Até onde você iria para proteger quem ama? Essa é a pergunta que levou Alberto a tentar descobrir, depois de mais de oitenta anos, o que aconteceu naquela noite de 31 de maio de 1930. Atormentado, desde a infância, pelo crime sem solução que manchara o nome de sua família, recebe de sua velha tia Eneida - professora e historiadora - um dossiê completo sobre a vida de seus parentes, os irmãos Augusto e Ângelo Corvecchio. Ângelo, um homem belo e bon vivant, que vê na fortuna deixada pelo pai, um meio de saldar suas dívidas, sendo impedido pelo irmão. Augusto, um homem dividido entre o amor de Mercedes, sua noiva, e Glória, seu braço direito na fazenda. Somente eu Sei a Verdade é uma estória intrigante de amor e ódio. Um mergulho nas fazendas cafeeiras em um Brasil da Era Vargas. Conseguirá Alberto, junto com Marina, por quem nutre um amor platônico, desvendar os meandros do passado, trazendo luz à sombra que afeta o nome de sua família?
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Dias atuais
Lembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez que me deparei com os recortes de jornais, de época, escondidos entre os álbuns de fotografia que mamãe guardava com tanto zelo. Ainda era um menino de calça curta, aprendendo a juntar as letras do alfabeto, me refestelando com a possibilidade de descobrir o significado de todas aquelas sílabas, enquanto as palavras se formavam perante os olhos. Senti o mundo se abrir à minha frente em face da cegueira que me deixava gradualmente, a partir do momento em que conseguia ler aquilo que via nas placas, livros e revistas, entendendo o significado daqueles caracteres misteriosos. E foi nessa avidez por palavras que o vi. Aquelas letras garrafais, estampadas no papel amarelado pelo tempo, surtiu um efeito poderoso em mim. Consegui ler o meu sobrenome naquela manchete de horror. Senti um frio subir pelo estômago e uma carga elétrica secar a boca, ao ver a palavra morte se formando devagar, pulsando num negro pálido.
Dobrei a folha como a havia encontrado e devolvi ao mesmo lugar. Mas não pense que a esqueci. Não poderia, mesmo que quisesse. Por que o nome da minha família estampava aquelas páginas, e se encontrava ligado a uma morte, num jornal? Mesmo com pouca idade sabia que algo assim só viraria matéria se fosse terrível demais e chocasse quem o lesse. Vovô havia morrido e nem uma foto sua, ou alguma matéria, saíra no jornal. Segui cabisbaixo por um tempo, até mamãe me perguntar o que eu tinha:
— Parece que o gato comeu sua língua. Está tudo bem com você? — Desmanchou meu cabelo, enquanto colocava uma xícara de leite quente à minha frente.
— Tudo. — Respondi a uma mãe desconfiada.
— Você não costuma ficar tão calado assim. Não conseguiu juntar as letrinhas?
— Consegui. — Falei, enfiando um pedaço de pão na boca e mastigando, pensativo.
Ela me observou atentamente. Hoje sei que é isso que as mães fazem quando querem ler nossa alma, mas, naquele momento, senti medo de lhe dizer o que estava me incomodando. Engoli todo o leite, limpei a boca com as costas da mão e olhei para ela que me sorria, encostada na pia.
— Mamãe, nosso sobrenome é importante?
— É importante para nós. Por quê?
— Por nada. — Ela continuou perscrutando meu rosto, desconfiada.
— O que você realmente deseja saber? Quer saber se somos uma família abastada?
— O que é isso? — Pergunto, achando estranha aquela palavra
— Abastado significa que tem fartura. Ricos!
— Ah! Eu sei que não somos ricos. Não é isso.
— O que é então? Fala de uma vez. Não fica remoendo as coisas que a noite dá pesadelo.
— Eu não quero ter pesadelo.
— Então não fica guardando as coisas para si.
— Tá bom. Quero saber se somos importantes a ponto de virar notícia de jornal.
— Não. Não somos — respondeu um pouco ácida demais, tão diferente de sua forma gentil e doce de me ensinar as coisas da vida. — Por que da pergunta?
— Por nada.
— Vá brincar então. Vou fazer o jantar. Seu pai chega daqui a pouco. — Ordenou de forma um tanto exagerada.
