Capítulo 2 - A Viagem

O município de Cachoeira do Campo, para onde se dirigia, era conhecido pelas suas importantíssimas reservas de ouro que existiram no século XVIII, quando os portugueses chegaram a exportar cerca de 800 toneladas do valioso minério para a coroa Portuguesa.

A maioria das famílias que residiam naquela parte do país eram oriundas de antigos mineradores e Justino foi um dos que ousou ir habitar naquela região onde já não se vivia da extração do antigo minério. Apesar do fim da extração do ouro o lugar era lucrativo de muitas outras maneiras e se tornou um grande comerciante. Enquanto isso pelo caminho na longa viagem, Luz acreditava estar se distanciando para sempre de seu local de martírio e já podia sentir o sabor da verdadeira liberdade no soprar do vento que lambia sua face durante o cavalgar naquele animal.

 Cujo relinchar lhe fazia lembrar os tempos de sua adolescência. Tempo em que montava outros iguais a ele e podia passear por entre a densa vegetação dos cafezais. Porém, quando o destino escreve uma história e escolhe alguém para ser seu principal personagem não há como escapar.  Por mais que tente seguir seu próprio caminho acabará por permanecer preso a teia que por ele foi tecida.

 Igual a um inseto ou animal após cair nas garras de um terrível predador, paralisado por seu veneno ou presas, sem que seja possível alcançar o livramento que tanto anseia. Já era o final daquela tarde de verão e o sol começava a descer em busca de descanso, quando o estampido de um tiro de cartucheira se fez ouvir meio ao silêncio da floresta, antes rompido apenas pelo som das pisaduras dos cascos dos animais durante a cavalgada.

A fugitiva usava um vestido branco que ganhou de Benedita, nele respingou gostas vermelhas do sangue e parte dos miolos que saiu da cabeça do seu guia, explodida bem a sua frente. O eco de seu grito apavorante soou pelo campo coberto por uma leve camada de capim que cobria as raízes dos arbustos que se espalhavam de uma ponta a outra, o animal que montava também se assustou com o barulho do disparo e saiu a galope.

Estava ciente de ser perseguida pelos jagunços enviados por aquele homem desprezível de quem tentava se manter distante, seu antigo dono, que certamente tinha recomendado sua captura, mas pensava ser capaz escapar ilesa da perseguição. A paz do campo que antes foi rompido com o estampido da bala disparada do rifle de um dos criminosos e estourou o crânio do pobre diabo que havia sido incumbido de leva-la até um dos municípios próximos a Ouro Preto.

 Agora era desfeita mais uma vez, através do casco dos cavalos que com suas ferraduras cavavam aquela terra dura num galopar dos infernos. A fugitiva e seu animal rasgavam os ventos que sopravam naquela parte da terra, onde o destino parecia ter determinado um fim trágico sob a lama de sangue. Nada conhecia naquela região, bem distante da fazenda onde cresceu. Porém os que permaneciam em seu encalço não retrocederam.

Porque sabiam que por mais que ela insistisse em fugir seria obrigada a se entregar cedo ou tarde. Assim pensavam porque o caminho que tomou para escapar era um grande e desconhecido labirinto. Porém, desde menina aprendeu a galopar muito bem e sabia como conduzir uma montaria, meio a toda aquela correria não perdeu o equilíbrio nem as rédeas do animal, se conduziu de forma excelente e deixou para trás os cinco jagunços que pretendiam captura-la.

Acabando a extensão de campo aberto a vereda por onde seguia se transformou numa floresta de pinheiros, a moça larga seu cavalo e o faz seguir caminho, mas ela fica para trás. Embrenha-se na mata e segue a pés noutra direção, desconhecida e sem fazer ideia de onde iria leva-la.

Os homens que a perseguiam seguiram a diante atrás do animal que continuou a correr pelo estreito caminho até que finalmente perceberam que foram enganados e a fugitiva havia ficado para trás. Entretanto, o tempo levado até que percebessem o erro deu a escrava longo terreno percorrido e a distância entre ela e os criminosos se lhe tornou favorável.

