O primeiro teste...

Pelo canto do olho, John observava a doutora Sakurai fazer algumas anotações, seus olhos negros fitavam a pequena hibrida com seriedade, as sobrancelhas franzidas e uma expressão preocupação. Apenas dois dias se passaram e ela parecia cada vez mais sobrecarregada, a sensação de nunca conseguir ler seus pensamentos ainda o incomodava, mas aos poucos, começava a ler suas emoções.  

Gostaria de poder a ajudar, sabia o motivo de sua preocupação: Joan não era perfeita. A probabilidade de receber uma ordem de execução parecia cada vez mais real, e mesmo tendo sido instruído a acreditar que, sendo criados em tubos de ensaio os espécimes não possuiriam emoções humanas e seriam perigosos a segurança dos dois, o soldado só conseguia pensar em como Joan aprendia rápido e comportava-se de maneira totalmente dócil, não via nada de perigoso nela.

Sentira-se totalmente desarmado ao ver Raniya demonstrar os primeiros sinais de seu poder para salvar a “irmã” e foi impossível não se emocionar, mesmo sabendo que sua conduta estava completamente incorreta, mas não conseguia evitar ainda mais porque Lyns não contribuía, tratando a menininha como um filhotinho.

– O que os resultados indicam? Questionou após pigarrear levemente para chamar sua atenção, sentou-se ao seu lado e lhe entregou um copo de café expresso que pegara na cafeteria que ficava no corredor das instalações.

– Fisicamente ela está em perfeito estado, mas seu DNA possui algum tipo de incongruência... – Ela respondeu depois de solver um pouco do café que lhe foi entregue, agradecendo silenciosamente em um aceno. – Em resumo, ela é humana e doente.

John abriu a boca, pensando em puxar assunto, mas sua atenção voltou-se a visão de Joan caminhando lentamente com caixas nas mãos, para em seguida as empilhar no canto do laboratório.  Lyns sorriu, apoiando o queixo com a mão e inclinou a cabeça para o lado, seus lábios pronunciavam a palavra “fofinha” em silencio.

 – Desde que ela acordou, não para quieta! Explicou e ergueu-se, abriu um pequeno frigobar e retirou um pequeno vaso com verduras. – Vem aqui Joan, vamos ver como você se sai comendo algo de verdade... 

– Ela parece ser muito inteligente... – John observou com atenção, fitando-a mastigar lenta e cuidadosamente, parecia estar saboreando as batatas e ao mesmo tempo, aprendendo a usar os dentes molares.

– Você gosta disso? John questionou se arrependendo em seguida. Não possuía permissão para interagir com os espécimes e fizera isso duas vezes impulsivamente.

– Sa...boroso... – Ela respondeu com a voz rouca e um pouco entrecortada após parecer pensar um pouco, depois virou-se para Lyns que sorriu colocando mais um pouco de verdura em sua boca.

– Você deveria treinar a coordenação motora comendo sozinha... – A cientista murmurou divagando um pouco, entregando-lhe o pote plástico e a colher, depois disso, levantou-se e arrastou John pelo braço para fora do laboratório.

– Não me olhe assim, claro que estou preocupada! Exclamou irritando-se com a expressão do soldado, e ainda apertava com firmeza seu casaco. – Ela será levada para a sala de testes em alguns minutos...

Um nó formou-se na garganta de John ao ouvir aquelas palavras e então entendeu o porquê de tanta preocupação, passou a mão pelos cabelos claros e respirou fundo, sentindo-se inútil. Não havia nada que pudesse fazer para impedir a pequena hibrida a entrar naquela sala de testes, e podia imaginar claramente quais tipos de violência ela sofreria.

Antes que o soldado pudesse dizer alguma coisa, dois outros cientistas entraram no laboratório, estavam prontos para levar o pequeno espécime e a única coisa que poderiam fazer era observar a menininha fita-los confusa enquanto era vestida sem o menor cuidado em um uniforme que continha sua nomenclatura numérica.

