Capítulo 3

Fiquei em silêncio o tempo todo até chegarmos em casa, me perdendo em meus próprios pensamentos. Alguma coisa naquela senhora me deixava inquieta, não algo ruim mas como se ela soubesse de algo que não sei. Algo a ver com as bonecas, talvez?

Sorri e passei o dedo no vidro embaçado da janela, fazendo uma linha reta. Isso estava começando a ficar interessante. Eu tinha certeza que havia alguma explicação sobrenatural por trás de tudo. Ou será que eu só queria ter certeza? E... meus parabéns Lis, você conseguiu travar seu próprio cérebro.

Fizemos o mesmo caminho para voltar para casa, mas desta vez não vi a menina brincando, devia ter percebido que não faria bem à saúde brincar fora de casa com um frio daqueles. Ou devia ter voltado ao mundo dos mortos.

– Mãe – chamei e ela resmungou algo como "o que foi?" sem ao menos tirar os olhos da estrada, batendo as unhas no volante como um tique nervoso e eu soube que estava lembrando do pai de Eliel, da nossa antiga cidade, coisas que eu preferia que ela esquecesse. – O que você acha que pode prender os espíritos aqui na Terra?

– Hum... Eles podem não ter aceitado a morte ainda, ou serem muito apegados à algo neste plano, não sei. Existe uma infinidade de possibilidades, algumas mais idiotas e outras mais tristes e fáceis de acreditar.

Ser apegado à algo neste plano? Essa para mim parecia ser a hipótese mais plausível, pelo menos para aquela garotinha.

Ah Lis, pare de ser louca, a menina pode muito bem estar viva, você que fica com essas paranoias de que tudo está ligado ao sobrenatural, deixe as pessoas serem vivas em paz.

Suspirei e voltei a olhar pela janela, agora uma chuva suave caía e batia contra o vidro, desenhando milhares de pontinhos na superfície embaçada, era tão bonitinho. Tentei pensar em algo além da chuva para me distrair, mas nada me vinha à mente, então virei para trás e comecei a torrar a paciência de Eliel, tirando toda a concentração que ele mantinha em seu precioso jogo.

– O que é isso? O que você precisa fazer para ganhar? Esse bicho pode te matar? Eita, morreu – eu disse rindo e ele me lançou um olhar psicótico que me fuzilaria se pudesse. – Posso jogar também?

– Não, você tem seu próprio celular – disse em tom monótono e levemente irritado, eu sabia que ele odiava ser interrompido e admito, às vezes fazia de propósito.

– Mas no meu só tem The Sims, e não pega sem internet.

– Se vira.

Suspirei novamente e me joguei de costas no banco, encarando o teto. Sem ao menos reparar, comecei a cantarolar uma música qualquer de um desenho animado qualquer. Meus pensamentos estavam tão bagunçados e sem sentido que nem eu mesma os entendia, era complicado ser meio louca.

– Mãe – chamei mais uma vez e ela me olhou do mesmo modo que Eliel, porém era mil vezes mais assustador quando vinha dela.

– Meu Deus, Marliss! Pode parar quieta por um minuto?

Pensei por um momento, sorrindo e balançando a cabeça negativamente.

– Não, porque não tenho nada para fazer.

– Três ruas... Faltam três ruas, você vai sobreviver – ela disse e assenti.

Não sei porque concordei, não sabia se conseguiria, já estava começando a me coçar de tédio.

Tentei voltar a pensar em algo e, por algum motivo desconhecido, uvas surgiram na minha mente.

Odiava uvas. Tá, eu não odiava uvas, uvas eram doces – às vezes, pelo menos – e geleia de uva era tão boa, só não gostava de suco. O suco tinha um gosto forte e não tão doce, e me lembrava vinho, vinho me lembrava coisas menos doces ainda.

– Pronto criatura insuportável, chegamos – minha mãe avisou e olhei para fachada da casa. Bizarro, bem bizarro.

E... sério isso? Eu havia passado três ruas pensando em uvas e seus derivados? Deus, eu precisava ser mais normal.

Abri a porta e podia jurar que senti uma sensação de liberdade ao pisar na terra fofa, respirando o ar gelado e refrescante e sentindo as leves gotas do chuvisco que caía atingindo meu rosto. Respirei fundo e corri em direção à varanda, tropeçando mais uma vez em um dos degraus. Já deveria saber que isso aconteceria.

– Ai, ai... – mamãe murmurou segurando a risada enquanto passava por mim.

Legal. Estava amando minha mãe cada vez mais, sempre me apoiando nas horas difíceis e me levantando quando caía e... Não.

