Prólogo

ㅡ Um elefante incomoda muita gente! ㅡ Eu puxo o primeiro verso sentado no banco de trás do carro e minha mãe e minha irmã continuam nos bancos da frente.

ㅡ Dois elefantes incomodam muito mais! 

ㅡ Isso é muito irritante, Jhonny! ㅡ Diz meu amigo, sentado ao meu lado.

ㅡ Ah, você é um estraga prazeres mesmo, Gregory! Aposto que nem sabe cantar!

ㅡ Cantar é uma coisa... Berrar igual a um bezerro desmamado é bem diferente...

ㅡ Eu não sou um bezerro, seu idiota! ㅡ Retruco dando um cascudo na cabeça dele. ㅡ Um dia vou ser um cantor famoso, você vai ver!

ㅡ Ai! Eu sou mais velho, mané! Me respeite! E cantor famoso? Não me faça rir!

Mostro-lhe o dedo do meio de forma desafiadora e ambos acabamos trocando alguns socos e empurrões, um pouco desengonçados para nossa tenra idade. Estou com oito anos, meu amigo tem dez. E apesar da diferença de idade, não consigo me lembrar de qualquer dia na minha vida no qual ele não estivesse presente. 

ㅡ Vocês dois aí atrás! Comportem-se! Jhonny, onde você aprende essas coisas?

O tom severo de minha irmã ao volante nos alerta. Eu sacudo os ombros e mostro os dentes em um sorriso escancarado. Posso ver o sorriso suave dela pelo retrovisor. Ela sim, é bem mais velha do que eu. Quinze anos de diferença. Pode-se dizer que sou o filho temporão, minha mãe já tinha passado dos quarenta quando eu nasci. Quando meus pais achavam que minha irmã seria filha única, lá fui eu provar o contrário. 

Eu e meu amigo cruzamos os braços e cada um olha para sua janela, fazendo um bico de birra monstruoso. Minha mãe no banco do carona ri e eu observo minha irmã de relance pelo retrovisor interno. Seu sorriso aumenta.

É, mana. Sempre pondo ordem na casa.

Retribuo seu sorriso e começo a cantar novamente, porém, dessa vez, eu berro com todas as forças.

ㅡ Um elefante incomoda muita gente!

As duas  na frente desatam a rir. Meu amigo solta seu cinto e pula em cima de mim. Eu faço o mesmo.

ㅡ Cale a boca, Jhonny!

ㅡ Vem me calar, Gregory!

ㅡ Agora já chega! Coloquem o cinto! Os dois! Ou conto tudo para o papai!

Minha irmã sempre foi zelosa na direção e, por isso, sua preocupação. Obedecemos de imediato e, após prender o cinto novamente, levanto meu olhar para encará-la. É quando vejo a traseira de um caminhão de obras crescer sobre nós.

ㅡ Sarah!

É tarde demais para desviar. Nosso carro vai com tudo para dentro do caminhão. Vergalhões de ferro entram pelo parabrisa e nos atravessam. Sinto um golpe forte no meu peito e a dor é tão grande que quase desmaio. Um calor e um odor de fumaça e gasolina horríveis embotam meus sentidos. O carro está totalmente parado, embora minha cabeça gire sem parar. Tento me mexer e a dor só aumenta. A ponta de um vergalhão está cravada no meu peito. 

Sinto braços me puxarem pelas axilas. Uma dor lancinante parece me rasgar ao meio e começo a perder as forças. Só o que consigo vislumbrar são mais vergalhões de ferro cruzando os bancos da frente, banhados em sangue.

ㅡ Mamãe... Mana...

ㅡ Vamos, Jhonny... Não consigo sozinho...

Sou arrastado para fora do carro e deitado no asfalto. Um turbilhão de sons invadem meus ouvidos. É ensurdecedor. Vejo o rosto do meu amigo Gregory. Há sangue descendo pela sua testa. Ele bate na minha face, me sacode. Grita meu nome em desespero. 

Nada mais faz sentido agora...

Fico sem fôlego, não consigo respirar mais e a escuridão me abraça.

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Faço um aquecimento vocal, enquanto aguardamos nosso vocalista chegar.

ㅡ Lá, lá, lá, lá, lá, lá...

Acompanho minha voz com uma escala no teclado. Depois outra e mais outra. 

ㅡ Você nunca se cansa, não é mesmo, Carol?

Olho para o nosso baterista que está com um sorriso gozador nos lábios. Eu também sorrio.

ㅡ A perfeição requer prática. 

ㅡ E pontualidade. Como vamos ensaiar para tocar na sua festa amanhã se o nosso vocalista nunca chega na hora? Vou aproveitar para dar uma mijada.

Eu suspiro forte e olho na direção da janela da sala. Não temos um estúdio, ensaiamos na casa do Roberto, nosso vocalista, que é irmão de Flávio, meu professor de literatura e baixista. Durante uma disputa muito louca de karaokê, em plena festa junina no colégio, Flávio e Roberto me viram e me convidaram para fazer parte da banda como backing vocal e tecladista, pois eu já fazia aulas desse instrumento. Foi assim que entrei para a banda há dois anos. 

Posso ver meu professor na varanda, com o telefone sem fio na orelha, andando para lá e para cá, enquanto fala. Roberto saiu para uma festa na noite anterior e até agora não havia voltado para casa, mesmo tendo ensaio marcado. Confesso que responsabilidade nunca foi seu forte, mas a voz... 

Acho que me apaixonei por ele à primeira vista. Ele é um gatinho e atrai garotas como moscas em uma padaria. Jamais imaginei que teria qualquer chance... Mas, ele me escolheu e eu me entreguei a ele. Uma adolescente tola, apaixonada por um cara mais velho que canta como um deus vivo.

Vejo Flávio voltar para a sala, com um semblante severo e angustiante. Logo percebo que algo está errado.

ㅡ O que aconteceu?

Ele funga, passa uma mão pelo rosto nervosamente e seus olhos enchem-se de lágrimas. 

ㅡ Era da polícia. Roberto bateu com o carro depois da festa ontem. Ele estava tão alcoolizado que perdeu o controle e colidiu com outro veículo que vinha no sentido contrário. Ele... Disseram que ele...

Vejo seu pomo de Adão se mexer e as palavras ficam presas em sua garganta. Eu permaneço petrificada no lugar, com uma dor horrível no peito.

ㅡ O quê, Flávio? O que aconteceu com ele? Ele se machucou muito feio? Em qual hospital ele está?

Quando seu olhar avermelhado pelo choro contido encontra o meu, sinto-me como se fosse golpeada na cabeça por um martelo.

ㅡ Ele morreu no local do acidente. O impacto foi muito violento...

Não... Não pode ser...

Eu agarro a gola de sua camisa e o sacudo aos prantos. Ele é bem mais alto e forte do que eu, sequer se abala.

ㅡ É mentira! Ele não faria isso com a gente! A polícia se enganou, é a pessoa errada!

Suas mãos seguram meus ombros e me chacoalham para cessar minha crise histérica.

ㅡ Não, Carol! Ele estava sem cinto e voou pelo parabrisa! Ele morreu! O Roberto morreu!

ㅡ Não!

Eu bato em seu peito, ainda sem querer acreditar. Lágrimas correm pelo meu rosto abaixo sem que eu possa segurá-las. Seus braços me envolvem em um abraço desesperado e ambos caímos de joelhos. Uma de suas mãos segura minha nuca, enquanto seu choro inunda meu ombro. Nossos soluços são descontrolados, sufocantes, desesperados.

Nada mais faz sentido agora...

Fico sem fôlego, não consigo respirar mais e a escuridão me abraça.

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