 Começava a escurecer e o que ouvia eram apenas as orquestras dos muitos insetos espalhados sob a verde grama espalhada pelo chão, como um tapete verde debaixo dos pinheiros. Grilos em montões entoavam seus cânticos como se fosse uma grande festa e ela a dama de honra, ouvindo e recebendo a homenagem.

 Sem conseguir enxergar direito naquela escuridão que se formou com a descida do sol e a chegada da noite, decidiu assentar-se próximo ao tronco de uma arvore. Ouvia o soar das músicas encontradas somente nas densas matas, o cantar dos insetos que louvam ao Criador. Indianara, sua mãe, quando ainda em vida lhe falava dessas coisas. Lhe ensinou que a terra havia sido criada por Olódùmàré, nome dado a Deus, o Criador do Universo. Segundo sua tribo Yorùbá, o cântico da natureza era para sua adoração.

 Ela lhe dizia que era necessário respeitar as leis naturais e quando se encontrasse no meio dela não lhe causasse nenhum dano. Evitasse destruir as plantas, não cortasse uma árvore nem quebrasse sequer um dos seus menores galhos sem que fosse por extrema necessidade. Explicou-lhe ainda que todos os responsáveis pela devastação da natureza um dia iriam prestar contas com Olódùmàré e suas almas queimariam diante dele.

Luz sabia de cor e salteado tudo sobre estas coisas, pois havia aprendido com sua mãe que era praticante das diversas “religiões” africanas. Entre elas o candomblé que tem origem banta, tendo como raiz o quimbundo kiamdomb ou quicongo ndombe, ambos significando “negro”, tornaram-se sinônimo e referência genérica de diferentes expressões de religiosidade de matriz africana. Se nada do que aconteceu no passado houvesse ocorrido com sua família, assumiria as tarefas da mãe. Receberia depois de adulta o manto de Odum, serviria a Orixá.

E guiaria seu povo rumo a adoração de Olódùmàrè, cujo significado dentro dos costumes de sua gente é "Senhor do destino", "o mais além", "aquilo que não sabemos, conhecemos ou imaginamos", "sem limites". Enquanto refletia sobre o que tinha aprendido com a mãe, permitia-se descansar o corpo moído pela truculenta cavalgada sobre os lombos de Marinho ao pé da árvore de grandes galhos.

Ele era um animal notável e se conheciam a bastante tempo, desde quando ainda menina invadiu sem querer as terras de Ambrósio, após se perder durante uma das suas travessuras. Naquela época ele ainda era bem novinho. Foi ela quem lhe pôs a primeira cela de montaria. Naquele dia ele a levaria até a casa do homem que possivelmente lhe daria acolhida e, quem sabe, a liberdade definitiva, mas as coisas acabaram não sendo assim tão fáceis.

Devido a intensa escuridão era impossível ter ideia das horas, se ainda no início da noite ou chegando ao seu final. A orquestra de grilos continuava a entoar vários sons produzidos pelo esfregão de suas pernas ou asas, umas nas outras, cigarras e outras centenas de bichinhos louvavam Olódùmaré.

 Na pequena lagoa próximo dali alguns sapos e rãs também respondiam aos insetos com seus cantares esquisitos e no alto do pinheiro a coruja participava da grande festa com seu cantarolar estranho e assustador. Ajeitou-se no tronco onde escolheu se acomodar até que amanhecesse, para em seguida seguir viagem, e ali tirou um cochilo. Acordou ainda com escuro sob o cantar de vários pássaros que pareciam despertá-la de propósito.

Sem mais perda de tempo levantou-se de seu descanso e seguiu rumo à fora, com a pretensão de chegar ao lugar planejado. Não sabia a direção exata nem se estaria indo para o Norte, onde ficava Ouro Preto, ou se em sentido inverso. Não podia cometer o erro de sem perceber retornar em direção a casa do casal que a ajudou na fuga porque os jagunços com certeza já teriam passado por lá a sua procura.

Naqueles tempos as roupas usadas pelas mulheres eram enormes e volumosas, difíceis de se locomover, mas a negra nunca gostou de usar tamanho exagero e se vestia com vestidos colados ao corpo mesmo com a repreensão de sua madrinha. Dessa maneira se tornava possível melhor locomoção e praticar suas travessuras, como montar a cavalo e sair em disparada pelas terras dos Dantas, que eram quase infinitas. E, naquela ocasião em particular, caia bem suas vestimentas.