Caminharam pelos corredores a passos firmes, por mais que a doutora não quisesse participar ou ver o que estava prestes a acontecer, e para o desespero dos dois, ao deparar-se com a sala de paredes cinzentas, Joan virou-se e praticamente implorou por socorro, estava visivelmente assustada e chegava até mesmo a tremer. Mas, nada poderiam fazer, sendo obrigados a apenas observá-la através da grande janela de vidro que separava as duas salas.

Lyns apertava os dedos ansiosamente, sua respiração ofegante e o leve suor escorrendo por sua têmpora fez com que o soldado ficasse ainda mais apreensivo. Porém, tudo o que podiam fazer era observá-la de longe e rezar para que ela sobrevivesse ao que a aguardava.

Joan arregalou os olhos azuis, atenta a qualquer mínimo barulho ao seu redor e como um animal acuado, encolheu os ombros enquanto franzia o nariz como se tivesse sentido um cheiro muito forte e assustador.

Os níveis de temperatura aumentaram dentro da sala e a menininha, angelical e com seus cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, rosnou baixinho como se tentasse afastar algo invisível aos olhos dos outros. A passos lentos, caminhou para trás com os olhos fixos na parede a sua frente, onde uma porta permanecia fechada. Não havia nada que pudesse usar para se defender e sabia disso.

Seus rosnados se tornaram ainda mais altos quando a porta se abriu devagar e por ela irrompeu um rapaz, seu corpo não parecia apresentar nada além de músculos, exagerados e desumanos. Seu rosto era deformado, principalmente sua boca, tão larga e cheia de dentes pontiagudos como os de um tubarão, duas malditas fileiras de dentes que destroçariam a carne de Joan assim que entrasse em contato com ela.

Ela continuou rosnando, tentando mantê-lo afastado, mas gritou horrorizada ao ver aquela grande boca abrir-se bem diante de si. E, de repente, em poucos segundos, aquele hibrido assustador estava sobre a menina mordendo seu braço com tanta violência que arrancava pedaços, ensanguentado o chão sob eles. A mão livre de Joan tentava proteger seu pescoço de receber uma mordida na jugular, tentou mordê-lo, mas não conseguiu e sem opções, enfiou seus dedos com pequenas garras no olho esquerdo do outro hibrido, furando-o.

O rapaz urrou de dor, ainda tentando morder a menina, mas afastou-se completamente ao perceber que o sangue dela em sua boca estava corroendo a pele. Rosnou novamente para ela e jogou-se sobre seu pequeno corpo, tentando ataca-la novamente, mas parecia ainda cada vez mais fraco.

– Não me disse que o sangue dela é toxico... – Joseph murmurou, seu rosto estava próximo ao vidro, sorrindo discretamente. – Já vi o suficiente, elimine o outro!

            Seu comando final foi ouvido pelo fone do soldado que escoltava a porta atrás de Joan e depois de confirmar com a cabeça, aproximou-se dos dois híbridos, seguido por mais três outros homens armados e deu sinal para que atirassem.

Quando Joan percebeu o que estava prestes a acontecer, colocou-se na frente do outro hibrido, fitando os agentes assustada, seu corpo era minúsculo e não poderia o proteger com seu corpo, mas se manteve de pé diante deles. E então, iniciou a sessão de tiros, a audição dela sendo perfeita, podia detectar cada tiro, mas logo seu pequeno corpo encheu-se de marcas carmesins, mostrando que ela estava sendo atingida.

Lyns sentiu a bile subir por sua garganta enquanto seus olhos se desviavam do general que sumia de seu campo de vista e a menininha loira sendo brutalmente baleada. Ver a frieza daquele homem a enojou, fazendo-a correr até a porta gritando para que parassem o teste ou ela acabaria morrendo, atrás dela John tentava não demonstrar o quanto também estava desesperado.   

A doutora parou em frente a porta de metal, olhou para o painel de segurança esperando que ficasse verde, mas nada aconteceu e em um momento de pânico completo, a morena arrancou as travas de segurança abrindo a porta abruptamente e entrou no cômodo, caindo sobre seus joelhos, e usando seu corpo como proteção para o pequeno espécime.

– Sessar fogo! Sessar fogo! John gritou, temendo pela vida da mulher e criança a sua frente, apertou a gravata em desespero, se dando conta de que Joan era apenas uma criança e não adiantava fazer mais nada. Estava apegado a ela e não poderia fazer nada quanto a isso.

O barulho de zunido causado pelas balas entorpeceu os sentidos da doutora que apenas abraçava a menina, tentando consola-la depois de todo o horror que havia passado, mas quando finalmente seus sentidos alinharam-se e percebendo o general estava ao seu lado fitando-a com desdém, ergueu-se e o encarou de perto.

– Você me disse que todos os outros espécimes estavam mortos! A doutora gritou, apontando a pequena hibrida que sangrava nos braços de John. – Aquilo nem pode ser chamado de humano...

– Faça o seu trabalho doutora Sakurai e eu faço o meu então, cale a porr* da boca! O general gritou de volta, enfiando o dedo no rosto dela. Sua expressão de desgosto era bem clara.

– Não pode fazer isso comigo, eu estou dedicando minha carreira a esse projeto! A voz de Lyns subia de tons a medida em que o tempo ia passando, suas mãos tremiam e vez ou outro sua face se contorcia em irritação profunda.

– Você sabia que não poderia se apegar aos espécimes, se o 002 falhasse seria apenas mais um ser inútil descartado! Joseph rebateu friamente em resposta ao pequeno escândalo que a morena causava.

– Um ser perfeito, com habilidades incríveis ao qual não deixarei ser descartado como se fosse lixo! Ela gritou, finalmente perdendo a compostura. Suas roupas estavam sujas de sangue, e seus pés repousavam descalços no chão frio pois, havia deixado seus saltos altos na cadeira onde estava sentada.

– Pois bem! Faça o que quiser, mas se em uma semana esse espécime não evoluir aos parâmetros aceitáveis ele será descartado e você será demitida! O general resmungou grosseiramente.

– Ela tem muito potencial! John diz não se contendo, chamando a atenção de seu superior e fazendo-o virar-se em sua direção, mas parecia pouco se importar.

– Não irei me repetir! O general completou dando as costas a ambos e afastou-se, sumindo pelo corredor cinza e gigantesco que que dava para o centro de pesquisa.

– Quem aquele desgraçado acha que é para me tratar assim? Lyns gritou ao vê-lo irromper pela porta, puxou um maço de cigarro do bolso de seu paletó feminino de corte perfeito e o colocou na boca.

– O desgraçado do nosso chefe! Um babaca inclusive, doutora Sakurai! O soldado permitiu-se resmungar usando seu isqueiro dourado para acender com uma pequena chama, o cigarro já nos lábios da doutora a frente. Seu queixo tremia levemente e ela suspirou agradecendo após soltar a fumaça por entre os lábios.

– Lyns... me chamo Lyns! Acho que já temos intimidades o suficiente já que seremos demitidos juntos! Ela sussurrou com um riso baixo e deu-lhe um cigarro também. – Acho que merecemos um bom whisky, John...

Depois daquele inferno, acabaram não deixando o laboratório por medo de que algo ruim acontece ao pequeno espécime que ainda se recuperava. Lyns acabou pedindo a bebida que havia sugerido e passaram o restante da madrugada bebendo como dois irresponsáveis. Vez ou outra, os olhos amendoados da doutora recaíram sobre a pequena loirinha que dormia tranquilamente, seus ferimentos aos poucos começavam a cicatrizar, tranquilizada pelo sono.

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