Assim que entrei, observei o interior da casa mais uma vez enquanto minha mãe começava a guardar as compras. Tirei os tênis e olhei para o corredor, ainda não acostumada com aquela atmosfera de filme de terror britânico.

– Acho que vou tomar um banho enquanto você faz o almoço – eu disse começando a subir as escadas para o segundo andar, arrastando-me como uma lagarta que já comeu demais e está perto de virar borboleta.

– Tudo bem, só não demore apenas porque temos uma banheira – mamãe respondeu.

– Nós temos uma banheira? – Perguntei à mim mesma, sem lembrar de ter visto uma, como sempre, e dei de ombros. – Ótimo.

Quase que desesperada por um banho quente, deixei a lentidão de lado e subi as escadas correndo, entrando no banheiro assim que cheguei ao segundo andar. Era grande, do tamanho do meu antigo quarto, e tinha uma pequena janela quadrada de vidro, dois suportes para toalhas nas paredes ­– um já ocupado, – uma pia marrom aparentemente antiga, um vaso da mesma cor e uma grande banheira redonda de madeira com um chuveiro em cima e duas torneiras na base.

Tirei as roupas e me olhei no espelho por uns segundos, pensando que talvez eu não fosse mesmo tão feia. Fora o cabelo estranho, o nariz torto e as bochechas de bulldog, até que eu tinha uns olhos bonitinhos.

Liguei o chuveiro na temperatura mais alta possível e entrei na banheira, era tão bom sentir a água quente depois de acordar já congelando. Me perguntei se devia nevar ali, mas duvidava, não era tão longe da minha antiga cidade, onde a única coisa fria eram os cubos de gelo que precisávamos comer no verão para não acabar morrendo.

Depois que a água já havia preenchido quase todo o espaço, deitei e deixei que meus ouvidos ficassem completamente submersos, bloqueando pelo menos a maioria dos barulhos externos. Fechei os olhos e desliguei minha mente do mundo real, fazendo com que somente pensamentos aleatórios e sem sentido recebessem minha atenção.

Eu queria muito saber o que aquelas bonecas estavam fazendo no sótão e não importava o que minha mãe dissesse, eu não ia desistir de encontrar uma explicação sobrenatural para aquilo.

Suspirei e por um momento tive a sensação de estar sendo observada. Rapidamente abri os olhos mas não enxerguei muita coisa, o banheiro estava quase que totalmente escondido pelo vapor que havia saído do chuveiro. Inspecionei o local todo com o olhar até chegar no canto ao lado da porta.

Uma silhueta negra de uma garotinha estava parada ali, mas não consegui distinguir muita coisa, era como se fosse só uma sombra.

Tentei me levantar mas algo que surgiu dentro da banheira segurou meus pés e se amarrou em meus tornozelos. Puxei-os com força para cima mas não adiantou, somente fez minha pele arder.

Voltei os olhos para a garotinha, estava cada vez mais perto, caminhando lentamente em minha direção, soltando rangidos ao pisar no chão de madeira e murmurando coisas indecifráveis em um idioma que certamente não era o meu.

Agarrei as bordas da banheira e me impulsionei para cima com a maior força possível, mas a mesma coisa que havia prendido meus pés emergiu da água e prendeu meus braços e meu pescoço, fazendo-me afundar novamente.

Droga, droga, droga. Era só o que eu conseguia pensar enquanto tentava desesperadamente voltar à superfície, o ar esvaindo-se de meus pulmões. A coisa que prendia meus braços apertou-se mais em torno deles, machucando a carne e quase esfolando a pele. No mesmo instante virei o rosto para ver o que era e, se pudesse, teria soltado um grito.

Cabelo. Fios loiros, grossos e encardidos, estavam em volta dos meus braços, pernas e pescoço, apertando-os como se quisessem me deixar em pedaços.

Olhei para cima e me deparei com a sombra da garotinha acima de mim. A única coisa visível naquela silhueta escura eram enormes olhos azuis e mortos, arregalados como se me pedissem ajuda, mas levemente inclinados para cima como se ela estivesse sorrindo ao me ver morrer.

Meu coração batia rápido e era só o que eu conseguia ouvir debaixo d'água, não conseguia ao menos me debater e meus ossos pareciam se congelar, tanto de medo quanto por efeito do olhar daquela menina. Era só o que me faltava, ser morta pelas coisas que eu mesma procurava.

Beirando o desespero, tentei me levantar mais uma vez, mas senti a mão pequena da garotinha tocar meu peito, me empurrando ainda mais para baixo.