Afinal, contribuíam grandemente para que pudesse correr entre a vegetação que em alguns momentos se mostravam rasteira, noutros alta e densa, de difícil acesso. Perdida entre tantos pensamentos ela quase nem sentia o imenso cansaço que pouco a pouco se espalhava pelo corpo. Continuava a largos passos, quando ao longe avistou uma casa cercada por plantações diversas, o extenso terreiro e o quintal cercando vários animais domésticos deixava claro que ali era um lugar habitado.  

Aproximou-se cautelosamente e bateu na porta frontal na esperança de ser recebida por alguém que pudesse lhe prestar ajuda. Suas expectativas estavam certas e um homem alto, ainda jovem, de pele escura. Dono de um porte físico admirável aparece quase desnudo, usando apenas uma bermuda, deixando à mostra seus fortes músculos.

Pela primeira vez aquela mulher que desde sua meninice experimentou o sexo de uma maneira violenta e nunca sentiu qualquer atração física por ninguém, agora se viu atraída por aquele estranho. Ao vê-lo suas carnes estremeceram por dentro. Envergonhada pelo que sentia naquele momento sem se dá conta de que seria impossível ao estranho perceber o que acontecia no seu interior, baixou o olhar e ergueu somente a voz cansada para pedir auxílio.

 — Por favor, me ajude...

 Expressou estas palavras quase sem voz e o homem a segurou firmemente, quando já caia desfalecida pelo intenso cansaço, devido a longa caminhada e por várias horas sem se alimentar. Depois de colocar a visita para dentro e acomodá-la numa cama, apesar do pouco conforto, ele passou um pano umedecido sobre seu rosto no intuito de diminuir o calor. Deixou que descansasse e enquanto isso preparou algo para que ela comesse ao despertar.  O tempo que Luz passou descansando na floresta, onde até pôde tirar algumas horas de sono.

 Poderia lhe ter sido fatal se seus perseguidores não tivessem perdido seus rastros. Isso ocorreu porque ao abandonar a montaria a fugitiva embrenhou-se na floresta em sentido oposto ao deles, seguindo rumo ao Leste do local onde estava e eles acreditavam ter sido ao em sentido contrário. 

Enquanto ela se reestabelecia do desgaste físico os jagunços retornaram à casa de Ambrósio e Benedita, forçavam-lhes a dizer onde e como poderiam encontra-la por acreditar que ela ali tivesse encontrado ajuda. Como de fato ocorreu. Mas o casal se dizia não saber ao certo seu paradeiro, porém suas desculpas não foram aceitas de bom grado pelos bandidos que passaram a agir com mais dureza.

Como eram pessoas pacíficas e seus serviçais nunca haviam lidado com tal situação, diante de muitas armas eles se acovardaram e não souberam reagir para livrar seus senhores que foram muito maltratados pelos invasores. Depois de trancarem a todos os que ali se encontravam num dos muitos aposentos da casa.

Os homens amarraram marido e mulher em duas cadeiras, uma oposta a outra, forçando-os a lhes dar as informações que queriam sobre a jovem debaixo de muitas ameaças e agressões, tanto verbais quanto físicas. Mesmo depois de serem vítimas de tantas atrocidades por parte dos violentos jagunços o casal se limitou a nada falar.

Silenciaram-se  a respeito do paradeiro da jovem. Indignados pela insistência deles em não cooperar mataram a todos os criados do fazendeiro que se encontravam até então trancafiados num dos cômodos da casa, foram assassinados a sangue frio a tiros de grosso calibre.

 Benedita e Ambrósio nada disseram por saber que mesmo se falassem não escapariam da morte certa, e não estavam enganados quanto a isso. A ordem dada por Dionísio Dantas era que usassem de todos os meios necessários para obter os resultados que os levassem a captura da fugitiva e não deixassem testemunhas.

Após espancados com excesso de crueldade o casal foi encharcado de querosene e ateados fogo, foram queimados vivos. A grande casa cercada de várias arvores frutíferas e cujo terreno era extenso, com muitas criações de animais domésticos. Foi palco daquela imensa tragédia que se abateu na vida de pessoas do bem e que nunca antes haviam praticado qualquer forma de maldade a alguém.