Obedeci como me convinha, mas aquilo ficou matutando na minha cabeça infantil. De alguma forma, ela ficou estranha quando mencionei o jornal. Não havia nada ali, apenas palavras e mais palavras seguidas daquela que li com perfeição e que tanto me impressionara. Na ingenuidade de um garoto de seis anos, quase sete, assumi que leria aquele jornal nem que demorasse um ano.
Foi o que fiz. Todo dia, assim que voltava da escola, me trancava no quarto dizendo que fazia as lições de casa, contudo, me aventurava por aquele embrenhado de letras sinistras. Encontrei outros recortes escondidos entre as páginas dos velhos álbuns de família e um deles até me trouxe pesadelos. Havia dois homens caídos, um quase ao lado do outro, no chão de uma sala e, numa foto menor ao lado da primeira, uma mulher. Ela estava caída em um corredor escuro, de barriga para baixo, e parte de seu rosto era visível. Usavam roupas estranhas, diferente das que usávamos no dia a dia. Aquilo tudo parecia ser muito antigo. Olhei para aqueles personagens sem entender porque alguém sairia num jornal dormindo no chão. Qual o sentido de ser fotografado dessa forma? Então meu corpo gelou inteirinho quando consegui decifrar outra palavra: Assassinato. E olha que essa foi bem difícil.
Mamãe e papai estavam sempre me fazendo posar para máquinas fotográficas. Ela dizia que queria registrar todo o meu crescimento. Nesse álbum visível na estante da sala, no meio dos livros de meu pai, havia dezenas de poses minhas. Em bebê usando apenas fraldas, deitado na cama sorrindo com a boca desdentada, até a minha primeira comunhão na Catedral. Ainda hoje, sendo eu um homem barbado, mamãe continua com essa mania de registrar todos os meus passos. E vive me atazanando, perguntando quando vou me casar e lhe dar netos.
Aqueles corpos estendidos no chão seguiram comigo durante toda minha infância e adolescência. Assim que fui dominando a arte da leitura, devorei todo aquele material e pude entender que pessoas, que carregavam o sobrenome igual ao meu, haviam se desentendido a ponto de um matar o outro, matar a mulher e depois se suicidar. Esse foi o veredito escandaloso daquela notícia datada de maio de 1930.
Nem preciso dizer que não perdia uma oportunidade de tentar descobrir, pela boca de meus pais, o que realmente aconteceu com aquelas pessoas e quem seriam elas. Toda vez que andava, feito um gato, pela porta de acesso do corredor à sala e os ouvia conversando entre si, ou com alguma visita – geralmente um parente de papai – sobre o malfadado caso, me escondia atrás da porta e de lá ouvia, de olhos arregalados, absorvendo tudo e guardando na memória. Papai até hoje reclama que se não fosse o “maldito governo” nós estaríamos ricos.
Terminei a leitura singular chocado. Marina tinha os olhos vítreos ao me encarar estupefata. Saber da verdade, depois de tanto tempo, não fez com que me sentisse melhor. Meus parentes distantes não se mataram, o que não deixa de ser um alívio. Mas também não fica mais fácil saber que foram vítimas de uma mulher obsessiva e doente. Não quero imaginar o que é ter um filho com essa doença, ou mesmo, se o amor justifica tudo. Seus pais deveriam tê-la internado numa instituição para doentes mentais, quando cometeu o primeiro crime? A lógica diz que sim. Por outro lado, entendo que o correto nem sempre é a melhor forma de se lidar com um problema. Toda essa estória poderia ter sido diferente caso Mercedes não tivesse surgido na vida dos irmãos? Talvez sim, talvez não, se esse fosse o destino dos dois. Aí então poderia ser Mercedes,
