Capítulo 5

Na manhã seguinte, acordei com o flat lindamente organizado.

Dessa vez, Camille tinha se superado.

A secretária havia feito um grande milagre em pouco tempo.

A geladeira estava abastecida, a internet funcionava perfeitamente, minhas roupas sociais estavam separadas, e guardadas.

Meus sapatos organizados e o serviço de limpeza do hotel, agendado. 

Sinal de que Abílio também havia pensado em tudo precocemente.

No entanto, a primeira coisa que fiz após o desjejum, foi parar em um botequim qualquer, desses que ficam abertos a noite inteira onde pela manhã é fácil encontrar alguns bebuns adormecidos e debruçados nas mesas.

Ao entrar, senti um cheiro repugnante de mofo misturado com cachaça barata.

Evitando encostar em absolutamente tudo, fui atendida pelo vendedor das drogas lícitas, um homem velho, de cabelo branco e blusa suja, que perguntou o que eu desejava.

No mínimo, acreditava que a mulher a sua frente de roupa social, maquiagem e perfume caro, era apenas mais de seus clientes alcóolotras que se humilhava por uma dose de cana.

Porém para sua surpresa, comprei um pacote de cigarro, contendo dez maços e me surpreendi ao pagar um preço alto por algo que jamais desfrutaria.

Saí do butequim fedido, limpando as mãos com alcóol enquanto o sol derretia o asfalto.

Entrei no carro, rumo a penitenciária e com a ideia fixa de que só sairia de lá depois que tivesse o material necessário para o começo do primeiro capítulo do meu livro. 

Afinal, se tudo tinha um preço e eu começava a pagar a minha parte, evidentemente faria a detenta 682 também saldar.

...

Quando cheguei no portão do presídio, novamente fui recebida pelo rapaz do dia anterior que agora anotou a minha placa, meu nome e permitiu que eu entrasse.

O silêncio e o calor do lado de fora pareciam aquietar as presas do lado de dentro, porém ao caminhar até a porta de entrada que dava para o interior da cadeia, uma sineta percorreu todo o pavilhão me fazendo parar.  Olhei atentamente tudo ao meu redor.

Uma agente abriu a porta de metal e ao me ver estagnada no meio do pátio me chamou:

- Dona Carla, pode vir. É só almoço.

Voltei a andar, dessa vez com passos mais apressados, convicta de que não era rebelião.

....

A agente que agora me acompanhava era diferente da policial do dia anterior, que me levou exatamente para a mesma sala onde eu e Sara ficamos.

Para variar, Sara ainda não tinha chegado e aproveitei o momento para arrumar meu material em cima da mesa.

Sentei, liguei o notebook, verifiquei o gravador e rabiscando no papel, certifiquei-me que havia tinta nas canetas.

De repente, ouvi barulho de correntes sendo arrastadas por passos vagarosos e o som de chaves abrindo celas.

Uma voz feminina foi se aproximando gradativamente, mas era difícil ouvir as palavras ditas, até que por fim, a agente que estava no caminho da cela abriu, espaço para Sara adentrar.

- Boa tarde, Sara. - Cumprimentei olhando abismada as algemas nas mãos e as correntes nos pés, como se ela fosse uma escrava. - O que houve? - Indaguei à agente sobre as correntes de ferro que pareciam pesadas e arcaicas, porém, não tive resposta. O desprezo que as vigilantes tinham quando eram questionadas, me deixava irritada.

- Ei! - Usei um tom de voz imperativo, chamando a atenção propositalmente das mulheres presentes na cela. - Eu perguntei o que é isso? - E apontei para os pés de Sara.

Uma das agentes se aproximou de mim cautelosamente, com um olhar ameaçador.

Ao ver que aquela mulher de buço grande e maxilar quadrado andava em minha direção, com  o bjetivo de me intimidar, recuei dois passos. 

- Não preciso te lembrar que aqui, a senhora é só uma convidada. - Ela me olhou de cima abaixo. - Não pense que por conhecer pessoas influentes, isso te dá o direito de se meter no meu trabalho. Quando terminar o que veio fazer, avise. - Virou as costas e não voltou mais.

Sara que estava sentada, permaneceu calada e imóvel, mas não por receio, e sim, porque sabia que dentro da prisão as regras e leis eram regidas por outras autoridades. 

Olhei para a detenta 682 e arfei com o coração acelerado de raiva.

Eu poderia fazer com que a megera fosse demitida em dois minutos, portanto tentei não desfocar a minha atenção no que era importante, pois tudo o que precisava, estava bem na minha frente. 

Sentei diante de Sara, recompondo-me e sorri amigavelmente, sem nenhum tipo de reciprocidade. 

- Oi Sara. Como você está hoje? - Tentei novamente.

- Bem, doutora. - Ela respondeu olhando para o céu que atravessava a única janela da nossa cela.

A palavra doutora no entanto, nos transmitia formalidade e não era isso que desejava.

- Não me chame de doutora. Pode me chamar pelo nome, se quiser.

Houve uma pausa. Aguardava que ela dissesse algo, o que não aconteceu. 

- Sara... Ontem quando nos conhecemos, você parecia mais relaxada. - Dava para perceber que algo tinha acontecido, e isso ficou claro assim que vi a prisioneira com correntes nos pés, que na minha visão era atípico em qualquer penitenciária.

Ela se manteve em silêncio, antes de me encarar com olhos de poucos amigos e embora não quisesse lhe entregar de imediato o pacote de cigarros, não tive escolha. Precisava desarmá-la.

- Ahhh!!! Antes que me esqueça... - Coloquei a mão dentro da bolsa retirando o presente que havia prometido lhe trazer.

Para o meu espanto, imediatamente, ela abriu um sorriso imenso distraindo-me de seu gesto rápido onde as duas mãos algemadas, arrancaram de mim, o pacote inteiro. 

Era literalmente uma fumante desesperada para saciar seus desejos viciosos.

- Isqueiro... - Ela falou ao mesmo tempo em que rasgava abruptamente a embalagem, aflita pelo primeiro trago. 

Na minha bolsa, torci para encontrar um fósforo ou isqueiro, já que havia esquecido de comprá-lo mais cedo, contudo, quanto mais procurava, mais Sara ficava impaciente.

- Só um minuto... - Balbuciei sabendo que se não tivesse a droga de um isqueiro, perderia a oportunidade de conquistar a confiança de Sara.

Seria muita imprudência oferecer doce ao diabético, sem permitir que ele comesse.  

 " São Longuinho... São Longuinho... Se o senhor me der um isqueiro, eu dou três pulinhos" 

Cantei timidamente, recorrendo a uma simpatia infantil para encontrar o fósforo.

A essa altura, faria qualquer coisa para não decepcionar Sara.

De repente, minha mão tocou no isqueiro zippo cromado no fundo da bolsa.

Como ele tinha chegado até ali? Eu não sabia.

....

- Tome ! - Entreguei à Sara, que finalmente pôde acender o primeiro cigarro.

Ela tragava a nicotina de forma prazerosa deliciando-se.

Se deleitava com a fumaça que entrava em seus pulmões, e que saía de suas narinas, jogando para o alto toda a o fumo produzido. 

No entanto, mesmo não sendo fumante, aguentaria firme, toda a repulsa que aquilo me causava.

Levando-me a lembranças de quando Joaquim ainda vivo e fumante me levava para sair e ao retornarmos para casa, minha roupa estava inteiramente fétida.

Sara olhava para o teto da cela, aproveitando cada minuto do seu primeiro cigarro, sem saber que eu pagaria um milhão de dólares, para que ela contasse exatamente o que pensava.

No entanto, fiz a única coisa que poderia fazer no momento: Observá-la.

Observava e anotava todas as suas reações, sorrisos no canto da boca e feições de prazer.

- Há quanto tempo não fuma? - Puxei assunto.

- Desde quando soube que você viria. - Ela tragou delicadamente.

- Como assim? - Questionei vendo-a sorrir.

- Há um mês um homem esteve aqui, dizendo que a melhor jornalista do país viria para fazer um livro sobre o crime que cometi. Coloquei minhas condições, ele aceitou e parei de me submeter a coisas aqui dentro para sobreviver.

- Eu não estou entendendo. 

- Um homem, Carla... Pense ! - Ela me fitou nos olhos.

Minha mente começou a trabalhar dentro de um labirinto de situações. Um homem, visita, crime. LI-VRO!

- Você sabe o nome dele? - Perguntei com as mãos suando.

- Claro que sei! Você também.

- Abílio? 

- Bingo! - Ela bateu palmas.

Eu estava perplexa.

Abílio tinha esquematizado a minha vinda até Sara.

Ele sabia que aceitaria o trabalho, mediante a chantagem emocional.

Ah meu Deus... Eu estava com tanta raiva dele, que precisei segurar a minha ira para não transparecer à Sara.

- O que ele fez?

Sara fingiu não me ouvir.

- Sara? - Minha voz ecoou dentro da cela, chamando a atenção da agente na porta.

- Ele me ofereceu dinheiro pela história. Eu aceitei e esperei você chegar. 

- Como? Você está presa. Não tem como ter dinheiro.

- Toda semana vem uma pessoa diferente aqui, e me dá o valor combinado. É assim que suborno as agentes e mantenho o controle do meu pavilhão.

Respirei fundo, sabendo que explodir não adiantaria em nada. Abílio ia se ver comigo, depois.

- Que coisas eram essas que você se submetia? - Perguntei com os olhos em chamas, mesmo sabendo que a culpada das circunstâncias, por ironia, não era Sara. 

- Se eu te falar tudo de uma vez, não teremos assunto para essa semana... - Ela brincava comigo o tempo inteiro. - Mas como você parece ser gente boa e ter sido ludibriada pelo seu amigo, vou te falar uma das coisas que fiz para me manter viva dentro dessa penitenciária.

Respeirei fundo, pronta para o que viesse.

- Essa cadeia tem mais de cinco mil mulheres. Só no meu pavimento são mil e quinhentas, espremidas em celas como sardinha enlatada. Algumas estão aqui há mais de quinze anos sem homens. Elas se tornam carentes e duvidam da própria sexualidade. 

Eu não entendia aonde Sara queria chegar.

- Essa dúvida misturada com a carência, faz com que as presas se relacionem. Algumas até casam. Sabemos que o ser humano precisa de sexo e é isso o que rola aqui dentro. Elas transam umas com as outras.

- E daí? - Questionei sem me dar conta do que estava por vir.

- E daí, minha cara Carla... Que sou hétero, mas para sobreviver precisei chupar mulheres. Satisfazer aquelas que podiam me proteger de outras, que queriam me matar.

- O quê?

- Você acha que crimes contra mãe e filhos passam despercebidos? Princiapalmente o meu que saiu em todos os jornais?

- Então você...

- Sim. Precisei namorar uma detenta que mandava em vários pavilhões. Só assim, ninguém podia encostar em mim. 

Soltei a caneta e liguei o gravador.

- Se importa? - Perguntei.

- Não. Vá em frente. 

- A detenta 682, diz que para sobreviver a esse inferno, precisou se relacionar amorosamente com outras detentas. Detentas que tinham o poder e o controle das coisas na penitenciária. Como namorada de uma delas, mesmo alegando ser heterossexual, ninguém poderia machucá-la. Ela viveu assim, até o mês passado, quando soube que o seu livro seria escrito... Por mim...

Era muito óbvio. Sara jogou a toalha, quando a oportunidade de se livrar de favores sexuais, surgiu.

Abílio havia lhe dado o pote de ouro.

Com dinheiro mensal, vinha o poder e com o poder vinha a "liberdade". 

.......

Entretanto, continuei olhando para ela intrigada com todo a história que tinha me contato, e tentava não julgar suas ações para manter-se viva.

Talvez, precisasse se submeter a esse tipo de relacionamento por mais longos anos, se Abílio não tivesse aparecido.

- Você quer falar sobre isso? - Perguntei, dando abertura para o tema.

- Não... Ao longo de suas visitas, esse assunto vai surgir. Até lá, vamos deixá-lo quieto para eu não vomitar.

Sara, finalizou um cigarro e acendeu outro no mesmo instante, me deixando curiosa se fumaria o pacote inteiro de uma vez.

-  Parece que vamos passar muito tempo juntas, né?

- Sim, creio que sim. - Respondi prontamente.

- Entao é o seguinte.... - Ela disse em tom negociador. - A partir de agora você traz para mim tudo o que te pedir lá de fora, e em troca te dou o melhor livro da sua carreira. Sem mentiras, sem omissões. Apenas fatos.

Encarei aquela psicopata, que achava poder negociar comigo avaliando sua proposta.

- Por que acha que farei isso? - Indaguei desafiadoramente.

- Carla, Carla.... - Ela pronunciava meu nome como se fosse uma personagem de filme de gângster. - Você é uma mulher inteligente. Pelas roupas e bolsa dá para ver que tem dinheiro e se nao percebeu, é a unica forma de contato que tenho com o mundo exterior. - Ela deu uma pausa, analisando-me. - Será uma grande e intensa troca de agora em diante, pois no final, sairemos daqui com tudo o que viemos buscar.

A última frase de Sara era uma incógnita e percebi que poderia estar sendo envolvida em um jogo periogoso, porém que alternativas teria?

- Como vou saber que vai jogar limpo comigo e me entregar o que quero? - Perguntei desconfiada.

- Eu posso ser muita coisa, Carla. - Ela me fitou. - Mas não sou mentiorosa. Vou responder as suas perguntas, contar como matei minha mãe e não adianta dizer que não é isso o que quer. - Mais um trago seguido de pausa. - Há quatorze anos, é só o que querem de mim... Saber os motivos de ter matado a minha mãe.

Ela tinha razão.

Muitas pessoas na época do crime queriam saber porque Sara havia cometido um crime tão hediondo, porém tiveram que se contentar apenas com a confissão em rede nacional.

Trazer essa história novamente à tona, mesmo depois de quase duas décadas, com certeza aguçaria a curiosidade da população e consequentemente, o livro venderia inúmeros exemplares.

Essa vantagem que ela tinha sobre mim, não me deixava opções.

Eu acataria o que me pedisse.

Traria o que quisesse nos meses seguintes e assim como a mulher diante de mim que se submeteu a coisas para sobreviver, eu também teria que me submeter para conseguir o que almejava: O livro sobre o Crime de Sara Castro.

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