotentes dos que como eles se viam incapacitados para livrá-los das amarras do tronco.

Suas vestes sujas e partidas pela selvageria a que foram submetidos já não tinham quase utilidade e suas vergonhas por pouco não foram vistas. No casarão, Joana e a mãe, bem como as demais criadas lamentavam o estado deplorável em que ficou a menina que um dia correu pela casa e era seu xodó e gora se tornou uma escrava condenada aos horrores do tronco.

Tanto apanhou que suas costas ficaram em completa desgraça. Permanecia lá fora, amarrada pelos braços erguidos por cordas grossas e certamente cansada por tanto tempo em pé, lado a lado de seu fracassado salvador. E quem seria aquele negro que veio junto com ela? Qual a ligação que existiria entre eles para que fossem merecedores do mesmo castigo? Elas não conseguiam encontrar outra lógica a não ser a que dizia serem um casal apaixonado, talvez tenha sido aquela a razão de Luz ter fugido, teria ido ao encontro de seu grande amor. Mas, se assim fosse, como se conheceram? Porque ele só agora aparecia na fazenda?

O pior de tudo é que estas mesmas indagações fazia o malvado Barão, enquanto bebia uma forte dose de cachaça feita num dos seus muitos engenhos e fumava num cachimbo antigo, mas de boa marca. Sua inquietação o tornava ainda mais irritado e sussurrava pequenas frases, maldizendo o dia em que aquela negra infeliz colocou os pés na fazenda e encantou seus olhos. Não foi apenas seu irmão mais velho quem a havia desejado, ele também a quis mais que qualquer outra. A diferença é que tinha por ela sentimentos, ele a amou desde o início. Coisa terrível até de se pensar, pois se tal verdade fosse revelada seria sua maior vergonha.

 Como poderia um homem na sua posição estar apaixonado por uma negra? Quando soube do que fez a ela seu irmão caçula, de como a estuprou, ficou indignado. Festejou em secreto sua morte pelos negros no canavial. Achou ser merecida a vingança, não passava de uma criança. Apesar de seu jeito grosseiro e feroz possuía forte sentimento por ela, e poderia ter apoiado a atitude tomada por seu pai, ao vingar sua desonra, mas precisava manter a pose de autoritário para continuar tendo todos debaixo de suas ordens.

 O antigo Barão sempre foi mais inclinado ao filho mais moço e teria deixado a ele todos os seus bens caso ainda estivesse vivo, por essa razão sentia-se aliviado que tivesse sido morto. O álcool lhe entorpecia a mente, mas não impedia que os pensamentos o levassem para bem longe, num passado onde seu coração ainda não tinha sido contaminado pelo ódio e amargura. Um pobre diabo, envolto com suas frustrações, seus fracassos e suas decepções.

Só havia amado uma vez na vida e ainda por cima tratava-se de uma negra, algo abominável diante dos olhos de uma sociedade escravocrata e preconceituosa. Gente como ele mesmo, preconceituosa quanto a cor da pele e a origem das pessoas. Se imaginar gerando filhos de pele escura era tão estarrecedor quanto a união íntima de dois machos ou duas fêmeas na cama. A amava, mais repudiava gerar seus descentes a partir de uma negra. Aquela escrava, que um dia viu criança, cresceu e se tornou uma mulher cuja beleza física era de dá inveja em muitas branquelas portuguesas da época.  E o melhor de tudo era que permanecia ali, bem ao seu alcance.

Então, pensou, porque não tê-la de qualquer jeito, na marra e sem ter que dar a menor satisfação a ninguém, nem com ela assumir qualquer compromisso? Com essa ideia absurda de que ela não passava de uma de suas muitas propriedades ele a violentou sexualmente por diversas vezes, conseguindo saciar sua sede de prazer naquele corpo que por anos desejou. Mas por intermédio do destino o pior aconteceu. Ele não fazia ideia de que aquela mulher submetida ao escárnio. E a violência trazia dentro de si um fruto do abuso sofrido.

 Nas diversas vezes em que foi forçada a satisfazer seus impulsos libidinosos. Porém, era quase certo que ele jamais acreditaria ser dele a criança se porventura nascesse de pele escura, como a mãe. Afirmaria ser fruto da intimidade dela com qualquer outro negro, inclusive com aquele que foi capturada pelos jagunços. Passou a madrugada acordado, enchendo seus pulmões de fumaça e o estômago de cachaça. A insônia o impedia de dormir e a expectativa de ver nascer um novo dia, onde voltaria a maltratar aquela escrava nojenta que ousou desafiar seu poder lhe deixava ainda mais ansioso. Finalmente viu a claridade surgindo de entre as montanhas e a escuridão fugindo a galope, findou-se a espera, voltaria ao ponto onde parou.

Faria novamente uso do chicote sobre os lombos dos dois condenados.  Lá fora o calor que vinha dos raios do astro rei começou a aquecer o frio deixado pelo sereno da madrugada e os dois moribundos despertaram de um descanso temperado pela dor e o ardor das muitas feridas espalhadas pelos seus corpos. A sonolência se dissipou por completo sob o forte som da voz do carrasco que retorna ao local armado do chicote, com o qual criou feridas cujas marcas seriam permanentes.

— Acordem, seus malditos, preparem-se para o café da manhã!

Novas chicotadas foram desferidas sobre a carne machucada dos prisioneiros que já não possuíam forças para expressar a dor sentida. O líder dos jagunços, por nome Barnabé, recebeu do patrão a ordem de desferir dez chicotadas na escrava e trinta e nove no seu parceiro, o que fez com muito prazer.

Eles riam da desgraça que caia sobre o casal e se divertiam com aquela cena de covardia e a mais completa falta de humanidade. Fazia parte de suas naturezas o prazer pela maldade e eram guiados pelo ódio contra seus semelhantes, mesmo aqueles que não lhes devia qualquer insulto. Em seguida a ordem foi que retirassem a negra do tronco e a levassem para a casa grande, onde outras mulheres iriam cuidar de seus ferimentos. A princípio, Dionísio não tinha em mente surrar a fugitiva até a morte, apenas puni-la pela ousadia.

Quanto a Florêncio, tinha outros planos. Após ser desferido sobre seus lombos as chibatadas que foram determinadas pelo impiedoso fazendeiro o levaram para um dos muitos barracos, local onde se estocavam canas de açúcar e sacas de café. Ali foi novamente amarrado, içado pelos braços por meio de cordas, permanecendo de pé enquanto meia dúzia de maus elementos o espancavam a chutes e pontapés. Florêncio era um homem de bela estatura, possuía braços fortes e uma saúde de ferro.

 Porém, toda aquela maratona de espancamentos iria apenas deixar em seu corpo marcas profundas, mas de certo que não o levariam a morte. Sua boca e nariz sangravam depois de muitos socos, seus olhos igualmente inchados dificultavam sua visão naquele local de pouca visibilidade. Enquanto Luz era amparada por Joana, Alabá e as demais serviçais da casa grande, ele permanecia sendo torturado. O temido Barão do Café, como gostava de ser chamado, se aproximou do negro que se encontrava amarrado, indefeso e aos farrapos.

Ordena que seja dada uma trégua e por um pequeno espaço de tempo a seção de espancamento dá uma pausa para iniciar um interrogatório, Dionísio queria saber que ligação existia entre o estranho e sua escrava.

 — Fale, seu maldito, onde a conheceu! Qual é o tipo de relacionamento que existe entre vocês?

O prisioneiro, apesar de saber que sua vida não valia nada para seu inimigo, ousou afrontá-lo mesmo assim.

 — Vá pro inferno, seu canalha!

A resposta de Florêncio irritou profundamente seu interlocutor que lhe socou o rosto por diversas vezes, deixando-o quase desfalecido.

— Miserável! Engana-se por pensar que poderá me afrontar com suas ironias, vou obter todas as respostas que quero a qualquer preço!

Mesmo com a boca cheia de sangue o audacioso homem voltou a ironizar do temido escravocrata, cuspindo-lhe o rosto.

 —  Bate feito uma moça, nem força de macho tem nos punhos!

O odioso Barão lhe estapeia a face e brada irritado.

 — Continuem a surrar esse infeliz e não parem até que eu ordene!

O fazendeiro sai do recinto e uma sequência de novos socos e pontapés é reiniciada sobre o negro que minutos antes ousou desfazer do poder de seu oponente. Tempos depois Dionísio volta e recomeça o interrogatório, mas de tanta surra o prisioneiro não suporta e desmaia, então é despertado em seguida por um balde de água fria, voltando a consciência mesmo que ainda atordoado.

Com a respiração difícil, os olhos quase totalmente fechados por terem sido fortemente espancados, já não ficava firme sobre as próprias pernas, o peso de seu corpo era suportado apenas pelas grossas cordas que o mantinham preso pelos pulsos. O inimigo posicionou-se diante dele, passando a interroga-lo novamente.

 — E então, decidiu colaborar ou prefere mais umas horas de tortura para diminuir a arrogância?

Florêncio era um negro que apesar da cor de sua pele nada tinha de tolo, sabia o momento de agir prudentemente com o adversário. Então deu-lhe um tiro em forma de palavras. Para atingi-lo diretamente no seu ponto mais fraco. Quase sussurrando revela a seu opressor algo que ele jamais imaginaria estar acontecendo.

— Ela está esperando um filho teu... Maldito!

 Dionísio entendeu perfeitamente o sussurro do negro, mas não quis acreditar, e insistiu:

 — O que disse, seu negro dos diabos? Repita!

O estado físico de Florêncio era de dar pena, sentia como se um trem tivesse passado sobre seu corpo e lhe restaram poucas forças que se tornava difícil até balbuciar algumas palavras

 — Ela está grávida...Espera um filho teu, canalha!

O homem afasta-se por alguns segundos em direção a um dos quatro cantos do barraco, segurando o queixo com uma das mãos, parecendo bastante surpreso com aquela revelação. Mas seu orgulho fala mais alto e se nega a considerar tal possibilidade.

— Está mentindo! Se aquela cadela está esperando um filho só pode ser teu, negro maldito! Com certeza já andavam se agarrando às escondidas bem antes dela fugir de minhas terras, agora voltam com essa conversa. Planejaram jogar essa culpa sobre meus ombros, seu patife? Qual era o propósito? Me extorquir? Querem se apoderar de minhas terras? Seus imbecis, jamais serei pai de um maldito negro!

No impulso de sua revolta chuta com imensa violência a face do oponente, que desfalece e perde a consciência mais uma vez. Com o ar de um condenado ordena que seus subalternos se retirem dali e deixem o prisioneiro pendurado pelas cordas encontrar-se com a morte. De volta a seus aposentos, enche o copo com a forte cachaça extraída do engenho de cana de açúcar, passa a queimar o fumo bruto colhido de suas próprias plantações. A cada gole da bebida seguia uma tragada no cachimbo feito de cedro. Seus pensamentos passam acelerados por sua pesada consciência e de repente um sentimento de culpa passou a atormentá-lo.

 Seria verdade o que disse o pobre diabo que mantinha em cativeiro? Por acaso não teria falado asneira depois de tanto apanhar? Não teria ele delirado após levar dezenas de pancadas sobre a cabeça e das chicotadas aplicadas sobre seus lombos, no tronco? Sabe-se lá. A verdade é que aquela revelação lhe perturbou até a alma.

O que diriam dele caso tudo fosse verdade? Certamente todos os demais donos de terras iriam ridicularizar o tão respeitado “Barão do Café”. zombariam dele, se tornaria motivo de chacota para seus adversários. Não poderia deixar que o temido nome de sua família, formada sobre o legado de seu pai, fosse enlameado com tamanha vergonha. Seria imensamente vergonhoso tal notícia à seu respeito e passaria a ser noticiada de boca em boca.

 Principalmente por aqueles que se declaravam seus opositores, que discordavam da maneira como conduzia seu império, com braço forte e de maneira impiedosa. Com certeza se perguntariam como um homem que se mostrava tão superior aos outros foi parar na cama com uma escrava.

 Diante de tamanho escândalo o desprezível Barão estremeceu na base e entendeu que deveria evitar que tal notícia chegasse ao conhecimento público. E a única maneira de evitar tal coisa era eliminando o mal pela raiz, ou seja, matar aqueles que poderiam revelar seu erro. Dessa maneira, na manhã seguinte dirigiu-se a um de seus subalternos e ordenou que dessem mais uma sova no negro que lhe servia de ameaças.