Em seguida ela mesma também foi incendiada e todos os seus caríssimos móveis incinerados. As altas chamas logo se espalharam pelo local, transformando em pó e cinzas tudo o que ali havia, inclusive os corpos dos antigos moradores do lugar. Outros que se encontravam naquele momento à trabalhar nas plantações de café avistaram de longe a extensa nuvem de fumaça preta que se levantava na direção do casarão.

 Então correram até lá para verificar do que se tratava. Grande foi o desespero de todos ao ali chegarem. Perplexos choravam e lamentavam ao perceber que a casa de seus senhores ardia em chamas e por não haver ninguém na parte externa do local concluíram de imediato que todos haviam juntamente sido mortos no incêndio.

Mesmo que a princípio não entenderam como aquilo veio a acontecer. Naquela região não havia qualquer autoridade que pudesse investigar o ocorrido, tudo era resolvido pelos donos das terras, geralmente escravocratas. Alguns negros escaparam com vida por não se fazerem presentes no local.

 Na hora da carnificina trabalhavam nas plantações e ao chegar ali ficaram sem saber o que fazer, até que alguém teve a ideia de enviarem algum deles à procura de Justino, filho do casal assassinato, para lhe deixar a par dos acontecimentos recentes. Feito isso, procuraram uma forma de se abrigar, indo para um velho barraco localizado meio aos cafezais até que o novo senhor das terras chegasse.

Enquanto isso tudo acontecia Luz desperta e seu novo protetor lhe serve um caldo feito à base de vários vegetais e galinha caipira, pretendia devolver a sua estranha visitante as energias necessárias para que lhe explicasse sua inesperada chegada, o que ela fez tão logo se recuperou.

— Primeiro peço-lhe desculpas por invadir sua propriedade, mas foi necessário

— Tudo bem, não precisa se preocupar. Prazer, eu me chamo Florêncio — disse isso enquanto beijava-lhe a mão — vejo que a senhorita é bastante culta, apesar da pele escura

— O prazer é todo meu. Sou Lucinete, mas me chamam Luz, fui adotada pela irmã do meu senhor e por ela educada como se fosse sua filha

— Compreendo

— Mas percebo que o senhor é um homem tão culto quanto eu, também teve quem o educasse?

— Não, minha educação foi adquirida através de meus próprios esforços

— Sim, agora me dou conta da quantidade de livros que possui aqui sobre esta mesa

— Muitos deles pertenceram a meu pai que se tornou um negro livre da escravidão ao receber a liberdade dada por seu senhor.

 Isso se deu poucos dias antes de sua morte e viveu neste pequeno pedaço de terra que recebeu por herança

 — Homem de sorte, seu pai, depois de ser liberto ainda recebeu um pedaço de terra para viver?

 — Sim, parece estranho, mas foi exatamente isso que aconteceu.

Era muito estimado por seu dono e foi agraciado dessa forma. Depois casou-se com minha mãe, uma outra escrava livre, com quem me deu a vida.

 — Então, pelo que entendi o senhor do seu pai libertou vários escravos

 — Foram apenas em número de cinco

 — E onde estão todos eles?

 — Partiram, não sei ao certo onde possam estar, mas agora chega de falar sobre mim, falemos sobre você. Como conseguiu chegar até aqui? Afinal essa propriedade longe das demais e poucos saberiam como encontra-la

 — Para ser sincera eu cheguei até aqui por acaso, não era minha intenção

 — Perdeu-se? E seu animal, onde está?

 — Eu o abandonei na estrada, na ocasião pretendia ir ao município por nome Cachoeira do Campo, por acaso sabe onde fica?

 — Sim, conheço muito bem, mas se pretende chegar a tal lugar porque, então, despachou seu animal? Porventura o cavalo adoeceu, sofreu algum ferimento grave ou está morto?

 — Nada disso, quando o despachei estava bastante saldável

 — Não estou entendendo...

