Trancado em mais prisões do que é capaz de se aperceber, Liam precisa transformar o quadro atual em que se encontra para trazer a verdade à tona sobre a culpa que caiu sobre ele. As informações que precisa obter estão guardadas em algum lugar de sua mente, mas ele não pode confiar nem na própria sanidade.
Ler maisEla sempre foi uma boa amiga. A Esther. E parecia gostar mesmo de mim.
Eu sentia algo como que se eu arriscasse misturar as coisas, ela poderia se afastar e eu perderia tudo. Toda aquela amizade, a proximidade. Isso para um garoto franzino e tímido como eu era; cheio de amigos; porém sempre tratado como o amigo suplente, seria como perder uma perna.
Então eu ficava sempre a um passo de dizer algo, de fazer algo. Mas nunca fiz. O momento mais marcante de tudo isso foi talvez o nosso último encontro antes que ela se tornasse outra pessoa.
Morávamos numa cidade minúscula com algumas estradas de terra e outras de pedra, umas tantas casas com telhas de barro feitas à mão décadas antes, uma praça com um chafariz desativado e pronto. O resto era a natureza. Pastagens ou florestas.
Me lembro que ela retornava de uma viagem à capital, e passou na minha casa a caminho da dela.Estava linda de causar sonhos, como eu costumava dizer.
Os cabelos castanhos ondulados estavam presos no alto da cabeça com um lápis, enquanto duas mechas caiam-lhe de cada lado do rosto. A maquiagem já estava opaca e um pouco borrada ao redor dos olhos mas só se via se lhe fixasse o olhar, como eu fazia por vários momentos de no máximo dois segundos de duração. Vestia uma calça jeans escura e uma blusa vermelha de renda com um grande decote em "V" - provavelmente este é o detalhe da roupa que melhor me lembro.
Conversamos, e rimos bastante. Uma viagem à capital era sempre uma aventura, e ela havia ido fazer uma coisa que, para nós adolescentes do interior, era no mínimo novidade: a carteira de identificação. Ela num certo momento tirou da bolsa uma das fotos 3x4, que havia tirado naquele mesmo dia, e me deu para que eu guardasse como recordação.
E ali sentados na minha cama, transversalmente, com os pés no chão e as cabeças apoiadas na parede foi quando ficamos pela primeira vez com uma distância de menos de quinze centímetros entre os nossos lábios.A respiração tinha mudado. Um sinal que eu não conhecia na altura. E como tudo durou tão poucos segundos, foi o bastante para que eu hesitasse e deixasse escapar a chance.
A última.Hoje, mais longe da minha adolescência do que eu gostaria de estar. Vejo que esses momentos de pura descarga hormonal, que são praticamente quando e como tudo o de mais emocionante acontece na vida de um jovem, já não me são possíveis.
Já não estou naquele ambiente propício. Ou na fase da vida apropriada.
Enquanto a maioria das pessoas normais aproveitaram essas chances, vivenciaram esses momentos, ou ao menos fracassaram neles e aprenderam algo, eu falhei ao hesitar e bloqueei tanto o resultado positivo quanto o aprendizado.
Pouco depois daquele momento eu havia crescido, se é que pode-se chamar assim. E me lembro de já não pertencer mais àquele círculo. Estava jogado para fora da redoma de vidro. Eu era um homem adulto.
Todas as outras pessoas jogadas para fora junto comigo tinham em seu background aquelas experiências. Tinham o que era preciso para sobreviver bem à cisão.
Basicamente: tinham vivido.Eu já não podia mais voltar e tentar outra vez. E não me via pronto pra encarar o mundo de complexidades que se estendia diante de mim e esperava que eu conquistasse um espaço.
Era o fim. Por assim dizer.
O som da caneta sendo pousada sobre o bloco de papel parecia o último movimento do ponteiro de um relógio de parede, quando as suas baterias esvaem-se.