 Caso ainda estivesse vivo depois do espancamento que o lançasse no rio que escoava a menos de um quilômetro da fazenda. Florêncio havia levado uma pesada surra dos jagunços na noite anterior. Entretanto ainda sobrevivia após o martírio. Entretanto, se sofresse outra coça semelhante não iria subsistir, pois se encontrava bastante debilitado.

 E como esperava o Barão, depois de receber várias pancadas e ter piorado consideravelmente seu estado de saúde o negro desfaleceu pela terceira vez, apagou, parecia estar morto. Assim, foi jogado nas águas do rio e tomado o caso como encerrado. Mas antes de ser afogado por seus inimigos recobrou consciência a tempo de poder evitar seu trágico fim. Entretanto, preferiu continuar fingindo estar inconsciente. Não era esse o final que o destino havia reservado para o segundo personagem mais importante de sua história e logo que é lançado nas águas geladas do rio passa a nadar pelo fundo.

 Esforçando-se como pôde para chegar até a parte mais distante de onde se encontravam seus supostos assassinos, e ali sair para a margem. Seu plano de sobrevivência deu certo, os jagunços que o lançaram para a morte retornam de imediato para o local de origem enquanto ele permanece estirado na areia quente, tentando se recuperar.

Devido sua excelente saúde, pois nunca cometeu abusos com álcool, fumo ou qualquer outro tipo de coisa que prejudicasse sua forma física, não seria difícil sobreviver àquele ataque covarde. Após algumas horas conseguiu se arrastar do lugar em que se encontrava para mais distante, saindo da mira dos raios solares e abrigando-se debaixo de uma Amoreira. Seu corpo se encontrava quase que totalmente esmagado por levar tantas pancadas.

 Respirava com dificuldades e era impossível se manter de pé. Somente um grande milagre o ajudaria a voltar para casa e se recuperar dos graves ferimentos. Ali poderia ser perigoso, pois os homens de Dionísio já conheciam o lugar, mas, por outro lado, pensavam seriamente que estivesse morto no fundo do rio. Portanto, jamais pensariam em ir procura-lo por lá. O maior problema, naquele momento, seria encontrar uma maneira de retornar.

Depois de bastante tempo deitado ali e já perdendo as esperanças de que algo de bom acontecesse em seu favor, ouve passos e fica assustado. Pensando ser os homens que tentaram mata-lo, procura manter-se oculto da vista deles, mas não se tratava dos jagunços e sim da sua salvação. Era a sorte em pessoa que chegava para resgatá-lo. Tereza era uma jovem senhora que morava nas redondezas, cujo esposo era um subalterno nas terras do malvado Barão, atuando como vaqueiro. Ela assistiu de longe toda a judiação que os jagunços praticaram com o pobre rapaz e decidiu impedir sua morte.

— Tenha calma, não sou sua inimiga!

— Por favor, me ajude...

— Sim, farei isso, mas preciso ir buscar mais ajuda para tirá-lo daqui, pois não possuo forças para leva-lo e pelo visto não consegue sequer ficar de pé

— Não, estou muito fraco e minhas pernas não obedecem...

— Fique quieto, não se esforce para falar, aguarde enquanto vou buscar alguém que possa nos ajudar

Ele, então, segura forte nos seus delicados pulsos e lhe adverte:

— Tome cuidado, se os homens que pensam ter me matado perceber o que estou vivo e o que pretende fazer sua vida irá correr perigo

— Sei disso, não se preocupe, conheço a pessoa certa para nos prestar a ajuda que precisamos

A mulher sai apressada dali e retorna para o pequeno vilarejo, onde residem a maior parte dos trabalhadores da imensa fazenda dos Dantas. Eles são pessoas livres, portugueses com menor recursos financeiros que seus patrões, vindos de Portugal exclusivamente para prestar seus serviços aos Barões e Coronéis, fazendeiros e cultivadores de café.

Juarez era seu marido, homem bondoso e trabalhador, avesso às atitudes criminosas do patrão, porém, o servia com dedicação por necessitar manter o sustento da família. Naquele domingo era seu dia de folga dado uma vez por mês por vontade própria do patrão e nessas ocasiões dedicava-se a realizar alguma tarefa doméstica.

 Tereza chega às pressas e ele procura entender o motivo de tanta agonia na companheira.

 — O que houve, mulher, porque toda essa pressa?

— Precisamos conversar!