 — Está bem. Sou uma fugitiva e por ter alguns jagunços no meu encalço tive que me desfazer de meu animal para fugir deles, embrenhando-me na mata no objetivo de despistá-los

 — Entendo. Então foi dessa maneira que acabou por chegar até aqui?

 — Exatamente

 — Mas você disse ser uma escrava livre, criada e educada pela irmã de seu antigo senhor. Como se tornou uma fugitiva, cometeu algum crime?

 — Não, apenas cansei de ser violentada quase que diariamente por aquele maldito

 — A quem se refere, na verdade?

 — Eu cresci na propriedade dos Dantas após presenciar a morte de meus pais, assassinados pelo antigo Barão do café. Naquela ocasião, ainda criança, fui obrigada a vê-los queimar vivos numa fogueira bem diante de meus olhos

 — Minha nossa Senhora, mas que barbaridade! E por qual motivo fizeram isso, qual erro cometeram para merecer um fim tão terrível?

 — Desde quando estes demônios escravocratas precisam de motivos para praticarem seus crimes contra pobres infelizes como nós, negros? Só por ter a pele escura somos alvos de suas agressões e tratados como lixo

 — E isso ocorreu logo que chegaram ao Brasil ou depois de já estarem estabelecidos nas terras dos Barão?

 — Depois de estar na fazenda dele por um tempo. O filho mais moço do nosso senhor me estuprou quando eu tinha apenas dez anos de idade e meu pai não suportou o que ele fez, então juntou-se com outros e o mataram no meio dos canaviais.

Mas, debaixo de muita pressão um deles acabou revelando o segredo e acabaram todos mortos, inclusive meus pais, que forma consumidos pelo fogo bem na minha frente sem que eu pudesse salvá-los

— Miseráveis! Isso me deixa indignado e aumenta ainda mais minha vontade de lutar pela liberdade da nossa gente

— Compartilho desse desejo, mais o que poderíamos fazer contra uma multidão de inimigos bem armados e protegidos pelo império?

— Às vezes paro para refletir que somos muitos negros nesse país. Então, porque não nos unimos e lutamos contra esses opressores e nos libertamos desse jugo terrível? Acontece é que somos muito passivos, acomodados e covardes! — Mas não temos armas e mesmo se as tivéssemos não saberiam como usá-las.

— Tudo se aprende, minha amiga, até apertar o dedo num gatilho e m****r estes malditos portugueses para o inferno!

— Então você é a favor de uma revolução?

— Sim, completamente! Mas continue, conte-me o resto de sua história

— Após o Barão adoecer e se tornar incapaz de administrar seus bens seu filho Dionísio que desde a muito tempo já atuava no domínio das propriedades e tomava as decisões no lugar do pai, assumiu por completo o controle de tudo, passando a governar ainda mais severamente. Foi então que por se achar com todo o poder passou a me violentar sempre que me encontrava sozinha, longe das demais pessoas que convivia no casarão. Cansada de tanto abuso decidi fugir e agora ele mandou seus jagunços no meu encalço para me levar de volta.

 — Branco miserável! Mil vezes miserável! E porque você não revelou tudo a sua protetora, aquela que a criou e educou?

 — Pense bem: O que uma pobre mulher sem qualquer poder de autoridade, num país onde somente os homens mandam e governam, poderia fazer para me defender?

 — Você está certa, a coitada ainda iria colocar a própria vida em risco

 — Claro que sim! Aquele verme não se daria ao menor remorso de matá-la caso tentasse sair em minha defesa

 — Você fez bem em guardar segredo e fugir daquele monstro.

 — Não se preocupe, aqui comigo estará segura, ninguém lhe fará mal

 — Agradeço sua generosidade, mas nós dois sabemos que nunca ficarei segura enquanto estiver sendo perseguida por aqueles jagunços desgraçados

 — Fique calma, esse lugar é bem afastado e não será fácil para eles encontra-lo

 — Não haja como se não compreendesse a situação, Florêncio, bem sabemos que se cheguei até aqui eles também virão

 — Tá certo, não vou ficar aqui fingindo que não compreendo o perigo que estamos correndo, então façamos assim: Vou acompanha-la no seu destino até entrega-la pessoalmente aos cuidados do filho de seus amigos, a quem deveria encontrar a princípio

 — Muito bem, isso é o mais certo a fazer, pois lá ele tem influência e poderá me manter em segurança, se ficarmos aqui e meus perseguidores localizarem esse lugar você será morto. Além do que eu serei levada de volta para sofrer os martírios do castigo reservado aos escravos fujões nas mãos daquele homem diabólico.

Quando ela tenta se levantar sente forte tonteira e quase vai ao chão, mas é amparada pelos fortes braços de Florêncio que não a deixa cair.

 — Vamos com calma! A senhorita ainda não está totalmente restabelecida, descanse mais um pouco

 — Está bem

Um forte sono se abateu sobre seu corpo cansado e com ele veio os sonhos que costumeiramente lhe perturbavam a alma sofrida. Pôde rever a chegada dos negros no porto, depois de viajar por várias semanas naquele navio negreiro imundo, sob a tirania dos capitães do mar que eram portugueses perversos que chicoteavam qualquer um que respirasse forte demais. Era como se ela estivesse novamente naquele inferno, revivendo na íntegra toda aquela vida miserável.

Todos permaneciam acorrentados pelos tornozelos e pescoços, um ligado ao outro, em fila, independente se grandes ou pequenos. Não havia diferenças, eram todos negros, não passavam de escravos desgraçados e deviam ser tratados como escória da humanidade.

Era a primeira vez que saia das terras africanas onde nasceu, sonhava um dia sair daquela região amaldiçoada por Deus, onde seu povo parecia nunca progredir, apesar de sua tribo viver em paz. Mas nem por um momento pensou que seria daquela maneira, arrastados feito bichos brutos e levados para outra parte do mundo.

 Onde seriam feitos escravos e torturados num tronco até a morte sem que suas vidas tivessem algum valor.

 Enquanto dormia e revivia seu passado por meio do pesadelo no qual se encontrava, seu corpo estremecia. Florêncio permaneceu o tempo todo sentado a seu lado enquanto dormia e percebia seu tormento.

Depois da chegada em terras brasileiras foram todos entregues aos seus senhores que já os aguardavam, ali eles foram vendidos por algumas moedas como se fossem míseros animais, irracionais e que não compreendiam o sofrimento. Depois seriam usados nas plantações de cana de açúcar e nos cafezais.

Os maus tratos sofridos ali eram indescritíveis, doía-lhe imensamente lembrar o sofrimento de seu povo nas senzalas e todas as humilhações que foram sujeitados enquanto ela, impotente, nada podia fazer para ajuda-los. Aquele sonho, que mais parecia um profundo tormento, ainda lhe fez reviver a morte de seus pais naquela fogueira, onde sem piedade as chamas os consumiam vivos.

 Parecia poder ouvir nitidamente seus gritos, todo o desespero, sentir a dor que eles sentiram enquanto as labaredas rasgavam suas carnes ainda vivas. Acordou assombrada, seus olhos estavam arregalados e um forte espanto revelava o terror que sua alma acabara de presenciar.

— Calma, foi apenas um sonho!

— Eles estão queimando, ouço seus gritos!

— Acalme-se, quem está queimando?

— Meus pais, na fogueira, ainda estão vivos, precisamos salva-los!

Ele agora compreendia sua angústia, aquele pesadelo lhe trouxe as amargas lembranças do dia em que seus pais haviam sido mortos. Lançados vivos dentro de uma fogueira pelos malditos portugueses. Entendia sua dor, podia imaginar como era intenso seu sofrimento.

O despertar de Luz se deu justamente durante o adormecer do dia e o restante daquela noite ela não conseguiu voltar a dormir, pois estava muito assustada com as miragens vistas no pesadelo que teve horas antes. Logo que amanheceu os dois arrumaram o necessário para a longa viagem que fariam.

Enquanto isso, distante dali, Joana sofria sem ter notícias daquela que aprendeu a amar como se fosse sua filha. Todos os dias ralava os joelhos frente a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, implorando que a protegesse de todo o mal e a mantivesse sempre em segurança.