- Gosto da maneira como constrói seus próprios diagnósticos Liam - eu tinha um zumbido longínquo na minha mente enquanto voltava a abrir os olhos. Como ao adentrar o silêncio do quarto depois de ter ido a um concerto de rock. Meu interlocutor falava devagar, me poupando de náuseas da viagem que eu retornava - Quase me faz questionar o motivo de estarmos fazendo isto.Apesar da desorientação meu detector de conversa fiada ainda funcionava, então limitei-me a deixá-lo passar para a próxima nota.
- Não ter beijado a doce Esther quando teve a chance foi sua principal lembrança desta ... "cisão"? Ou existem outras imagens nesse quadro? - agora ele já soava rápido demais outra vez. Sentei-me ainda olhando para os meus pés.
- Produzir diagnósticos só torna maiores os meus problemas Dr. Bennet. Espero que o senhor tenha tomado notas o suficiente. Não tenho dinheiro para mais um mês disto - pude sentir os olhos avaliadores do psiquiatra sobre mim enquanto recolhia meu casaco. De acordo com meu relógio já contaria como "hora-extra" aquela observação.
Um cumprimento com a cabeça e passei por ele em direção à porta do consultório. As paredes amarelas como dentes de um fumante já estavam a me causar asco.
Com a mão na maçaneta girei levemente o pescoço para trás:
- "Doce"?! Só havia uma pessoa virgem naquela noite no meu quarto. E não era a Esther.
Do lado de fora, um corredor cinza repleto de janelas por onde entrava uma luz branca de um entardecer nublado. Apertando os olhos era possível ver que a luz se fatiava em vários pedaços retangulares ao passar as barras de ferro. Os dois cavalheiros vestidos de branco, esperaram pacientemente que eu estendesse-lhes os meus pulsos. Apertaram as algemas e olharam divertidamente o desenho à caneta no meu braço. A seguir apoiaram suas mãos amigas nos meus ombros enquanto caminhamos em direção ao meu apartamento.
- E então Liam, ainda fantasiando que paga pelas sessões de terapia? Hum, aqui dentro a única moeda que sei que usam são seus orifícios! - a gargalhada exagerada fez com que eu me encolhesse na direção oposta a torcer o rosto numa careta.
Nesta vida quem é que não deseja amigos com senso de humor? Eu tinha dois, vejam só.- Esse lugar devia fazer uma olimpíada de lunaticos - a voz do segundo já foi abafada pela porta se fechando.
Uma realidade minimalista supostamente devia me fazer retomar o controle sobre os labirintos na minha mente - Simplicidade amigos, vocês deviam usá-la comigo ao invés de misturar suas projeções com as minhas - sentei-me na cama. Os pulsos livres outra vez. Levei um certo tempo para notar. Minha voz ecoava, não nas quatro paredes do quarto, mas nas incontáveis outras que cercavam o verdadeiro Eu.
Amigos. Me lembro de ter alguns tantos que nem estes. Se a justiça divina for que nem a dos mortais então acho que hoje alguns deles também vestem branco. Estejam onde estiverem.
- Acho que o senhor tem ultrapassado um pouco dos limites aqui doutor Bennet - como em uma gravação antiga, cuja voz captada era muito pobre e parecia esmaecer ainda mais ao ser reproduzida, aquelas palavras chegavam até mim por baixo da fina fresta da porta de aço, disputando espaço com a única fonte de luz.- Não me recordo de termos estipulado algum no início do projeto meu caro amigo. Vocês querem vencer mais essa corrida e saber mais sobre a mente humana do que eles sabem, então, não podem ter medo de quebrar alguns ovos.- É que não está me cheirando a omelete doutor. Só me cheira a queimado - passos secos ecoaram brevemente e o silêncio tornou a reinar; do lado de fora.[...]Aquele lugar tinha se transformado da noite para o dia. E o doutor estava sempre em reunião. Homens engravatados, pastas cheias
Eu compreendo que seja normal uma pessoa não dizer absolutamente tudo o que pensa. Só que existem limites, de uma maneira que não consigo nem começar a explicar, mas todos nós percebemos quando alguém está falando tão secamente que sua própria fala parece uma roupa torcida até não restar mais água, mas também danificar sua elasticidade de forma permanente.Para tudo aquilo que expressamos verbalmente - ainda que antes, lavamos em nosso inconsciente, torcemos em nossa consciência, para então expor no varal de nosso quintal, à vista dos vizinhos quando, por fim, falamos - existe o sol e o vento para terminar a secagem de maneira natural. Ou seja, faz parte do processo que aquele que está do lado de fora, ouça e absorva tanto o inteligível quanto parte do seu abstrato, da identidade do seu ser naquilo que você quis expressar.- Você ainda está me contando
- Nós temos um plano? - questionei impaciente olhando através da fechadura para um corredor deserto e misterioso.- E alguma vez já tivemos? - rebateu Amanda enquanto parecia remexer aleatoriamente nas tralhas encostadas no canto da sala.E mais uma vez ela tinha razão.Todo aquele tempo ali, entre idas e vindas até, e tudo que parecia ter sido um plano, havia desmoronado como um castelo de cartas, que era erguido repetidamente por alguém com uma crise de resfriado.Não chegamos a lugar nenhum, literalmente. Mas nos agarrávamos à única coisa que ainda tínhamos connosco. A vida.Olhando para trás me recordei da maravilhosa demonstração daquilo, que havíamos feito minutos antes. Desperto lentamente e meu cérebro tem certa dificuldade em interpretar o que meus olhos enxergam. O que parecia ser uma parede marrom, já meio estragada pelo tempo, mostrou-se ser na verdade a mesa de refeitório antiga, na qual eu tinha o rosto apoiado e onde um pouco de saliva havia molhado a madeira.- Merda - a lateral do meu rosto estava dormente quando levantei a cabeça e meu pescoço estalou quando endireitei a postura e olhei para frente. Outro período em piloto automático provavelmente, e ainda algumas horas completamente apagado naquela mesa.Podia jurar que minha mente fazia um barulho mecânico enquanto reorganizava as percepções e as poucas e vagas memórias que eu tinha, em um contexto de tempo presente. Foi quando algo ainda mais estranho chamou a minha atenção. Eu não tive escolha.Na primeira oportunidade aquela mulher contaria o que aconteceu para alguém e eu seria logo caçado pelo prédio inteiro. Seria muita ingenuidade achar que ela voltaria a limpar o consultório como se nada tivesse acontecido. Ainda seria culpada pelos objetos que desapareceram.Passei boa parte do caminho até o pátio justificando para mim mesmo o que havia acabado de fazer. A adrenalina ainda corria pelas minhas veias. Agora precisava focar-me na segunda parte daquele plano.Era engraçado pensar como na verdade eu não tinha praticamente plano nenhum. Muita coisa tinha acontecido no puro improviso e eu estava bastante agradecido por aquilo. Dependeria muito mais da sorte a partir de agora e isso também meO Sino da Divisão
Queda Livre
Se estivesse escrevendo um diário ou algum tipo de documento sobre a minha experiência em todo esse tempo, desde que vim parar em um manicômio, eu não saberia mais como iniciar uma simples página. Não sei em que dia estou, acho que nem mesmo o ano. Não sei as horas, e nem mesmo se é dia ou noite até que me venham buscar no meu quarto. Muitas ações do meu dia, da rotina diária, me surgem na memória apenas como inícios ou finais. Eu estou chegando no refeitório ou estou saindo do pátio. O rangido da escada ou o bater da porta. Apenas fragmentos.Minha mente está se quebrando.Os poucos momentos em que me vejo menos apático e um pouco mais seguro e ativo é quando na consulta com o doutor Bennet, ele resolve me soltar da coleira. Abre e fecha a maldita caixa de madeira e me deixa ir embora do consultório inteiro por um tempo.Ele está me tratando como um brinquedo ao qual se da corda para
Último capítulo