Meu pai me enviou para uma casa de repouso no Rio de Janeiro, depois de me arranjar uma certidão de nascimento falsa, jurando que jamais poria os olhos em mim novamente. Eu estava por minha conta. Despedi-me de mamãe. Seu choro foi sincero durante os velórios. Acredito que papai tenha mexido os pauzinhos dentro da polícia, já que era um político de respeito, amigo íntimo do delegado. Deu uma pequena fortuna para o capataz e fê-lo deixar a cidade na calada da noite. Naquele dia eu morri. Todos pensavam que Glória havia partido algumas semanas antes do ocorrido. Não houve muita investigação, como sabem. Especulou-se muito na época. Tenho certeza de que papai deu um jeito de as promissórias adulteradas aparecerem na gaveta da escrivaninha da casa da fazenda, quando enviou o capataz em busca do corpo de Glória. Todos foram unânimes em dizer que os irmãos viviam brigando p
Por alguns segundos me vi deitada em seu lugar. Já disse que nos parecíamos e isso me enlouqueceu naqueles segundos em que via seu peito arfar. Cheguei a pensar que era por isso que Augusto me beijara quando menti sobre a minha mãe estar morrendo. Naquele momento vi sua figura projetada em mim e percebi que se fosse eu naquele chão, Augusto se sentiria aliviado e feliz. Senti o sangue penetrar em meus olhos e atirei em seu peito, deixando-a ali no chão frio, apagando a luz antes de sair. Fui para a casa. Não sei exatamente como cheguei lá. Parecia estar em outro mundo, ou enfrentando um pesadelo do qual logo acordaria e tudo seria diferente.Queria um mundo onde as pessoas não mentiam, não traiam, não pensavam em si mesmas. Um mundo onde Augusto era meu, onde nosso filho cresceria naqueles campos de café, onde poderia rodá-lo nos braços ouvindo o som de sua gargalhada. Onde a felicidade
— Você mentiu pra mim. Fez-me crer que era minha amiga. Aceitou meus presentes, usou minhas roupas, ou melhor, está usando minhas roupas, e ainda assim preferiu acabar comigo.— Você tem que entender, Mercedes. Ele nunca te amou. Seu pai antecipou as coisas e ele não teve como negar o noivado na presença de todos. Augusto é um homem honrado. A gente se ama. Não há nada que mude isso, nem mesmo sua família.— Ele era meu! — gritei para ela — Meu! Desde criança. Você estragou tudo.— Ele nunca foi seu, Mercedes, e sabe muito bem disso. Seu passado te condenou...— Cale a boca! O que pensa que sabe sobre meu passado? O que aquele cretino do Ângelo te contou? Ele não sabia de nada. — Gritei, apontando a arma para ela.— Eu ouvi quando ele te chantageou. Estava na janela.— Então não ouvi
Nossa Senhora seria coroada a Rainha dos Anjos e dos Homens, reverenciando o gesto carinhoso da Princesa Isabel, em sua segunda visita à Basílica Velha, quando presenteou a imagem com uma coroa de ouro. Aquela seria a primeira festa depois que o Papa Pio XI decretou a santa como Padroeira do Brasil naquele ano. Era certo de que todos estariam lá. Menos eu, que declarei estar com um súbito mal estar. Sabendo que não haveria ninguém na casa e nem nas ruas, senti-me mais que segura em continuar com meus planos.Tudo corroborava para os acontecimentos daquela noite. Dizem que quando se pensa em suicídio ou assassinato, o diabo toma conta de sua mão e faz acontecer. Não sei quem inventou essa, mas é a pura verdade. Uma tensão tomou conta de meu corpo como se uma energia pulsasse, surgindo do âmago, em direção às mãos. Só havia um pensamento: acabar com os dois e te
É mais difícil do que pensava, colocar no papel as ocorrências que levaram àquela tragédia. Talvez seja a data de hoje, 31 de maio, que me fez ter coragem para falar no assunto, mesmo tendo se passado sessenta anos e eu já estando com meus noventa. Não acredito que tenha durado tanto, depois de ter visto as pessoas de minha convivência morrendo dia a dia. Hoje penso se tudo aquilo poderia ter sido evitado e, quanto mais penso nisso, mais me convenço de que não, tal o grau de desespero em que me encontrava naquele dia. Havia perdido tudo o que me era mais precioso, o que havia conquistado e planejado ao longo da vida, e por culpa deles. Foi preciso me decidir: acabar com a minha própria vida ou acabar com a deles, que me traíram de forma tão mesquinha e vil. Optei por acabar com a deles, mesmo que isso me fizesse cair em desgraça. Sim, isso é uma confissão de assassinato. Eu
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