 Alabá, sua fiel amiga não parava de mencionar seu nome às demais mulheres que ali serviam, morria de saudades e temia que algo de ruim lhe tivesse acontecido. Dionísio permanecia azedo como de costume, descontando nos escravos a frustração de ter perdido a negra com quem satisfazia seus desejos sexuais. Esbravejava e exigia mais esforços por parte dos jagunços para que a encontrassem o mais rápido possível. Certa vez, indignado por somente ouvir que a fugitiva simplesmente havia sumido e nem os mais hábeis batedores conseguiam localizá-la.

Por causa disso explodiu em ira e ordenou que os homens cuja missão de encontrá-la foi malsucedida fossem colocados no tronco e pessoalmente os chicoteou despejando sobre seus lombos o ódio que lhe ardia no peito. A ferocidade do Barão era tanta que passou a escorrer, também, para dentro de sua casa e atingir seus familiares. Mãe e irmã se tornaram alvo de tamanha revolta e passaram a ser ameaçadas.

 — Aquela negra desgraçada conseguiu fugir bem debaixo de meu nariz como por encanto! Nem mesmo o melhor de meus homens consegue achar seus rastros, e sabem de quem é a culpa de tudo isso? Das senhoras! Isso mesmo, foram vocês duas que mimaram demais aquela ordinária e fizeram com que pensasse ser uma de nós, com os mesmos direitos à liberdade que temos

 — Meu filho, ela é uma boa menina. Entenda que se Luz fugiu da fazenda é porque deve ter seus motivos, algo deve ter lhe acontecido

 — Cale-se, sua velha inútil! Não me venha com essa ladainha absurda de que aquela miserável merece ser tratada com a menor dignidade, ela não é diferente dos outros negros imundos que servem essa casa. E tão logo venha a ser encontrada irá pagar caro pela insolência com que ousou me desafiar

 — Irmão, veja como fala, respeite nossa mãe!

Ele desfere no rosto da mulher um forte golpe que se não tivesse sido dado com a mão aberta ela teria quebrado o maxilar. Devido o ataque violento a mulher acabou caindo sobre alguns dos móveis da ampla sala, sendo socorrida pelos criados, após a saída do odioso homem.

Aquele ato de violência deixou Joana de cama por vários dias, seu corpo frágil ficou bastante machucado e sua face roxeou-se imensamente. Martim, o negro que sentia uma forte paixão por Luz, era um rapaz de apenas vinte e dois anos, muito discreto e sabia obedecer. Era de pouca conversa, nunca foi levado ao tronco por cometer erros desnecessários e bastante trabalhador o que lhe rendeu elogios dos capatazes ao Barão. Naquela tarde foi intimado a comparecer diante de Dionísio

.— Meu senhor mandou me chamar?

 — Sim, meu rapaz, estou precisando urgentemente de seus serviços

 — Pois não, estou aqui às suas ordens

 — Preciso que você saia à procura daquela escrava fugitiva e a traga de volta o quanto antes. Já não posso mais esperar por estes incompetentes que só retornam de mãos vazias.

Quero que escolha o melhor cavalo na estribaria, prepare-o com as melhores montarias, alimente-o bem e certifique-se de ter com você tudo o que precisar para a viagem. Em seguida vá pelos quatros cantos dessas terras de meu Deus e não retorne até que a encontre e possa trazê-la de volta para mim. Compreendeu qual é sua missão, rapaz?

— Sim senhor, farei como me ordenou

— Então chega de perder tempo, vá e cumpra as ordens que recebeu!

— Sim, senhor!

 O obediente escravo que desde bem cedo havia conquistado a admiração dos seus senhores por parecer ser mais destemido que os outros. Era diferente dos demais negros. Saiu dali determinado a cumprir ao pé da letra as ordens recebidas, até porque não era de seu costume desobedecer.

Desde a infância foi o melhor amigo de Luz e tinha por ela grande apreço. Seu coração se apaixonou pela escrava que teria de caçar e trazer de volta.  Sabia que ela iria padecer no tronco, porém, o compromisso com seu senhor não poderia ser desfeito por causa dos sentimentos que lhe ardiam no peito, seguiria a razão e deixaria que as emoções caíssem no esquecimento, retornaria com a fugitiva presa em grilhões e a entregaria ao Barão. Com certeza seria grandemente elogiado por seu feito, se tornaria o homem de confiança dele.

 Certamente o colocaria entre os capatazes de suas muitas terras e daria orgulho a sua família, bem como a seu povo. Em contraste a isso, caso desobedecesse às ordenanças que lhe foram impostas, acabaria como Luz num dos vários troncos sob dolorosas chicotadas.

Uma vergonha sem limites se derramaria sobre o nome de seus pais, que como escravos não possuíam valor algum, mas passariam a ser reconhecidos meio aos demais negros como privilegiados por terem como filho um homem que vivesse próximo ao Barão do Café, e por ele fosse honrado.

Certamente essa era uma pretensão idiota da parte de um jovem que ainda se enganava com pretensões fúteis, afinal, quando que um português branquelo e arrogante como Dionísio se daria ao trabalho de reconhecer o valor de um negro? Era visto por ele apenas como alguém que fazia parte de sua propriedade e possuía o dever de cumprir suas ordens .

Sem, no entanto, que com isso lhe devesse algum favor. Suas perspectivas eram imaturas e sem fundamentos. Porém, sua ambição ia além da paixão que sentia pela mulher que desejou desde de sua mais tenra idade, visto que nasceram na mesma vila africana e chegaram juntos no Brasil. Foram comprados e levados para a mesma senzala onde se tornaram escravos, mas pelo visto havia dentro de seu peito um sentimento misturado, impuro, onde ardia amor e inveja.

Ele não se contentava em ver que Luz havia sido mais privilegiada, usufruindo do apoio de Sinhá Joana, enquanto ele e seus familiares, bem como o restante dos negros, permaneciam servindo na parte mais árdua daquela terra ela vivia no conforto da casa grande como se fosse uma branca. Ao seu ver, essa injusta condição era uma afronta que não poderia ser aceita, afinal, Luz era tão negra e escrava quanto eles.

 Por causa disso o rapaz insistia em tentar atrair a atenção de seu senhor sobre si, tentando conquistar a mesma posição entre os brancos. Entendia que se cumprisse cabalmente a missão que lhe foi entregue, trazendo de volta a fugitiva, mostraria competência para ser colocado entre os demais jagunços ou, quem sabe, assumir o posto de capataz na fazenda.

Isso já seria um grande passo para mudar sua atual situação, elevando-o a uma posição acima de um simples escravo. Portanto, não permitiria que aquela grande oportunidade lhe fosse tirada.

 Perseguiria e encontraria a fugitiva, entregaria ela a Dionísio e receberia o merecido respeito. Será que seus pensamentos estariam realmente certos quanto ao que o destino lhe havia reservado?

Encontraria, Martim, a escrava antes dotada de maiores privilégios que ele e receberia de seu senhor o que considerava ser merecido por seu grande feito? Muitas vezes a ambição desregrada nos leva a cometer o erro de acreditar nas vãs promessas que nos são feitas.

 Principalmente se antes não analisarmos para ver de quem elas foram prometidas. Homens como Dionísio não cumprem promessas feitas a pessoas que considera insignificantes e para ele Martim não passava de um bicho do mato a quem possuía extremos poderes para dominar, usar a força de seu braço em favor de suas próprias necessidades.

Ao seu ver, aquele escravo nada merecia receber em troca de seus serviços, pois só estaria fazendo sua obrigação, qualquer reclamação lhe reservava o direito de colocá-lo no tronco. Essa era a verdade dos fatos, porém, o ambicioso rapaz estava cego pela intenção de destruir a reputação da moça a quem saiu em caçada, afim de um dia poder vê-la caída sob o castigo que a aguardava.

 Enquanto isso ele estaria de pé ao lado do seu senhor e dos demais capatazes, vendo o carrasco desferindo nas suas carnes vários golpes feitos pelas amarras do impiedoso chicote. Se alegraria em vê-la gritar como uma negra qualquer.

Enquanto galopava a toda velocidade pela estrada de chão que cortava as terras dos Dantas, seus olhos brilhavam como se fossem tochas de fogo, finalmente sua ambição se exteriorizou e foi revelada sua verdadeira personalidade de traidor, se Luz pudesse vê-lo naquele instante talvez não acreditaria.

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