Comecei a perder a consciência, já enxergava tudo embaçado e meus pulmões queimavam com a água que havia entrado pelo meu nariz. Minha visão estava cada vez mais turva e escura e minha cabeça doía.

Eu já não tinha mais forças para tentar levantar mais uma vez ou ao menos tentar gritar, e começava a me sentir cada vez mais distante.

– Lis! Lis! – Uma voz me chamou mas não consegui distinguir de quem era, parecia distante e fazia eco, me deixando confusa.

Tentei falar ou até mesmo abrir os olhos mas meu corpo não me obedecia. Fui chacoalhada para frente e para trás por mãos que pareciam ser pequenas e quentes – ou talvez meu corpo que estivesse frio demais.

– Lis, pelo amor de Deus, não brinca com coisa séria – disse novamente a mesma voz, porém mais clara e fácil de ser reconhecida. Tinha um tom preocupado e era levemente aguda, não como uma voz feminina, mas uma voz infantil. Eliel.

Meu corpo ainda estava submerso na água que parecia já ter esfriado, exceto dos ombros para cima. Consegui abrir a boca para falar algo, mas saiu apenas uma tosse estranha que me fez cuspir quase um chafariz inteiro, o que fez meu peito doer.

– Ai meu Senhor, ainda bem – Eliel quase gritou e me deu um tapa na cara, fazendo-me abrir os olhos na mesma hora. – Você me assustou, sua idiota!

Empurrei ele para longe com as poucas forças que havia recuperado e dei uma boa olhada no local em que me encontrava. Ainda estava no banheiro mas não haviam mais sombras me encarando e nem fios de cabelo tentando me prender. Havia sido um sonho?

– O que você fez, idiota? Tá tentando se matar de novo? – Ele sussurrou em tom urgente, me encarando com os olhos verdes arregalados e assustados.

– O quê? – Perguntei confusa e percebi que ele não olhava diretamente nos meus olhos e sim para o meu pescoço.

Passei a mão onde ele estava olhando e resmunguei. Estava dolorido e parecia ter sido apertado. – Ah, que merda! – Xinguei olhando as marcas roxas em meus braços e tornozelos.

Eliel ainda olhava para as marcas, devia estar pensando que eu havia feito aquilo em mim mesma, afinal, eu estava sozinha ali.

– Não fui eu...

– Não? – Eliel interrompeu em tom tranquilo mas seu olhar o entregava. Não acreditava em mim. – Então quem fez isso?

– O quê.

– O quê?

– Ninguém fez nada, mas algo fez – expliquei impaciente.

Suspirei e balancei a cabeça em direção à porta, gesticulando para que ele saísse e me deixasse sozinha para pelo menos colocar alguma roupa, ninguém merece ser acusado de tentativa de suicídio estando pelado.

– Não posso fazer isso. E se acontecer algo pior?

Arranhei a palma das mãos com as unhas. Como isso me irritava, teimosia dos infernos.

– Nada de pior vai acontecer porque eu nunca faria isso e você sabe muito bem que é verdade – respondi prolongando as palavras como se ele fosse um bebê incapaz de entender as coisas.

– Cinco minutos, Lis, se demorar mais eu conto tudo pra mamãe – disse e saiu do banheiro apressadamente, escorregando pelas poças de água que haviam se formado no chão.

Estava assustado demais para ao menos tentar compreender o que realmente havia acontecido e eu não o culpava, "acidentes" haviam acontecido alguns anos atrás, o que fez com que minha mãe e Eliel começassem a se preocupar mais comigo. Eu odiava isso, me sentia tão culpada... Mas eu era, não era?

Vesti meu conjunto de moletom sem ao menos secar as costas direito e fui direto para o quarto de Eliel, meus cabelos pingando na minha roupa e no chão, deixando um rastro de gotas de água por onde eu passava.

Comecei a pensar o quanto seria engraçado se pudesse chover dentro de casa. Tudo bem, não seria nada engraçado.

Abri a porta e encontrei meu irmão deitado na cama, brincando com alguma linha solta no lençol. Parecia um filhote de gato.

– O que aconteceu? – perguntou sem ao menos levantar os olhos, o que, por algum motivo, fez com que eu me sentisse ainda pior.

– Para ser sincera, eu não sei – respondi passando a mão pela marca roxa em meu pescoço.

Eliel não respondeu, talvez esperando que eu continuasse.

– Eu estava tomando banho normalmente e então uma sombra...

– Uma sombra fez isso? Para de viajar na maionese, Lis.