 — Sim, fale o que houve!

 — Tem um homem jogado nas margens do rio espancado e à beira da morte, temos de ajuda-lo

 — Mas quem é este homem, como o encontrou?

 —  Eu estava como de costume, colhendo algumas frutas na floresta e vi tudo. Os jagunços do Barão trouxeram o pobre coitado debruçado em cima de um cavalo e depois o arrastaram até a lateral do rio, jogando-o nas águas. A princípio pensei que estivesse morto, mas como os criminosos foram logo embora desci pela margem na esperança de que ele sobrevivesse e como pensei de fato escapou

— Mulher você sabe o quanto o patrão é impiedoso, se descobrir que este homem está vivo e que lhe prestamos algum tipo de ajuda poderá nos punir da pior forma possível

— Meu marido somos cristões, cremos em Deus e na sua misericórdia. Portanto, não podemos deixar que aquela pobre criatura morra sem que lhe prestemos a devida ajuda. Se eu presenciei seu sofrimento e depois de sobreviver fui a única pessoa a encontra-lo é porque cabe a mim, ou a nós, prestar-lhe socorro

Juarez era um homem religioso, sua fé na misericórdia divina e na punição por parte de Deus sobre aqueles que agissem com indiferença diante da necessidade alheia o motivava a sempre fazer o bem.

 Assim, sem perda de tempo decidiu cooperar com Teresa em favor do moribundo. Os dois conseguiram, com muito esforço, colocar o ferido numa carroça e leva-lo até a casa onde moravam, dali em diante ela passou a cuidar de seus ferimentos. Na fazenda dos Dantas os homens confirmaram a Dionísio o êxito obtido na morte do forasteiro, por confiar plenamente na eficiência de seus subalternos o Barão ficou aliviado de saber que parte de seus problemas estavam resolvidos.

Se tranquilizou, pois o companheiro da escrava capturada sabia sobre a possível gravidez dela e que ele seria o pai. Por mais que achasse aquela ideia absurda não poderia correr o risco de que tal informação vazasse e chegasse aos ouvidos populares. Mas ainda faltava cuidar da  outra ameaça e depois de muito pensar chegou a conclusão de que o melhor a fazer seria ordenar que seus homens possuíssem a escrava sexualmente, dessa maneira não restaria qualquer possibilidade de ser atribuído a ele aquela gravidez, apesar de que ela já se encontrava gestante a mais de um mês o plano poderia dar certo.

Dessa maneira ordenou que ela fosse retirada do casarão e levada novamente ao tronco, onde foi outra vez açoitada à base de chicotadas, em seguida os jagunços a levaram para um dos muitos barracões e ali a estupraram, eram em número de dez o que tal monstruosidade fizeram. Joana e as demais mulheres da Casa Grande só ouviam os gritos da negra que era violentada brutalmente pelos homens que pareciam possuídos pelo próprio demônio, sem nada poderem fazer para livrá-la de tamanha barbaridade.

 Em seguida, após cada um dos dez elementos completamente tomados pela sede de sexo terem se cansado daquele ato infame, levam-na de volta ao tronco e outra sequencia de chicotadas lhe são dadas. Após ter criado toda aquela encenação no propósito de mascarar seu segredo, Dionísio manda que a escrava seja devolvida à irmã e as demais mulheres para que tenha seus ferimentos tratados. Luz permaneceu no casarão da fazenda por várias semanas, sendo cuidada por Joana, Alabá e outras criadas.

Aconteceu que devido a violência com a qual foi violentada pelos jagunços e a imensa surra que levou durante o tempo que ficou no tronco acabou sendo vítima de uma grave hemorragia que as mulheres não puderam conter. Informado pela irmã de que a escrava corria risco de morte o Barão manda chamar o médico na cidade para socorrê-la. Porém, o local ficava distante e mesmo com todo o esforço de chegar à fazenda o quanto antes foi impossível evitar o pior, após o derramar de muito sangue veio a perder a criança que já se desenvolvia no seu ventre.

O doutor esclareceu a Joana o fato e assim que Luz ficou plenamente consciente foi informada do ocorrido, recebendo com muita naturalidade a informação. Isso deixou as mulheres perplexas por tamanha indiferença daquela mãe não se entristecer por ter perdido seu feto. Estando as duas à sós, Lucinete e sua protetora conversaram bastante sobre a situação, desde a fuga da negra até seu retorno à fazenda.

Sua ida ao tronco juntamente com seu parceiro até aquele instante em que estavam a conversar. Joana, assim como todas ali, acreditavam ter sido a gravidez fruto de um relacionamento íntimo entre ela e o negro com quem foi encontrada. Coube a jovem esclarecer a sua madrinha o que de fato havia acontecido.

— Não era dele, Sinhá

— Não me chame assim, você é mais que uma simples criada para mim nessa casa, me chame sempre de madrinha, como te ensinei desde pequena

— Sim, desculpe madrinha...

— E como, assim, o filho que estava esperando não era daquele rapaz com quem foi encontrada? Por acaso saiu a se deitar por aí com vários homens minha filha?

— Deus que me livre, madrinha, não sou nenhuma vagabunda!

— Bom, então me explique melhor essa história. Se a criança não era do homem por quem decidiu nos deixar e fugir, de quem seria?

— Primeiramente quero que saiba não ter sido por ele que fugi da fazenda

— Ah, não? E por que foi, então?

— É uma longa história, mas vou lhe deixar a par de tudo...

Luz passou a explicar tudo o que aconteceu com ela, desde os abusos sofridos quase que diariamente por Dionísio. Suas lutas, perseguições e tormentos que teve de enfrentar durante o tempo que passou fora e de como Florêncio a ajudou, a morte de Martim, de quando foram abordados pelos jagunços e trazidos de volta à fazenda. Ciente de toda a história Joana sentiu-se enojada de trazer nas veias o mesmo sangue do monstro que se dizia ser seu irmão, não entendia o porquê de ser tão diferente dele e do pai, outra peste que ao morrer não fez nenhuma falta a ninguém.

Indignada pensou ir ter com Dionísio para confrontá-lo, mas foi impedida pelos pedidos de Luz que lhe convenceu ser inútil tomar aquele tipo de atitude e que só iria acender a ira do maldito sobre si mesma. Não passava de uma mulher, querendo expor ao irmão as consequências de seus erros, mas sem poder algum para convencê-lo de suas maldades. Os argumentos da jovem convenceram sua protetora a agir com maior cautela, iria pensar melhor e somente depois veria como poderia ajudar Luz a se manter livre das garras do terrível assassino.

Nos dias que se passaram não arredava os pés do quarto onde a moça estava se recuperando, temia que o irmão lhe causasse algum mal e mesmo ciente que não seria capaz de impedi-lo escolheu permanecer em alerta. Sem que ninguém soubesse armou-se com uma pistola  A muito tempo trazia guardada nos seus pertences, sabia como usar porque aprendeu ainda na adolescência com alguém que um dia amou, mas não estava mais ali para apoia-la, uma triste história que um dia viveu tempos atrás, durante sua juventude. 

Joana não era uma mulher do tipo pacata e submissa, mas já havia sido rebelde e responsável por grandes conflitos na família Dantas. Apesar de não se comparar ao mal caráter dos dois irmãos, ela lutou seriamente contra os ditames autoritários do pai que via as mulheres como seres inferiores aos homens e que sua utilidade era apenas casar e gerar filhos. Ideologia preconceituosa da época. Assim, decidiu viver uma grande e alucinante paixão ao lado de um homem de classe social inferior à sua, despertando a ira do então Barão que ordenou a seus comandados matarem o indivíduo e manteve a rebelde moça em cárcere privado por vários meses.

 Sem direito a ir sequer no pátio da casa ou se comunicar com outras pessoas que não fossem a mãe. Aconteceu que, durante esse período de extravagância Joana não apenas conseguiu desafiar a autoridade do pai e conquistar seu desprezo, como jogou fora a própria honra como mulher, o que naqueles tempos era considerado algo horrível de se fazer. Dali em diante ficou impossível conseguir um candidato a casamento, visto que nenhum rapaz queria tê-la como esposa depois do acontecido. Tornou-se mal falada e sinônimo de vergonha aos olhos das importantes famílias do seu tempo. Essa foi a razão pela qual permaneceu sozinha por toda a vida, não se casou nem teve seu próprio lar.

Dionísio foi outro que não teve descendentes e não teria a quem deixar seus bens após sua morte, sua única paixão era uma negra que não poderia assumir como esposa por causa da diferença na classe social, de cor e raça. Um nobre não poderia se unir a uma escrava, seria visto como um sacrilégio diante da igreja e de todos os olhares da sociedade. Portanto, pelo que se podia perceber a linhagem dos Dantas estava condenada a chegar ao fim. Ao ser informada da morte de Jerônimo, através de um dos criados, Joana repassou a informação a Luz, que ficou de luto pelo amigo durante vários dias.

Ele havia sido de vital importância na sua vida, principalmente durante a fuga, quando se esforçava para escapar da opressão daquele que por muito tempo lhe abusou sexualmente. Porém, o que ela não sabia era que na verdade ele foi resgatado da morte por duas almas caridosas. Encontrava-se não muito longe dali, recuperando-se dos graves ferimentos advindos do terrível espancamento sofrido enquanto permaneceu como prisioneiro dos jagunços de Dionísio. A providência divina cuidou para que ele fosse resgatado e sobrevivesse para que no final a justiça fosse feita. Dessa maneira sua recuperação avançava de forma surpreendente e em breve se levantaria contra o maior representante dos Dantas, que covardemente decidiu pela punição indevida de quem só quis colocar em prática a justiça em favor de uma inocente.

Florêncio, apesar de não ter se declarado abertamente, apaixonou-se pela nova amiga a quem decidiu proteger com a própria vida e enganava-se quem pensasse que depois de tamanha injustiça ele iria simplesmente se recuperar e em seguida voltar para sua propriedade sem devolver a seus opressores um saldo duplicado das afrontas sofridas, pois se havia uma coisa que ele não costumava deixar barato eram as humilhações imerecidas. Dionísio Dantas e seus jagunços que se preparassem para viverem um verdadeiro inferno. Mexeram com o homem errado, melhor seria terem sido enterrados vivos, pois a vingança sobre eles seria terrível. 

A recuperação de Florêncio se deu após algumas semanas e a verdade sobre ter escapado com vida do atentado que sofreu por parte dos jagunços permaneceu em sigilo. Já com a saúde reestabelecida encontraria um local de refúgio e dali criaria uma estratégia para a vingança contra o abominável Barão e seus homens. Lembrou-se que Luz havia comentado sobre o casal de idosos que a ajudou na fuga e decidiu ir até eles para ver se conseguia alguma ajuda.Porém, ao chegar ali deparou-se com Justino e seus comandados, ficando a par de tudo o que aconteceu com Benedita e Ambrósio, bem como a forma covarde em que foram mortos.

Os dois homens passaram a ter inimigos em comum e traçaram um plano para destruir o Barão, libertar Luz e trazer paz para aquela região. Acontece que para tanto seria necessário um forte exército de homens bem armados e os militares que acompanharam Justino no retorno às suas terras já tinham voltado para a capital, o que lhe restava como apoio eram apenas alguns dos negros que sobreviveram a chacina e sequer sabiam manejar bem uma arma, então, o que poderiam fazer contra mais de cem jagunços experientes?

Se fossem derrotados melhor seria que acabassem mortos ou do contrário lhes aguardava um terrível martírio nos troncos dos Dantas. Ele mesmo, Florêncio, já havia experimentado o sabor doloroso do chicote. Dialogar com Dionísio era total perda de tempo, um confronto direto seria suicídio. Então o que restava fazer era entrar silenciosamente na fazenda e tirar Luz dali, ateando fogo em tudo o que pudesse para distrair os jagunços e assim efetuar o resgate em segurança.

Certamente isso causaria prejuízos ao Barão, pois perderia parte de seus bens., nada que não recuperasse depois, mas arderia de raiva por isso. E, depois, saber que a escrava foi levada de sua propriedade bem debaixo de seu nariz seria uma afronta danada pra aquele filho das trevas, capaz de fazê-lo relinchar de ódio. Essa foi a ideia inicial de Florêncio.

Entretanto, Justino, que tinha quase que certeza absoluta da ligação do maldoso escravocrata com a morte de seus pais não se contentaria somente em queimar parte da propriedade do inimigo e roubar-lhe a negra, queria puni-lo mais severamente. Dessa forma, acrescentaria mais veneno no prato de comida fria que faria aquele desgraçado comer.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo