3 – Arco-íris

            O hotel Rifóles era um dos muitos recantos praieiros de luxo situados na via costeira da cidade. Exatamente de frente para o mar, proporcionava a seus hóspedes uma vista encantadora do infinito azul-turquesa que seguia atlântico adentro até que os olhos se vissem impedidos de seguir adiante, barrados pela linha do horizonte.

            Ou por cortinas grossas e fechadas, o que limitava muito a visão magnífica do oceano, por um lado, mas também preservava a identidade de todos os ocupantes do quarto espaçoso e elegantemente decorado, por outro.

            Eugênio Botelho era um senhor de meia idade, com o rosto cheio de vincos e cabelo tingido de forma que gritava artificialidade. Não parecia alguém dado a brincadeiras – impressão acentuada por seus óculos extremamente caros, seu terno risca de giz e pela forma como sentava majestosamente na única poltrona do aposento.

            A jovem Botelho, por outro lado, muito além da convalescência, dava a impressão de que se partiria como um galho seco ao menor berro. Os cabelos loiros tão ralos que esvoaçavam sob a pressão débil do ar-condicionado emolduravam um rosto bonito, mas magro – o tipo de magreza oriunda da privação autoinfligida. Sentava-se à cama com tal leveza que poderia voar para fora caso a janela fosse aberta. Seu único sinal de vigor físico era a forma como segurava uma boneca grande de pano com rosto de porcelana, no colo, como se fosse uma criança.

            As outras duas camas do quarto estavam ocupadas pelos aprendizes de feiticeiro e suas bugigangas: dois livros grossos, algumas pedras coloridas e polidas, varinhas de incenso, sais, essências, e mais um monte de coisas que Laura vinha tirando de sua sacola de algodão. O Eugênio Botelho os observava com um misto de descrença e desconfiança.

            – Senhor Botelho, estamos prestes a terminar os preparativos. – Lena o informou, se aproximando. – Fique à vontade para perguntar o que desejar, a menos que seja instruído a ficar quieto. Faremos o que estiver ao nosso alcance para descobrir se há algo supranatural acometendo sua filha. Antes de começarmos, o senhor tem alguma dúvida?

            – Vocês são experientes nesse tipo de... de coisa que estão fazendo? – O homem perguntou. Sua filha o olhou de cara feia, mas ele não se deteve: – Achei que fossem mais velhos.

            – Quinze é o novo trinta, hoje em dia. – Nandini respondeu. – Relaxe. Não vamos fazer nada perigoso com sua filha. Na pior das hipóteses ficamos sem resposta. Na melhor, resolvemos o problema. Agora – e voltou-se para a jovem – Clarice, não é?

            – Sim. – A jovem respondeu, aquiescendo suavemente.

            – Explica de novo o que aconteceu com você.

            – Na verdade, não há muito o que explicar. Eu estava voltando da casa da minha mãe, terça-feira passada. Era noite, por volta das nove, nove e meia. Lembro de ter passado pelo Alberto Maranhão. Depois lembro de acordar no hospital.

            – Você... não lembra de mais nada? – Nandini insistiu. – Não precisa ser um acontecimento, pode ser uma sensação, um som... qualquer coisa.

            Clarice apenas meneou a cabeça negativamente.

            – O que os médicos disseram? – Daniel perguntou a Eugênio.

            – Disseram que ela quase morreu por perda de sangue. – Botelho respondeu. – Mas não tinha ferimentos. Nem fraturas, cortes luxações, nada. Nem sinal de hemorragia interna. Só estava suja de poeira e fuligem quando a encontraram.

            – Fizeram exames de... – Nandini perguntou, hesitante. – O senhor sabe... de...

            – Naturalmente. – Eugênio concluiu, desconfortável com a pergunta. – Não encontraram nenhum sinal de abuso. O toxicológico também deu negativo para tudo.

            Os quatro se entreolharam. Cada um conhecia, em teoria, algum tipo de ente, demônio ou similar, que nutria alguma predileção por sangue – mas nenhum capaz de removê-lo do corpo humano sem deixar vestígios. Era um péssimo começo.

            – Pode falar um pouco mais sobre sua mudança de comportamento, Clarice? – Daniel perguntou.

            – Eu tenho sonhado. – Ela respondeu. – Com a praça do teatro e com uma rua escura nas proximidades, que leva a um beco. Eu fiz alguns desenhos.

            Eugênio pegou uma pasta grande, daquelas de guardar pinturas, e retirou algumas folhas grandes de papel de dentro, os estendendo aos quatro.

            Os desenhos eram muito bons, feitos em giz pastel e aquarela. Eles representavam ângulos diferentes de uma rua estreita, com casas de primeiro andar meio espremidas, quase todas com algum pequeno comércio embaixo, todos fechados. No fim da rua, em um deles, era possível ver um prédio grande e cinzento, de arquitetura colonial. Algumas barreiras e tapumes sugeriam que estava abandonado, ou em obras.

            – Você tem formação artística? – Daniel perguntou à Clarice.

            – Sou formada em artes plásticas. – Ela respondeu. – Eu venho sonhando com esse lugar desde o hospital. Eu gostaria de poder ir lá, ver se eu...

            – Fora de cogitação. – O pai a cortou, ríspido. – Quando você se recuperar, irá passar algum tempo na Paraíba comigo. Ouçam, – e dirigiu-se aos demais – eu gostaria que vocês me dissessem se tem algo... algo a mais acontecendo com minha filha. Ela está forte para viajar, e eu não quero me preocupar com mais nada.

            – Tem inimigos, senhor Botelho? – Lena perguntou. – Alguém que poderia forjar um ataque em larga escala para ocultar o fato de que sua filha era o alvo?

            – Quê? Não, não. – Foi a resposta. – Isso é coisa de novela. Eu sou dono de uma franquia de cosméticos. Tenho alguns desafetos, mas ninguém capaz de sequestrar alguém, nem ninguém do seu... do seu meio.

            – Acho que já podemos começar. – Disse Laura. – A gente não vai conseguir muito mais respostas revendo o que já sabemos. – E se dirigiu à Clarice. – Você pode soltar a boneca um pouco?

            Imediatamente, Clarice segurou a boneca mais próximo ao corpo – um claro sinal de que não pretendia soltá-la. O pai, que vinha exibindo um evidente mau humor, pela primeira vez pareceu apenas aflito. Meneou negativamente a cabeça, e Laura se afastou.

            – Certo – Lena disse. – Daniel, você quer começar?

            – Pode levar um tempo. – Ele avisou, se dirigindo à mesinha situada em um canto do quarto. – Senta aqui comigo, por favor. – O resto de vocês fica em silêncio.

            Clarice, carregando a boneca consigo, sentou-se à mesa. Daniel, já de posse do Merkabah, pediu que ela lhe desse as mãos, e foi obedecido. Ele então fechou os olhos, e esperou.

            Ouviu. O barulho do mar, das pessoas conversando lá fora, o zumbido do ar condicionado. Conseguiu ouvir algo passando na televisão do quarto ao lado, o latido agudo de um cachorro de raça pequena, a respiração ansiosa e um pouco asmática do senhor Botelho. Mas era só isso. Esperou um pouco mais, antes de soltar as mãos de Clarice e dizer:

            – Nada. Não há ninguém a influenciando, ou ao menos, influenciando de uma forma que eu conheça. O que quer que esteja acontecendo com ela, não acho que seja espiritual.

            – Minha vez. – Nandini se voluntariou. Daniel fez menção de lhe dar o amuleto, mas ela o interrompeu: – Não precisa. E se voltou à Clarice, enquanto calçava um par de luvas brancas, comuns em procedimentos médicos. – Vou precisar de um pouco do seu sangue. Uma seringa pequena. Pode ser?

            – Tudo bem. Clarice concordou.

            Nandini se aproximou, trazendo consigo o material de coleta de sangue que havia comprado no caminho para o hotel. Pediu que Clarice estendesse o braço, garroteou, tateou para encontrar a veia e perfurou. Logo a seringa se encheu de rubro. Rápido como tinha começado, acabou. Clarice dobrou o braço, espremendo um algodão embebido em álcool que lhe fora entregue. Logo em seguida, Nandini retirou dos bolsos da calça dois aparelhos de medir glicose. O primeiro era completamente normal, azul-escuro, com mostrador digital e a logomarca do fabricante impresso em branco. O outro tinha exatamente o mesmo formato, mas era artificialmente preto, como se coberto por tinta spray, e havia um monte de pequenos glifos verdes cobrindo sua superfície, pintados com tinta guache por um pincel fino. Em silêncio, ela pingou uma gota de sangue da seringa em cada uma das paletas coletoras, inseriu nos aparelhos e esperou.

            – O que é isso, Nandini? – Laura perguntou, curiosa.

            – São aparelhos de medir glicose. – Ela respondeu. – O primeiro é o que eu uso para controlar minha diabetes. O outro eu comprei essa semana. Enfeiticei ele para acusar maldições e outras milacrias a partir de amostras de sangue.

            – Dá pra fazer isso? – Laura perguntou, boquiaberta. – Enfeitiçar eletrodomésticos?

            – Dá um trabalho da porra. – Nandini respondeu. – Requer conhecer um pouco do funcionamento do aparelho, e mais um monte de processos ritualísticos menores. Levei uns três dias pra terminar. – E voltou a atenção para o mostrador digital: – olha só, o resultado.

            Nandini pegou os aparelhos e os comparou.

            – Você almoçou antes de vir pra cá, Clarice? – Perguntou.

            – Sim. – Foi a resposta.

            Nandini mostrou os resultados. O primeiro aparelho, normal, mostrou o número cento e trinta e dois no visor digital.

O outro, enfeitiçado, mostrou seiscentos e sessenta e seis.

            – O... o número da besta. – Daniel comentou, arrepiado. – Pode ser pior do que estamos imaginando...

            – Daniel, não viaja. – Nandini interferiu. – Eu programei o aparelho para mostrar o número setecentos e setenta e sete se estiver tudo bem e o seiscentos e sessenta e seis se houver algo errado. O resultado não é bom, mas ela não tem o sangue do anticristo no corpo, ou qualquer merda dessas que se vê em filme de terror ruim. Eu pus o sangue dela em dois aparelhos como forma de controle, para garantir que a glicose dela não está, por acaso, realmente acima de seiscentos. Se bem que, se estivesse, a gente saberia só de olhar para ela.

            – E o que isso quer dizer? – Eugênio perguntou.

            – Quer dizer que há algo de errado com ela. – Nandini respondeu, sombria. – E é algo sobrenatural. O aparelho foi calibrado para identificar maldições e problemas similares, então, o que quer que seja, não é bom. Mas não sei do que se trata.

            – Há alguma chance de você estar enganada? – Eugênio insistiu.

            – É a primeira vez que o aparelho dá um positivo. – Nandini explicou. – Ainda podemos fazer uns seis ou sete testes antes que eu precise recarregar e os resultados comecem a ficar imprecisos. A gente pode testar ela de novo e depois testar mais alguém, para fazer o controle.

            Fizeram conforme o sugerido. Repetiram o teste em Clarice, e depois testaram Laura e o próprio Eugênio, nas duas máquinas. Só Clarice deu positivo para maldição.

            – Minha vez. – Lena se voluntariou, e estendeu a mão para Daniel, que não se fez de rogado e a entregou o amuleto.

            Ela o pôs no pescoço e se aproximou de Clarice, a ponto de os narizes ficarem a um palmo de distância.

            – Por favor, pegue isso. – Lena pediu, estendendo o amuleto, cuja corrente ainda estava ao redor de seu pescoço, para ela. Clarice o segurou entre o indicador e o polegar e riu, de nervosismo e desconforto.

            Sem aviso, Lena umedeceu os lábios com a língua e beijou Clarice na boca, sem tirar os olhos dos dela. Um selinho.

            – Estou oferecendo uma chance de você se render. – Ela disse em seguida, atenta e fria. – Se me obrigar a te puxar daí à força, o inferno onde eu atirarei você vai parecer o paraíso quando eu terminar de te fazer pagar pelo meu esforço.

            Clarice pareceu assustada, mas não se mexeu. Lena continuou:

            – Eu invoco a pujança belicosa de Marte, para que arranque o ente imundo que invade esse corpo e o obrigue, contra a sua vontade, a habitar um novo receptáculo oferecido voluntariamente. Que a fúria de Phaleg o aterrorize e o conduza ao tormento que o espera em minhas entranhas.

            Nada aconteceu. Lena esperou mais alguns instantes, antes de pedir o Merkabah de volta à Clarice.

            – Eu disse que não tinha nenhum espírito nela, ou com ela. – Daniel argumentou.

            – Nenhum que você tenha sido capaz de detectar. – Lena retrucou. – Nandini demonstrou que há algo errado. Eu tentei puxar para fora indiscriminadamente, com o feitiço mais potente que eu conheço.

            – Eu compreendo o conceito – Nandini interveio – mas não entendi porque você a beijou. Nunca vi você beijar alguém na boca antes, pra um feitiço.

            – É, geralmente você cospe. – Daniel lembrou.

            – Cuspir seria extremamente grosseiro e desnecessário, já que ela está se voluntariando. – Lena explicou. – E eu prefiro manter minha mucosa bucal longe de cosméticos desconhecidos. As únicas áreas do rosto dela sem maquiagem eram a boca e os olhos, e me parece óbvia a razão pela qual eu não beijei ou lambi um olho. Beijar ou cuspir não faz diferença, o que conta nesse tipo de feitiço é a força de vontade do mago e o controle que ele exerce sobre o olimpiano invocado. Eu treinei exaustivamente os dois, e estou segura de que, se o que há de errado com ela pudesse ser forçado a sair, ele teria saído.

            – O que isso significa, então? – Laura perguntou.

            – Que o aparelho de Nandini deve ter razão. – Lena respondeu. – Não é um ente consciente. Pode ser uma maldição, encantamento ou outro tipo de sortilégio.

            – Certo, é minha vez. – Laura se dirigiu à Lena, que lhe entregou o amuleto. – Vou precisar de uns minutos. E que vocês apaguem as luzes.

            Daniel apagou todos os interruptores ao alcance, e o quarto mergulhou na penumbra. Ainda era possível identificar as formas e os detalhes de tudo no quarto, já que parte da claridade de fora entrava pelas brechas nas cortinas.

            Laura acendeu um fósforo e começou a queimar incenso em um recipiente pequeno, próximo de onde estava sentada. Ninguém falou ou se mexeu, exceto Daniel, que tossiu um pouco. Ela seguiu sentada, de olhos fechados, inspirando a fumaça suavemente e entoando um mantra sussurrado. Quando sentiu os lábios e o nariz insensíveis, abriu os olhos.

            Como esperado, pôde ver ao redor das silhuetas dos outros ocupantes do aposento um sutil, mas nítido halo colorido. As cores variavam, e Laura sabia que a cor dizia muito sobre o estado emocional e espiritual do observado. O Senhor Botelho tinha a aura verde-claro – o que significava bastante desconfiança. Daniel tinha a aura avermelhada, o que significava que ele estava tendo algum ou vários pensamentos indecentes naquele momento. O palpite de Laura era de que talvez o beijo que Lena dera em Clarice podia ter causado isso. A aura de Nandini também era verde-claro, mas oscilava, como estática de televisão. Ela devia estar em dúvida se aquilo estava ou não funcionando, como o senhor Botelho.

            Duas auras chamaram muito a atenção de Laura. A de Clarice e a de Lena.

            A aura de Clarice era azul – sinal de alguém apaixonado. Até aí, nada de anormal. O problema era que o azul uniforme estava cheio de manchas pálidas, como se o fluxo de luz fosse um tecido desbotado depois da lavagem. Laura nunca havia visto aquele tipo de mancha em uma aura.

            A aura de Lena era ainda mais esquisita. Era marrom, sintoma de alguém com personalidade amarga. O problema era que, volta e meia, pipocavam trechos de arco-íris no marrom, brilhantes e muito destacados. Laura também nunca havia visto nada parecido em uma aura antes. Já vira auras mudarem de cor, ou brilharem em diversas cores simultâneas, mas nunca no padrão exato de um arco-íris. Não fazia ideia do que aquilo poderia significar.

            – Podem acender as luzes. – Laura pediu. Enquanto Daniel atendia Laura levantou e se dirigiu a todos:

            – Há algo muito estranho na aura da Clarice. Nunca vi nada assim antes, nem tenho qualquer referência que explique o que está errado. A aura dela está desbotada, como se alguma coisa estivesse manchando o padrão. Como se ela estivesse contaminada com alguma coisa.

            – E tem como consertar? – Eugênio perguntou.

            – Problemas na aura não são a causa, senhor Botelho. São o sintoma. – Laura explicou. – Acho que depois de tudo isso, com o resultado de Nandini, e com a minha constatação já dá para saber que há alguma coisa estranha e espiritual afetando sua filha. Só não temos ideia do que é.

            – Precisamos deliberar. – Lena sugeriu. – Talvez visitar o local do ocorrido. Só com o que temos aqui não podemos sequer sugerir uma causa. Muito menos um tratamento.

            – Há... há alguma coisa em que eu possa ajudar? Recursos? Suprimentos, talvez?

            Nandini já ia abrir a boca para se pronunciar, mas Lena falou primeiro:

            – Apenas não saia do estado ainda e aguarde contato. Se descobrirmos algo, informaremos. Se não, deixaremos o problema nas mãos de feiticeiros mais experientes.

            Se despediram do senhor Botelho e da filha, que cordialmente agradeceram. No caminho de volta ao apartamento de Lena, discutiram suas impressões, mas em nenhum momento Laura mencionou qualquer coisa sobre a estranheza na aura da companheira. No fim, combinaram de visitar as imediações do Teatro Alberto Maranhão no dia seguinte, um sábado, à noite.

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