– Cale a boca senão vai ficar sem saber! – Vociferei irritada, direcionando um olhar assassino à ele. Respirei fundo para me acalmar e continuei: – Uma sombra apareceu no canto ao lado da porta e depois alguma coisa prendeu minhas pernas, braços e meu pescoço, por isso quase morri afogada – contei e ele me encarou arqueando as sobrancelhas, exatamente do mesmo modo irritante que seu pai fazia, como se achasse que sou louca ou algo assim.

– Alguma coisa tipo...?

Suspirei e estalei os dedos das mãos um por um. Não iria dizer que fios de cabelo haviam tentado me matar, soaria mais maluco e insano do que uma sombra andando sozinha sem um corpo – a não ser para o Peter Pan, mas como ele não estava ali, preferi deixar essa informação guardada somente comigo.

– Eu não sei, não consegui ver, estava com medo e ocupada demais tentando me soltar – menti e ele assentiu.

– Tudo bem.

– Não vai contar para a mamãe?

– Não, você não está mentindo, não foi você quem fez isso – disse se levantando e me dando um abraço mais do que inesperado.

– Como sabe...?

– Você ri ou desvia o olhar quando está mentindo, quando fala a verdade fica com essa cara de desespero porque sempre acha que não vão acreditar em você.

Fiquei parada por um momento, sem saber ao certo o que dizer. Apenas dei um sorriso e o abracei de volta, apertando seu corpo que mais tinha ossos do que sei lá o que. Estava ficando quase maior que eu, até mesmo porque não era lá muito difícil ser maior que eu.

– Lis, o que você acha que foi? – ele perguntou e eu suspirei.

– Não faço a menor ideia – eu disse fazendo uma pequena pausa – mas, como sempre, tenho teorias.

– Teorias malucas que envolvem explicações sobrenaturais?

– É claro, senão não seria eu.

Nós rimos e fui para o meu quarto depois de abraçá-lo mais uma vez. Precisava pensar e dar um jeito de cobrir aquela marca de estrangulamento no meu pescoço.

Deitei na cama e abracei meu urso, pensando no que acontecera enquanto relaxava ouvindo o som da chuva fraca batendo no vidro da janela.

Espíritos? Nunca tinha ouvido falar de espíritos que apareciam como sombras. Mas já tinha ouvido falar de demônios que apareciam assim. Mas por que um demônio tentaria me matar? Nunca fiz mal ao inferno, nem mesmo critiquei o satanismo.

Você se esqueceu que são demônios, sua tonta? Não precisam de um motivo para matar, apenas matam.

Estremeci e passei as mãos pelas pernas. Nunca havia tido contato com coisas assim. Já havia ouvido vozes algumas vezes, mas, apesar de ser fanática por coisas assim, não acreditava muito que tivesse sido obra do sobrenatural, eu estava meio louca na época, cheia de merda na cabeça e coisas assim acabavam acontecendo com frequência.

E se aquilo no banheiro realmente não houvesse acontecido? Se tudo não passasse de uma alucinação e eu mesma tivesse feito as marcas em mim? Dupla personalidade, talvez?

Nunca fui muito normal e a lista das possíveis doenças mentais que poderia ter não era nada curta. Depressão havia sido confirmada quando passara num psicólogo uns anos atrás, mas pessoas deprimidas não alucinam, certo?

E eu já estava melhor, não deveria ficar pensando nisso o tempo inteiro ou sabia que acabaria deitada no chão em posição fetal, chorando e me sentindo um lixo por tudo o que havia acontecido.

– Oh minha querida Deusa, você me enviou à essa vida para brilhar escuridão, não é mesmo? – eu disse zombando enquanto levantava meu urso no ar, tentando me distrair um pouco antes que aquilo voltasse a me perturbar.

Levantei e fui até o guarda-roupa, jogando todas as roupas emboladas no chão para tentar encontrar meu cachecol laranja cintilante. Amava laranja, mas coisas cintilantes não eram bem as minhas favoritas.

– Lis! – minha mãe gritou da escada, fazendo-me dar um pulo e deixar escapar um gritinho.

Respirei fundo e coloquei a mão sobre o peito, sentindo meu coração martelar rapidamente.

– Sim, mãe – respondi gritando de volta, tentado ao máximo controlar minha voz para não demonstrar que havia levado um susto gigante. Fora o fato de que minha garganta também ardia como se estivesse queimando.

– O almoço tá pronto.

– Já vou.

Dei uma última olhada por entre as roupas e vi a ponta de um pano laranja brilhante. Puxei e o enrolei em volta do pescoço, dando um leve nó e descendo as escadas.

Precisaria arrumar uma boa desculpa.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo